O MENINO-POETA E A MIOPIA:

Incesto, Paixão e Morte em “Campo Geral”, de João Guimarães Rosa.

Por César Mota Teixeira
Ilustrações: Rubens Lima

“Vegetal era ele ou passarinho sob a robusta ossatura com pinta de boi risonho?”
Carlos Drummond de Andrade – Um Chamado João

ROMANCE QUE NINGUÉM LEU

“Campo Geral” é a primeira novela que integra, num grupo de sete, o livro Corpo de Baile, publicado por João Guimarães Rosa em 1956, meses antes da publicação de Grande Sertão: Veredas, seu único romance e sua obra-prima. Pode-se dizer que o estrondoso sucesso deste terminou por obnubilar o brilho daquele. O crítico Paulo Rónai afirma que Corpo de Baile foi o “romance que ninguém leu”, sugerindo assim a existência de uma construção interligada das narrativas que compõem a obra, originariamente publicada em dois volumes. O número sete, que remete à totalidade (sete eram os planetas antigos), corrobora o título, que indicia a dança em conjunto. Por decisão do próprio autor, entre 1964 e 1965, Corpo de Baile foi dividido em três novos volumes independentes: Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão. Mais recentemente, para comemorar os sessenta anos da publicação original de 1956, a editora Nova Fronteira, que publica toda a obra de Guimarães Rosa, voltou a reunir os três volumes numa caixa de luxo com o intuito de resgatar a unidade perdida do livro, que não foi concebido como mera coletânea de narrativas estanques e isoladas, mas sim como um balé, uma partitura ou mesmo um romance subterrâneo no qual motivos, personagens e espaços retornam para compor um todo maior. A novela “Campo Geral” poderá ser encontrada tanto no primeiro volume de Corpo de Baile (1956) quanto em Manuelzão e Miguilim (1964). Sendo a primeira de um corpo de sete e mantendo relações com as próximas, funciona como uma abertura do bailado que principia. Em correspondência trocada com Edoardo Bizarri, seu tradutor italiano, Guimarães Rosa fala sobre o título que deu à essa novela: Trata-se de uma história sobre os começos, focalizando a vida de uma criança, o pequeno Miguilim, que vive com sua família na roça do sertão mineiro, espaço que fornece o chão concreto, social e histórico, da dança (cósmica) que ensaia seus passos. Na última novela, cujo nome é “Buriti”, Miguilim retorna como o moço Miguel, fechando o ciclo.

O MUTUM É BONITO?

A narrativa começa com a forma liminar típica das fábulas ou contos maravilhosos: “Um certo Miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui”. (ROSA, 2006, p. 11). O procedimento revela a visão predominante da criança no enredo, mas não define a personagem (“um certo”), nem o tempo e o espaço (“morava longe... longe”), fazendo a narrativa deslizar para o universo mágico da lenda. Apesar da indefinição inicial, o cenário logo ganha caracterização geográfica mais precisa: o menino morava com a família no meio dos “Campos Gerais”, num lugar chamado Mutum, entre mata e serra. A mistura de estilos é patente e caracteriza bem o universo narrativo de Guimarães Rosa: o regionalismo do sertão mineiro combina-se com o universalismo das estórias de carochinha. O foco narrativo está na terceira pessoa, mas o narrador, desde o introito, cola-se ao olhar do personagem infantil, convertendo-o na perspectiva central da novela. Acompanhamos Miguilim no âmbito da esfera familiar, testemunhando o duro percurso de seu amadurecimento. Ele tem oito anos no começo da trama e, nas primeiras páginas, lembra-se de uma viagem que fizera um ano antes com o Tio Terêz, irmão de seu pai, a uma localidade próxima, o Sucuriju, para ser crismado pelo bispo. Da viagem, guardava lembranças embaralhadas, sendo a principal uma frase que ouvira de um moço: “O Mutum era um lugar bonito”. O menino mal pôde esperar a volta a casa para contar à mãe, cujo nome é Nhanina, o que escutara do rapaz. Quando chegou ao Mutum, correu até ela, abraçou-a e deu-lhe de presente aquela revelação. Como esperado, a mãe não alterou seu estado de permanente tristeza e insatisfação, decepcionando o filho, que volta a temer a mata próxima, passado o encanto das palavras do moço, fortes o bastante para transformar o Mutum que ele percebia com sua mentalidade infantil. Como sempre, os sentidos são muitos, e convém ir com calma. A viagem para a crisma, importante sacramento religioso, confirma o arraigado catolicismo que impera na região e se impõe sobre os pequenos através de uma série de tabus, entre eles, o medo do inferno. Além da frase ouvida, Miguilim trouxe um “santinho” da viagem, na verdade, um retrato de moça recortado do jornal, que a mãe rasgou, dizendo que era pecado. Para justificar que não trouxera mais presentes para os irmãos, contou que um embrulho caíra dentro do “corgo” (córrego), e o jacaré comera. Sensível, o garoto é inserido aos poucos no mundo das estórias, tornando-se um contador delas: “Chegasse em casa, uma estória ao Dito ele contava, mas estória toda nova, dele só, inventada de juízo (...)”. As estórias inventadas de Miguilim confirmam um talento imaginativo que não deixa de ser uma autoimagem do escritor, que também nasceu no interior mineiro. Quanto à sentença escutada do moço que já estivera no Mutum, o protagonista deixou-se envolver pela beleza das palavras, ou seja, pelo modo como foram pronunciadas, já que, sendo muito pequeno ainda, não sabia distinguir se o Mutum era ou não uma localidade bonita. O que está em jogo aqui é o caráter pré-lógico do pensamento infantil que toma a linguagem pela coisa, mais ou menos como acontece nas fórmulas do “Abracadabra” ou do “Abre-te Sésamo”. O Mutum transformou-se por meio da magia das palavras entoadas com certa força. Obviamente, a mãe, sendo adulta, não se deixou engambelar pela fantasia da criança, incapaz de curá-la da tristeza de viver naquele lugar cercado de morros, os quais, segundo ela, tapavam-lhe coisas que nunca chegaria a ver.

