MELHORES POEMAS DE OLAVO BILAC – Um Estudo




Autor

Olavo Bliac (nascido Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, no Rio de Janeiro, em 1865) foi um jornalista, escritor e poeta brasileiro. Membro criador da Academia Brasileira de Letras, Bilac foi apelidado como o “príncipe da poesia brasileira”, tendo publicado diversas obras.

Filho de Braz Martins dos Guimarães Bilac e Delfina Belmira dos Guimarães Bilac, Olavo teve uma infância e adolescência bastante comuns para sua época. Após os estudos primários e secundários, matriculou-se na Faculdade de Medicina no Rio de Janeiro e no curso de Direito em São Paulo, mas não finalizou nenhum dos dois. Dedicou-se desde cedo ao jornalismo e à literatura, popularizando-se em função de sua atuação como cronista e poeta.

Figura algo polêmica, Bilac frequentava as rodas de boemia e, em função das relações que estabeleceu no meio letrado do Rio de Janeiro, conquistou o cobiçado cargo público de inspetor escolar, ocupação dotada de substantivo relevo social.

Ainda assim, apesar do prosaísmo da profissão, sua vida foi dotada de uma coloração especial. Como diz Marisa Lajolo na introdução de sua antologia, Bilac

BILAC. Olavo. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003. p. 8.

Em seus anos de formação, o autor publicou textos publicitários e livros escolares. Aos poucos, desenvolveu seu estilo como prosador, assinando crônicas e reportagens em diversas publicações. Fundou jornais de tiragens e importâncias variadas e, por vários anos, trabalhou na Gazeta de Notícias, substituindo, na seção “A Semana”, ninguém menos que Machado de Assis.

Sua estreia oficial como poeta, nos jornais cariocas, ocorreu com a publicação do soneto "Sesta de Nero", analisado neste estudo. O poema representa muito bem as características fundamentais do estilo de época mais intimamente associado a Bilac, o Parnasianismo.

Olavo Bilac nunca se casou ou constituiu família. Morreu em 28 de dezembro de 1928, no Rio de Janeiro.

Parnasianismo

Olavo Bilac foi, provavelmente, o maior expoente do Parnasianismo na poesia brasileira. Convém compreendermos, portanto, do que se trata a “arte do parnaso”. Antes, porém, é imprescindível aludirmos para a corrente que a antecede e, em muitos aspectos, a motiva – no caso, o Romantismo.

Romantismo: uma breve retrospectiva

O Romantismo foi um movimento estético e cultural que marcou a sociedade nos séculos XVIII e XIX, rompendo com muitos dos valores clássicos e inaugurando a modernidade nas artes. Avesso a uma visão de mundo racionalista, o Romantismo valorizava a expressão de sentimentos e percepções particulares. Nesse sentido, o centro da visão de mundo romântica é o sujeito. Como diz Alfredo Bosi,

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo. Editora Cultrix, 1994. p. 93.

Ou seja, trata-se de uma arte que expressa o mundo como parte da experiência subjetiva. A natureza é tratada, muitas vezes, como continuidade do olhar, refletindo os sentimentos daquele que a habita/admira. O herói romântico, tantas vezes celebrado em poemas, é o gênio, figura superior capaz de expressar a riqueza infinita do mundo através da lente de sua vivência pessoal.

Assim sendo, no afã de se expressarem, os artistas românticos se voltaram contra a tradição e os códigos clássicos, vigentes desde a Renascença. Criaram uma arte mais livre, capaz de refletir valores pessoais. Os cenários idealizados do paisagismo árcade dão lugar “ao pitoresco e à cor local”. Formas líricas tradicionais são afrouxadas e a poesia se firma como território de experimentação subjetiva. Uma ênfase em componentes melódicos e imagens elusivas revela o desejo de expressão pura de sensações e sentimentos.

Em suma, trata-se de uma estética inovadora, que valoriza o ímpeto original e pessoalíssimo, assentando-se sobre o conceito moderno de sujeito. Uma arte que, em muitos aspectos, se choca com as regras do passado e que, de modo único, valoriza a originalidade do gênio, a transgressão e as formas mais sublimes de expressão do eu.

Parnasianismo: a contramão do Romantismo

O Parnasianismo trata-se do principal movimento literário da poesia brasileira pós-romântica. Ele se estendeu no período compreendido entre as duas décadas finais do século XIX e a primeira do século XX. Durante a década de 1870, a estética romântica entra em colapso, e passam a circular um conjunto de ideias que viriam a servir de base tanto para o Parnasianismo quanto para o Realismo, o Naturalismo (ambos mais associados à prosa) e o Simbolismo.