Nhanina, descrita como uma mulher linda, de cabelos pretos, é tomada por um sentimento melancólico que traduz sua insatisfação com o casamento e com a obrigação de viver presa no Mutum, sob as ordens rígidas do marido, Nhô Berno, e de sua tia, a Vovó Izidra, irmã de sua mãe Benvinda. A tristeza profunda da personagem (“ela se dói de viver ali”, conforme expressão do narrador) torna-se um reflexo também do lugar, pé de serra escuro, entre matos e morros, com longos meses de chuva. Num universo narrativo em que homem e natureza formam ainda um todo indiviso, o nome do Mutum se justifica: “mutum” é uma ave de penas pretas, iguais na cor aos cabelos de Nhanina, mulher frustrada e sonhadora, que vive sob o signo saturnino da bile negra: “Oê, ah, o triste recanto... ela exclamava”. (ROSA, 2006, p.12). Ademais, conforme ensina a geografia, o “mutum” é também um sopé de serra, uma localidade próxima a morros, o que sugere uma indefinição fabular proposital ao cenário em que se desenrola a narrativa. “No meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra”. (ROSA, 2006, p. 11).

A EXPULSÃO DO DEMÔNIO

Na volta a casa, Miguilim estava tão empenhado em alegrar a mãe com a frase bonita do moço de fora, que sequer deu atenção ao pai, que ralhou duramente com ele e ainda o pôs de castigo, deixando de levá-lo no dia seguinte, um domingo, à pescaria junto com os outros irmãos. Tio Terêz, homem “de bom coração”, para aliviar o peso do castigo, ensinou o garoto a armar arapuca para pegar sanhaços. Estes eram pegos e logo soltos, pois, além de não serem pássaros de gaiola, Miguilim tinha muita pena deles. O episódio narrado revela que o menino se encontra no meio de um curioso triângulo edípico, a que se acrescenta uma quarta pessoa: o tio. O amor pela mãe o coloca em permanente confronto com o pai, homem duro que vive exclusivamente para o trabalho e tenta impor a ordem e a lei sobre a casa de forma muito violenta. Castigos e surras serão constantes até o fim da narrativa. Não estamos longe da velha educação sertaneja, com larga tradição na literatura brasileira, que se impõe à força sobre a criança, obrigando-a, desde cedo, a sufocar sua sensibilidade e a introjetar os valores sociais dominantes. O trabalho imposto por Nhô Berno e as rezas comandadas por Vovó Izidra representam esteios civilizatórios que buscam conter as desordens que ameaçam a casa e a família.

No centro da narrativa, está, pois, a ameaça do incesto, simbolizado nesse amor prolongado entre mãe e filho, ambos meio aluados e desmiolados, sob a ótica pragmática do pai. Nesse contexto, Tio Terêz aparece como a quarta pessoa no triângulo familiar, simbolizando uma ameaça real que precisa ser eliminada. Tudo indica que Nhanina mantinha um romance secreto com o irmão do marido, como sugerem as alusões de Vovó Izidra à presença do demônio na casa e ao mito bíblico de Caim e Abel. Do mesmo modo, a predileção de Miguilim pelo tio mostra que o menino, através de um mecanismo de defesa típico do imaginário infantil, divide a figura paterna em duas, uma boa, outra má, a fim de lidar com os sentimentos ambivalentes do complexo de Édipo, que o levam a amar e a odiar o pai ao mesmo tempo. A cena da arapuca revela o modo como a criança lida com o sofrimento dos castigos constantes. Ao prender e soltar os sanhaços, Miguilim encena sua própria situação, buscando a liberdade através da fantasia compensatória. O episódio não deixa de evocar a famosa brincadeira do “fort-da” descrita por Freud, segundo a qual uma criança fazia desaparecer um carretel para depois reencontrá-lo, lidando assim com a ausência da mãe. Pássaros, cães, gatos, bois, cavalos, coelhos, tatus serão mencionados constantemente na narrativa, reiterando a proximidade homem / animal no universo do sertão. Além disso, Miguilim projeta constantemente sobre alguns bichos o drama da infância sofrida, procurando compensar seus medos e angústias. O menino tem pena dos animais caçados, pois enxerga neles o próprio sofrimento imposto pela brutalidade do pai. Há também a história da cachorrinha Pingo-de-Ouro. Velhinha e cega, ela e seu único filhote foram doados pelo pai a uns tropeiros que passaram pelo Mutum. Miguilim nunca se esqueceu da cena traumática: a cachorrinha puxada por uma corda, e seu cachorrinho, imagem dele mesmo, choramingando dentro de um balaio. Mais tarde, o menino-poeta inventará estórias sobre a Pingo-de-Ouro de modo a salvá-la, pela fantasia, da dura sina de vagar cega pelo mundo. O caráter poético da narrativa torna-se evidente, justificando o fato de Guimarães Rosa ter batizado de “poemas” as novelas de Corpo de Baile, cruzando assim os gêneros épico e lírico. Imerso num mundo em que os adultos judiam de crianças e bichos, Miguilim faz de sua imaginação poética, mal compreendida pelo pai, o modo de compensar as agruras da infância machucada. Incesto e traição rondam, portanto, o Mutum, obrigando Nhô Berno e Vovó Izidra a imporem os rigores da lei e da religião. A primeira cena importante da narrativa ocorre logo nos dias posteriores à volta de Miguilim e o tio do Sucuriju. Berno brigou com Nhanina, dirigiu-lhe ofensas e ameaçou surrá-la. Quem contou tudo para Miguilim foi Dito, irmão menor, mas ajuizado, que procurou afastar o outro da casa para evitar que ele fosse salvar a mãe da fúria do pai. Dito terá uma importante simbologia na novela, representando uma espécie de “criança velhinha”, perspicaz e sisuda, que conhece melhor o mundo adulto e dá conselhos a Miguilim, ajudando-a superar as etapas de sua difícil e dolorosa formação. Dito, cujo nome real é Expedito (o esperto, o diligente), ganha significação arquetípica e mítica, misto de menino e anjo, sabedor de tudo e mensageiro. Na mitologia clássica, outra importante fonte de inspiração para Guimarães Rosa, aproxima-se de Hermes, um tipo de guia, intermediário entre o divino e o humano: “Era o Dito, tirando-o por um braço. O Dito era menor mas sabia o sério, pensava ligeiro as coisas, Deus tinha dado a ele todo o juízo. E gostava, muito, de Miguilim”. (ROSA, 2006, p.19).

Miguilim e Dito dormiam na mesma cama, o que revela a intensa proximidade dos dois. Antes de dormir, eles conversavam sobre vários assuntos. Miguilim aproveitava para resolver suas dúvidas e aplacar suas angústias, repassando os acontecimentos diários. Queria saber, por exemplo, se era pecado ter saudade de cachorro, se o pai e o tio fariam as pazes, se iria para o inferno porque gostava de Mãitina, negra africana que vivia num acrescente próximo à casa. Para o protagonista, o irmão Expedito torna-se um iniciador no aprendizado das coisas do mundo, facilitando a passagem da infância para o mundo adulto. Os outros irmãos, Tomezinho, Liovaldo, Chica e Drelina, também aparecem na narrativa, mas não terão a importância capital do Dito no desenvolvimento de enredo. Além dos irmãos e da negra Mãitina, completam o rol das personagens os vaqueiros Jé e Salúz e as empregadas Maria Pretinha e Rosa, todos eles agregados ao núcleo familiar que está no centro, tendo em Nhô Berno e Vovó Izidra os pilares do poder patriarcal e religioso. Uma forte tempestade se abateu sobre o Mutum nos dias que se seguiram à volta de Miguilim da viagem ao Sucuriju. Isso obrigou Vovó Izidra a reunir a família para rezar frente ao oratório, onde ela acendia vela e queimava ramos bentos. A avó comandava o terço enquanto dizia que o demônio estava rodeando a casa, aludindo assim ao adultério de Tio Terêz e Nhanina. Miguilim sofreu muito nessa hora, pois gostaria de abraçar a mãezinha para salvá-la da humilhação pública que sofria com as indiretas de Vovó Izidra. Esta implicava também com Mãitina, que começou a entremear rezas africanas às cristãs. Sobre a negra, ex-escrava que vive como agregada na família, recai a pecha da maldição e do preconceito. Mãitina é tida como feiticeira, revelando o lugar de exclusão do negro no Brasil, onde a memória da escravidão continuava (e ainda continua) presente. Pode-se afirmar que, aos olhos de Vovó Izidra, Mãitina e Nhanina se equivalem como o mal que precisa ser punido ou extirpado. Aquela foi expulsa da sala de volta à cozinha, verdadeiro lugar do negro feiticeiro. A tempestade, simbolicamente, remete às forças descontroladas da natureza que, por sua vez, equivalem às forças do desejo indomável, incestuoso no caso de Miguilim e adúltero no caso de Nhanina e o cunhado. O fim do temporal marcou o início de uma falsa bonança na vida familiar, tendo sido aparentemente eliminadas as forças que ameaçavam sua integridade. A expulsão de Tio Terêz foi a solução drástica a que recorreu Vovó Izidra para tentar salvar o casamento sem amor de sua sobrinha: “Ah, Tio Terêz devia de ir embora, de ligeiro, ligeiro, senão o Pai já devia estar voltando por causa da chuva, podia sair homem morto daquela casa, Vovó Izidra xingava Tio Terêz de Caim que matou Abel (...)”. (ROSA, 2006, p. 25).

O CURANDEIRO DA DESGRAÇA, O
MENINO-PATO E O ENCANTADOR DE ABELHAS

Na sequência dos acontecimentos, chegou ao Mutum um homem muito pobre chamado Seo Deográcias e seu filho, o Patorí. Na verdade, ele era um curandeiro entendedor de remédios, que errava pelo sertão a pé (não tinha condições de comprar um animal de sela) para examinar adultos e, principalmente, crianças em troca de esmola. Aproveitava também para dar recados ou cobrar dívidas. O interior atrasado e miserável ressalta na figura desvalida de Seo Deográcias, que vivia pedindo dinheiro ou mantimentos. Apesar do nome (que significa “graças a Deus”), diziam que ele fora excomungado porque tinha ficado agachado dentro da igreja. Seu filho, cujo nome tem a mesma pronúncia de “paturi”, um tipo de pato selvagem, não contava com a simpatia de Miguilim. Patorí ensinava “coisas sujas” para o garoto, perguntando-lhe se sabia como as crianças nasciam. Além disso, inventava que iria se casar com Drelina e se deitar com ela na cama. Chegava ao desplante de comentar sobre a formosura das pernas de Nhanina, despertando ódio e ciúmes em Miguilim, que avançava sobre ele, mesmo sendo menor. Patorí ainda jogava lama no outro e, segundo a cozinheira Rosa, tinha olho ruim. Costumava também apontar os genitais do boi e do cavalo, dando-lhes nomes feios. Toda a caracterização do filho de Seo Deográcias revela que ele foi criado à larga, sem os limites cerceadores da ordem familiar, sabedor precoce dos assuntos sexuais que Miguilim intui de forma ainda inconsciente. Tendo nome de pato, encarna a animalidade instintiva do pobre sem eira nem beira em visível contraste com as crianças menos sabidas, criadas no recesso do lar sob o ferro da religiosidade cristã e do patriarcalismo austero, cujo esteio principal, simbolizado em Nhô Berno, repousa sobre o trabalho duro e a economia rigorosa. Seo Deográcias, com dentes amarelos e barba rala, verdadeiro monstro aos olhos da criança amedrontada, examinou Miguilim e concluiu que o menino estava muito magrinho e quase hético, que, como se sabe, é o mesmo que tuberculoso. Medroso e impressionável, este achou que fosse morrer em pouco tempo e caiu num acabrunhamento que durou dias. Do mesmo modo que ocorrera no início da novela, a mentalidade mágica da criança deixou-se impressionar pela força encantatória do verbo, isto é, da palavra, que novamente virou realidade pela boca do curandeiro, portador da desgraça, apesar do nome santo. Aqui também se destacam os conhecimentos médicos de Guimarães Rosa, que clinicou no interior mineiro antes de se dedicar à literatura e à carreira diplomática. Através da cozinheira Rosa, Miguilim descobre que tornar-se hético fazia emagrecer, tossir e cuspir sangue, e ficou impressionado pelo modo como a moça usou as palavras para descrever os efeitos da enfermidade. A partir daí, marcou dez dias para morrer. O doente imaginário, vítima da magia da palavra que virou novamente coisa, foi parar na cama, enfrentando, pela primeira vez, o medo de morrer. Na tentativa de “achar um jeito de sarar com Deus”, decidiu recorrer à Mãitina e se recordou de um dia em que, ao entrar na moradia dela, onde costumava cozinhar doces, virou-se subitamente, tomado pelo medo do escuro, achando que a morte deveria ser parecida com aquela sensação. Miguilim deu um grito e se agarrou à preta velha, que o ninou e acarinhou com aquelas palavras estranhas de sua língua, que eram bonitas e certamente falavam de algum tipo de amor. Em novo exemplo, a palavra, mero significante incompreensível, mas entoado com boniteza, tem a força de curar a criança de sua angústia. Não por acaso, o nome “Mãitina” traz, no início, um radical cuja pronúncia é a mesma de “mãe”. Apesar de discriminada, a negra africana, ex-escrava e agregada, evoca o arquétipo da grande mãe negra da senzala, cujo leite e cuja fala doce alimentaram uma infinidade de sinhozinhos brancos. Não será preciso lembrar que a profunda identificação de Miguilim com Mãitina evidencia o desejo da criança de solidarizar-se com os “marginais” da família, incluindo a mãe e o tio, que sofrem sob a batuta opressora do pai e de Vovó Izidra: Sensibilizado pela doença inventada, Miguilim, em dias de extremo sofrimento, procurou consolo também com Dito, “o irmão adulto”, buscando esclarecimentos sobre a vida que imagina estar no fim. A certa altura, perguntou se ele poderia casar com Drelina e Dito com Chica, insinuando o complexo incestuoso que ancora seu inconsciente. Com medo da morte próxima, o menino vê, na possibilidade de um casamento incestuoso ente os irmãos, um modo de fortalecer a unidade familiar, que é uma espécie de primeiro paraíso para a criança depois do nascimento e, como tal, redoma de proteção e refúgio capaz de salvá-la da angústia da morte anunciada pelas palavras mágicas do curandeiro (que, ironicamente, mata ao invés de curar). Como bem ensina a Psicanálise e a Antropologia, o tabu do incesto vige em praticamente todas as civilizações, sendo sua aceitação, ainda não completada por Miguilim, o marco da passagem da natureza para a cultura: “– Drelina, quando eu crescer você casa comigo? – Caso, Miguilim, demais. – E a Chica, casa com o Dito, pode?” (ROSA, 2006, p. 58). Miguilim acreditou tanto que iria morrer que, na manhã do décimo dia (prazo que marcara na cabecinha atormentada), começou a dar “excesso”, segundo expressão da irmã, modo sertanejo e infantil de pronunciar “acesso”, isto é, “ataque”. Durante toda a novela, a linguagem de Guimarães Rosa, como acontece em sua obra, oscila entre o regional e o poético. A sorte do garoto foi a chegada providencial de outro importante personagem, Seo Aristeu, alto, alegre, “desusado de bonito”, que adentrou seu quarto com as palavras curadoras. Novamente, a linguagem ganha o poder mítico da transformação, curando o menino do medo da morte. O homem, que parecia ter saído de uma estória, disse: “levanta, ligeiro e são, Miguilim”. Ele usa as palavras entoadas como verdadeira fórmula mágico-poética para tirar o garoto da cama, e esclarece ainda que a tuberculose, ou “tísica”, não dava naqueles Gerais porque o ar não permitia. A alegria era outra característica de Seo Aristeu. Ele cantava e tocava viola. A casa, tão opressiva no diário, ganhava outros ares com sua presença. Até Vovó Izidra, símbolo da austeridade religiosa, ria das falas dele. Nhanina também o admirava, achava-o belo, fato que condiz bem com sua índole sonhadora e sua propensão ao adultério, ambas com origem em seu casamento infeliz. Além disso, Seo Aristeu criava abelhas e delas extraía o mel, detalhe que o aproxima de um personagem da mitologia greco-romana: “E as abelhas, como vão, seo Aristeu? – De mel e mel, bem e mal, Nhô Berno, mas sempre elas diligenceiam, me respeitam como rei delas (...)”. (ROSA, 2006, p. 60). Por todas essas características que definem a personagem, podemos dizer que Seu Aristeu exerce forte influência sobre o Miguilim contador de estórias. Na mitologia clássica, Aristeu, filho de Apolo e Cirene, protegia pastores, rebanhos e caçadores. Tinha dons proféticos e de cura, sendo considerado, portanto, uma entidade benéfica. Além disso, domesticou as abelhas e foi pioneiro na plantação das oliveiras. Como outras divindades semelhantes, representava um tipo de herói civilizador, o que justifica sua introdução no universo sertanejo com o “mel” de sua fala e de suas alegres canções, símbolos de uma arte com valor terapêutico. Na novela, Seo Aristeu se despediu de Miguilim entoando uma quadrilha (um tipo de cantiga popular) que sarou de vez o menino que se julgava doente, a ponto de ele sentir muita fome e comer demais. Além disso, sendo protetor dos caçadores, como reza a mitologia grega, indicou o caminho do rastro de uma anta que vagava pelo Mutum e seria caçada no domingo próximo. A anta, animal importante do imaginário tupi, é também um símbolo totêmico do Brasil, evocando a selvageria do sertão bruto que caminha para a civilização. A fusão de mitologias, clássica e ameríndia, ressalta o caráter sincrético da criação de Guimarães Rosa, que amalgama constantemente o regional ao universal: “– Eu vou e vou e vou e vou e volto / Porque se eu for / Porque se eu for / Porque se eu for / hei de voltar... E isto se canta bem ligeiro em toada de quadrilha”. (ROSA, 2006, p. 61). Com a partida de Seo Aristeu, Miguilim, plenamente restabelecido, procurou se reaproximar da figura paterna, amada e odiada, como ficou explicado. Nhô Berno decidiu que o filho deveria começar a labutar um pouco, levando a comida para ele na roça. A intenção do pai é apressar a maturidade do garoto, inseri-lo, ainda que indiretamente, na esfera do trabalho com a atribuição diária de uma tarefa que pudesse afastá-lo da inconveniência do ócio. Desde o início, mais ou menos como a mãe, Miguilim vivia num mundo à parte, de sonho, inventando estórias, conversando com Dito e tentando lidar com os medos da primeira infância. Menino-poeta, em fase de iniciação e de descobertas, estava constantemente preocupado em descobrir a beleza do Mutum, em meio à natureza e aos animais (cachorros, gatos e pássaros). Cabe destacar aqui a presença do gato Sossõe, cujo nome tem pronúncia equivalente a “só sonho”. Nos momentos de sofrimento, contrariado com a maldade dos adultos que judiavam dos tatus, dos coelhos e também das crianças, o menino buscava consolo no bichano que nele vinha se esfregar com aqueles olhos verdes e misteriosos que evocavam o infinito (o mesmo consolo que encontrou uma vez nos braços acolhedores de Mãitina, a mãe negra): “O gato Sossõe principiava a se esfregar em Miguilim, depois deitava perto, e prazia de ser, com aquela rouqueirinha que era a alegria dele e olhava, olhava, e grossava o ronco, os olhos de um verde tão menos vazio – era uma luz, dentro de outra, dentro doutra, dentro doutra, até não ter fim.” (ROSA, 2006, p. 36).

O BILHETINHO, O BURITI E O COQUEIRO

No caminho para a roça de milho do pai, Miguilim, depois da cura milagrosa operada por Seu Aristeu, portador do mel da poesia, ia alegre e sem medo em mais uma etapa de seu sofrido aprendizado. Vencido o terror da morte, ele agora andava destemido pelos matos (um sinal de amadurecimento começa a despontar nessa nova fase). Enquanto caminhava, admirava os pássaros, maitacas, papagaios, araras e curiós, e também as plantas, a gameleira, o joá e sobretudo o buriti das veredas, planta-símbolo do sertão e da obra de Guimarães Rosa. Ao eleger o olhar da criança como a perspectiva central da narrativa, o autor se vale do olhar inaugural, ou seja, do olhar da primeira vez para ir descortinando os Campos Gerais. A visão adâmica do infante sensível torna-se a via do descortínio da beleza do sertão. Miguilim conseguiu cumprir a tarefa com sucesso, chegando à roça, onde o pai, símbolo do rigor do trabalho e da vida austera, capinava ao sol. Dessa vez não ralhou com o filho, satisfeito com o cumprimento bem-sucedido de suas ordens. A temida e odiada figura paterna reverteu em seu contrário benéfico. Em termos psicanalíticos, o pai mau cedeu lugar ao pai bom no imaginário esquizoide da criança ainda imatura, que chegou a se oferecer para vir um dia trabalhar na roça, assumindo, assim, seu lugar. O caminho do amadurecimento, segundo a lição psicanalítica, só poderá acontecer com a renúncia instintual, ou seja, a superação dos desejos incestuosos em relação à mãe, o estabelecimento posterior das pazes com o pai odiado e a introjeção de seus valores. A incorporação da “lei do pai” destrói o idílio amoroso do filho com a mãe (complexo que amarra Miguilim à Nhanina), assinalando a vitória da cultura sobre a natureza: “– Pai, quando o senhor achar que eu posso, eu venho também, ajudar o senhor a capinar roça...” (ROSA, 2006, p. 64). Na volta da roça, Miguilim encontrou Tio Terêz no caminho. Este lhe pediu que entregasse um bilhetinho a Nhanina e trouxesse a resposta no dia em que voltasse com a comida do pai. Num degrau acima das fases de sua iniciação, o menino mergulhava agora num dilema ético, preocupado em saber o que era fazer o certo ou o errado. Conversou com Dito, com a cozinheira Rosa e com a própria mãe no intuito de tomar uma decisão. Não quis nem tirar a calça na hora de dormir, porque o bilhete do tio estava no bolso e ninguém poderia descobri-lo: “– Miguilim, você hoje não tirou calça. – Amola não, Dito. Tou cansado”. (ROSA, 2006, p. 73). Miguilim rezou, mas não conseguiu pegar no sono, amedrontado, durante a longa noite, com as almas do outro mundo e com o lobisomem, superstições que vinham assombrá-lo no dificultoso processo de decidir sobre qual atitude tomar. Convém lembrar que inúmeras crendices são citadas no desenrolar da novela, compondo o imaginário popular do sertanejo num universo onde impera a mentalidade mágica. No dia seguinte, Miguilim pegou o caminho de uma outra roça onde agora o pai estava trabalhando. Procurou inventar uma série de estórias para justificar o fato de, afinal, ter decidido não entregar o bilhete à mãe, o que seria uma injustiça com o pai na sua visão (um pouco mais amadurecida). Ele, porém, decidiu não mentir. Quando tio Terêz saiu de um esconderijo atrás das árvores, confessou-lhe que não havia entregue o bilhete e pediu que ele mesmo o tirasse de seu bolso. Tio Terêz não ficou bravo, elogiou o juízo do sobrinho e disse que só queria mesmo se despedir, pois estava de partida em uma viagem. Beijou o menino e sumiu entre as árvores de onde saíra. Embora gostasse muito do tio, Miguilim acabou optando pelo lado do pai num visível processo de aprendizagem que só a progressiva maturidade pode explicar. O que ele foi percebendo aos poucos é que o objeto mau, que pune e frustra, é o mesmo objeto bom, que acolhe e satisfaz. Como ficará claro no final da narrativa, nem o pai nem Vovó Izidra eram tão ruins assim, porque, no fundo, tentavam manter a ordem para que a família não soçobrasse na miséria. No universo de Guimarães Rosa, o bem e o mal não são entidades separadas de forma maniqueísta, e convivem juntos no interior do homem e no solto do mundo. Não podemos nos esquecer aqui da célebre epígrafe do Grande Sertão: Veredas que fala do redemoinho em que viaja o diabo no meio da rua, imagem capital para entender a obra que, dentre seus vários temas, aborda a existência regida pela mistura de princípios contrastantes que se digladiam e se harmonizam. Exemplo dessas misturas aparece na sequência do enredo. Seo Deográcias passou de novo pelo Mutum, vestindo luto fechado. Patorí assassinara um rapazinho e caíra no mundo. O pai, sorumbático, vagava agora pelas fazendas, clamando pela inocência do filho e justificando que ele não tivera intenção de matar, pois a arma disparara por acidente. Seo Deográcias pedia a todos que cercassem o rapaz sem brutalidade, pois, sendo de pouca idade, não tinha verdadeira culpa e até poderia escapar da cadeia ou, quem sabe, entrar para o regime rigoroso da Marinha para consertar o mau gênio. Convém lembrar que a atitude do curandeiro em relação ao filho não esconde as relações de compadrio enraizadas no sertão bruto onde a lei frouxa permite que o privado se sobreponha ao público, e o culpado saia, enfim, inocente: “Seo Deográcias só perguntava, repetidas, se não achavam que o Patorí, sendo sem idade e sem culpa governada, não devia de escapar da cadeia”. (ROSA, 2006, p. 81). Um novo homem veio morar no Mutum para ajudar o pai na lida da roça. Ele se chamava Luisaltino, tratava muito bem as crianças e deu a elas de presente o papagaio Papaco-o-Paco. Na obra de Guimarães Rosa, os papagaios, pássaros que imitam a fala humana, aparecem com frequência, anunciando acontecimentos no enredo, como ainda veremos. Papaco-o-Paco (o nome onomatopaico sugere a fala engrolada da ave) não pronunciava de forma alguma o nome do Dito, mas logo aprendeu a falar “Miguilim, Miguilim, me dá um beijim”. A cozinheira Rosa explicou que eles eram assim mesmo, aprendiam umas coisas e outras não. Como se vê, a fala poética e musical do papagaio torna-se símbolo da beleza lírica da linguagem e dos nomes que vão brotando do sertão, microcosmo de homens, bichos e plantas em simbiose constante. A musicalidade é usada por Guimarães Rosa em sua prosa poética, acusando a emergência do lírico no âmbito da épica.

Drelina achou Luisaltino um homem bonito e muito apessoado, sugerindo, com seu comentário, a chegada de um novo elemento perturbador para o casamento de Berno e Nhanina. Seu nome, muito sugestivo, Luis (guerreiro ilustre) e Altino (o que tem estatura elevada), confirma o perigo que representa. Miguilim continuava a levar todos os dias a comida na roça próxima, confirmando sua entrada, ainda que indireta, no mundo do trabalho cotidiano, forma encontrada pelo pai para acelerar seu amadurecimento, encerrando o ócio criativo da infância sensível e sonhadora. Berno, como se nota, ficava o tempo todo nas plantações, como “negro de cativeiro” (conforme expressão de Nhanina), comparação com forte peso no país recém-saído da escravidão. Não há dúvidas de que ele represente a dura ordem civilizatória que tenta conter a dissolução dos costumes que o desejo impõe, seja através da traição de Nhanina e Terêz, seja através da excentricidade de Miguilim, menino meio bobo, meio aluado, que inventa estórias, tem medo de tudo e prolonga perigosamente o chamego com a mãe. Prova cabal da ameaça que Luisaltino passa a representar veio no dia em que ele e o resto da família foram passear numa noite de lua cheia. Vovó Izidra e o pai tiveram de se ausentar da fazenda, e Nhanina então decidiu que todos tinham o direito de executar um “passeio até onde se quisesse e se entendesse”. O sentido é óbvio. Uma brecha de liberdade se abre com a ausência de Izidra e Berno, esteios da moral castradora. A mãe e Luisaltino foram na frente (sinal de um romance que começa?), e todos subiram o morro até “para lá dos coqueiros”. O comentário de Nhanina de que gostava dos coqueiros porque não eram árvores típicas dos Gerais reitera seu desejo de fugir da prisão do Mutum, onde vige, como ficou explicado, o domínio de outra árvore-totem, o buriti das veredas. “Mãe falou que gostava deles porque não eram árvores dos Gerais: o primeiro dono que fez a casa tinha plantado aqueles, porque também dizia que queria ali outros coqueiros altos, mas que não fossem buritis”. (ROSA, 2006, p. 88) Miguilim confessa ao Dito que gostaria de avistar o mar, herdando da mãe, com quem se parece em tudo, o sonho da liberdade. Um café bem doce arrematou a noite, modo de fugir da avareza da economia doméstica da tia e do pai, que impunham o uso de pouco açúcar no ramerrão diário.

O MUTUM É BONITO

Outro personagem que passou pelo Mutum foi o menino Grivo, um pouquinho mais velho que Miguilim. Ele era órfão de pai e morava com a mãe numa vereda, próximo a um buriti (a menção à árvore enraíza o personagem no solo sertanejo). Grivo era muito, muito pobre, representando um nível mais baixo da miséria que grassa pelo sertão, tema que a novela tangencia. Em várias passagens, a vida de austeridade que Nhô Berno e Vovó Izidra impõem sobre a família é justificada como uma forma de escapar da pobreza. O pai vivia dizendo que não era dono de nada, apenas trabalhava para o dono das terras: “ Exclamava que ele era pobre, em ponto de virar miserável, pedidor de esmola, a casa não era dele, as terras ali não eram dele, o trabalho era demais”. (ROSA, 2006, p. 51). Num certo sentido, Grivo emerge como a imagem real da miséria absoluta que o pai tanto teme. Segundo Miguilim, ele não era pidão, mas a mãe sempre dava-lhe um pouco de comer. Quando passou pelo Mutum, carregava nas costas um saco de cascas de árvore para vender. Comentou ainda que chovia dentro da sua casa e que ele não podia ter cachorro porque não possuía condições de alimentá-lo. Menino desvalido e miserável, imagem explícita do sertão pobre e esquecido, Grivo é, como Miguilim, um contador de estórias, compensando a pobreza de dinheiro com a riqueza de espírito. Na novela “Cara-de-Bronze”, a sexta de Corpo de Baile, ele reaparecerá adulto como um vaqueiro andejo e narrador: “O Grivo contava uma história comprida, diferente de todas, a gente ficava logo gostando daquele menino das palavras sozinhas”. (ROSA, 2006, p. 82) Próximo ao Natal, no entanto, uma tragédia veio se abater sobre a família. Dito cortou o pé num caco de pote, adoeceu e foi para a cama. Mesmo machucado, o menino não se descuidava de saber dos acontecimentos do dia a dia da fazenda. Pedia a Miguilim que fosse indagar se a vaca tinha dado cria, se os enxadeiros estavam cumprindo suas obrigações, se o milho tinha crescido, se algum bicho havia estragado as plantações, etc.

Dito simboliza a criança sábia, que possui dons extraordinários, conhecendo já todo o funcionamento do mundo adulto. Comentou inclusive com o irmão que, no futuro, gostaria de ter uma fazenda grande, cheia de roças, pastos e gado. Infelizmente, o futuro não chegou para ele. Os dias se passaram. Dito, gemendo e sofrendo muito, teve dor de cabeça e febre alta. Além disso, pernas e nuca ficaram rígidas, sintomas sugestivos de tétano. Com sua piora, os que não choravam, rezavam. Miguilim chorou em todas as partes da casa, enfrentando a maior tristeza de sua vida. A notícia se espalhou pelas redondezas. Vieram Seo Deográcias e Seo Aristeu para uma visita. O primeiro continuava alardeando a inocência do filho, que afinal não era um menino ruim. O segundo, dessa vez, não brincava nem ria. Abraçou Miguilim e disse a ele que Dito era melhor que todos. A simbologia da criança divina é reforçada: Dito é um escolhido por Deus.

Desesperado, Miguilim corria para todos os lados em busca de socorro. Encontrou Mãitina, caminhando ao redor da casa e resmungando coisas na linguagem estranha dela. A negra também sofria pelo estado de Dito, e o menino implorou que ela fizesse todos os feitiços conhecidos para salvar o irmão. Porém, era tarde demais. Drelina trouxe a notícia de que Dito acabara de falecer. Miguilim entrou em casa, empurrando os outros, e chegou à beira da cama. Soluçava de engasgar. A morte, agora real e concreta, não mais imaginária como quando pensou que morreria hético, prepara uma nova etapa na dura escalada do amadurecimento. Dito foi levado ao cemitério próximo, e “todos os dias que depois vieram, eram tempo de doer”. (ROSA, 2006, p. 96)

Tudo perdeu o sentido, as pessoas, as coisas e os lugares. Um longo período de luto começou para Miguilim, que buscava superar o vazio imenso deixado pela morte. Ele saía perguntando a todas as pessoas sobre o Dito, do que se lembravam, o que achavam ou pensavam dele. Ele e Mãitina furtaram uma camisa, uma calça e alguns brinquedos do irmão, enterrando-os nas imediações da casa. Era um modo de ter um túmulo próximo, ilusão consoladora que compensava a distância do cemitério para onde o menino fora levado. Mantê-lo perto torna-se um meio simbólico de ressuscitá-lo e de superar a perda. Porém, alegria maior veio mesmo no dia em que Papaco-o-Paco gritou, pela primeira vez, “Dito, Expedito! Dito, Expedito”, revivendo a memória do irmão. Fiel à simbologia da criança divina, Dito morre e renasce pela fala poética do papagaio, mais uma prova do caráter mágico que a linguagem adquire na novela.

Antes de morrer, Dito chamara Miguilim e deixara-lhe um ensinamento, fato que confirma ser ele o portador de uma sabedoria destinada a auxiliar o outro no seu processo de amadurecimento. Menino diferente e mítico, imagem arquetípica da criança primordial, Dito ensina o caminho da superação dos dilemas da existência pela busca de uma unidade capaz de conciliar os opostos e aliviar o trauma da separação, da perda e da falta (marcas constitutivas do sujeito na sua errância pelo mundo terreno). Como ficou claro desde o início, Dito não era mesmo deste mundo, adquirindo ainda a simbologia da criança santificada, que morre cedo como prova da eleição divina. Depois da morte do irmão, Miguilim, sempre muito sensível, prolongou demasiadamente o luto, irritando novamente o pai. Os castigos voltaram. No âmbito pragmático da luta pela sobrevivência, não havia muito espaço para aquele despropósito de tristeza prolongada. Sob as ordens de Berno, o menino entregou-se ao trabalho diário na roça. Durante esses dias, passam pelo Mutum, em visita de quinze dias, o tio Osmundo e Liovaldo, o irmão mais velho. Num episódio em que Liovaldo judia do menino Grivo, Miguilim é tomado de ódio e parte para cima do irmão. O pai vê tudo e dá uma surra violentíssima em Miguilim. Por conta disso, sua mãe mandou que o menino fosse, por três dias, à casa do vaqueiro Salúz, enquanto a raiva do pai diminua. Durante os três dias fora, Miguilim “desprezou qualquer saudade”. Ao entrar em casa e sem falar nada a ninguém, desperta a raiva do pai mais uma vez: “– O que é que este menino xixilado está pensando? Tu toma a bênção?!” Não satisfeito, Berno soltou todos os passarinhos do filho, quebrando as gaiolas. O menino suportou tudo calado e, depois, quebrou ele mesmo o restante de seus brinquedos. A cena, bastante simbólica, assinala o fim forçado e violento da infância. No final da novela, como se vê, o pai aparece completamente descontrolado, acumulando as amarguras da labuta diária e das traições da esposa. Uma espécie de hybris prepara-lhe um fim trágico. Miguilim, por seu turno, acabou adoecendo devido aos rigores do trabalho a que foi submetido. Passou dias na cama, com febre, dores e pintas vermelhas na barriga. A doença não fica esclarecida, mas a descrição detalhada dos sintomas evidencia novamente os conhecimentos clínicos de Guimarães Rosa, médico que se tornou escritor e diplomata. Miguilim melhorou e sarou dias depois, mas o pai, incapaz de suportar por mais tempo as agruras da existência apertada e do casamento infeliz, matou Luisaltino e se enforcou com um cipó. Vovó Izidra, depois do trágico ocorrido, decidiu abandonar a família, pois Tio Terêz voltara para assumir o lugar do pai. Ele e Nhanina decidiram se casar. A lição do sábio Dito reverbera aqui. Afinal, há males que vêm para o bem. No mundo sempre misturado, como dizia o Riobaldo de Grande Sertão: Veredas, a conciliação dos opostos é o caminho da superação das tristezas: “O Dito dizia que o certo era a gente estar sempre brabo de alegre, alegre por dentro, mesmo com tudo de ruim que acontecesse, alegre nas profundas. Podia?” (ROSA, 2006, p. 128). Já curado completamente da enfermidade, Miguilim passeava pela fazenda, quando encontrou dois homens a cavalo, um deles, um senhor de fora. Este perguntou-lhe o nome, notando que o menino apertava os olhos para enxergar. Um teste simples dirimiu a dúvida. O homem mostrou-lhe os dedos, mas ele não soube dizer quantos estava vendo. Era o doutor José Lourenço, médico de Curvelo, que acabara de diagnosticar sua miopia. Durante toda a novela, o narrador dera algumas pistas de que o garoto não enxergava muito bem, mas, apenas na cena final, o leitor descobre e confirma o fato. A miopia da criança, sua capacidade de ver tudo muito de perto, confirma a excentricidade em relação ao meio bruto em que nasceu, sem muito espaço para as folgas da fantasia e da sensibilidade poética, causa principal de seus embates dolorosos com o pai. Menino-poeta e contador de estórias, Miguilim se converte finalmente em alterego de Guimarães Rosa, que também era míope e foi diagnosticado em situação semelhante por um médico que passou por Cordisburgo, sua terra natal. No desfecho da narrativa, o Dr. Lourenço emprestou seus óculos para Miguilim, que pôde enfim enxergar o Mutum em sua totalidade, confirmando a beleza do lugar, tema que o obsedava desde a volta da viagem da crisma. A convite do médico, decidiu partir para estudar na cidade, deixando o Mutum rumo a um destino novo, galgando mais um degrau na sua escalada iniciática. Antes de ir embora, perguntou ainda à mãe pelo sentido da existência de tudo, sempre curioso e inteligente, mas Nhanina, sem reposta, só pôde abraçá-lo forte, dizendo que lhe tinha muito amor. A mudança para o meio urbano e a entrada na escola, primeiro estágio do aprendizado social, só poderia mesmo se dar após a despedida da primeira e grande paixão da infância: “– Mãe, mas por que é, então, para que é que acontece tudo? – Miguilim, me abraça, meu filhinho, que eu tenho tanto amor...” (ROSA, 2006, p. 138).