Quais seriam as principais divergências entre a estética romântica e a parnasiana? Segundo Antônio Carlos Secchin,

Ou seja, enquanto a poesia, para o poeta romântico, seria uma via de acesso a um universo interior de sensações e sentimentos, para o parnasiano, ela era representação precisa da realidade material.

O objetivo do parnasiano é captar o mundo ao redor e refleti-lo através da linguagem – que deve ser opulenta e rigorosa. Segundo Bosi, os traços mais relevantes do Parnasianismo seriam o “gosto da descrição nítida[...], concepções tradicionalistas sobre metro, ritmo e rima e, no fundo, o ideal da impessoalidade que partilhavam com os realistas do tempo” (BOSI, 1994, p. 219).

Não é coincidência, portanto, que muitos desses artistas se voltaram para a Antiguidade Clássica, na qual o equilíbrio das formas é sempre celebrado. E, se pensarmos na valorização do soneto, não será errado considerá-lo uma espécie de espelho “da sensação de estabilidade e segurança que o poeta exprimia no conteúdo do poema, como se a forma fosse a manifestação externa dessa solidez, duplicando no verso perfeito a concepção de um mundo sob controle” (SECCHIN, 2018, p. 114).

Os partidários do parnasianismo eram também entusiastas da ideia de “arte pela arte”, desprezando expressões populares e folclóricas. Distanciavam-se do realismo social, de uma arte engajada, participante, declarando-se, antes, universalistas, amantes das formas perfeitas, do rebuscamento retórico, da rima rica, do uso complexo de jogos verbais e figuras de linguagem. Além disso, opunham-se à tendência romântica ao transbordamento lírico. Ansiavam produzir uma poesia “objetiva”, sóbria, muitas vezes se aproximando das artes visuais (vários poemas parnasianos lembram naturezas mortas, com suas descrições de taças, urnas, leques e vasos). Segundo artigo publicado por Fabiana Câmara Furtado e Larissa Petrusk Santos Silva,

Com a chegada do Modernismo, já no século XX, o Parnasianismo passou a ser fortemente combatido. Foram criticadas as tendências decorativas do movimento, sua futilidade e excesso retórico. Contudo, queiram os modernistas admitir ou não, o Parnasianismo legou importantes lições a seus sucessores, sobretudo no que tange à demanda por rigor. Como defende Secchin,

Poemas

Melhores Poemas de Olavo Bilac é uma antologia elaborada por Marisa Lajolo, professora de Teoria Literária na Unicamp. Lajolo é doutora em Letras, tendo se dedicado por anos ao estudo da obra bilaquiana. O livro que organizou é composto por poemas de todas as fases de Bilac, publicados ao longo de sua carreira, além de algumas publicações póstumas.

Em sua seleção, Lajolo tentou privilegiar textos que vão de encontro a uma percepção mais usual e senso comum de quem foi o poeta. Em vez de compilar apenas os poemas mais flagrantemente parnasianos, a professora contemplou poemas amorosos, de cunho erótico, poemas narrativos e alguns de cunho coloquial – como os que encerram a publicação. Trata-se, portanto, de uma obra que revela ao leitor múltiplas facetas do grande autor carioca, iluminando a grandeza e o dinamismo de sua produção.

Uma vez que não poderemos comentar todos os poemas do livro, optaremos pela escolha daqueles que nos pareçam mais relevantes quando pensado o conjunto da obra de Bilac. Iniciemos com o poema que abre o livro, “A Morte de Tapir”.

A Morte de Tapir

Durante o período romântico, vários autores, como Gonçalves Dias na poesia e José de Alencar na prosa, dedicaram-se ao que se convencionou chamar de literatura indianista, relacionada à representação do índio como um mito nacional, herói primeiro, intocado pelo cinismo moderno.

Em “A Morte de Tapir”, revela-se uma espécie de indianismo tardio: trata-se de um poema narrativo, dividido em cinco partes, cada qual com seu esquema rímico, mas contando sempre com versos alexandrinos (doze sílabas), bem ao gosto clássico/parnasiano. Estes se organizam em estrofes de dimensão irregular.

O poema, diferente de várias das edificantes obras gonçalinas, possui um tom melancólico, uma vez que reflete o sentimento de um antigo guerreiro Tupinambá diante do duro fato de que seu povo fora, ao longo dos anos, exterminado.

Aberta com imagens crepusculares, estruturadas a partir do uso de linguagem rebuscada, a obra logo nos apresenta seu herói:

BILAC. Olavo. A morte de Tapir. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

A mescla de uma linguagem “elevada”, regida por sintaxe complexa, e de termos indígenas, marca a abertura do poema. Trajando um enduape, uma aiucara e um canitar, Tapir é descrito como um guerreiro primoroso, ainda que já velho. O herói não se encontra mais no ápice da forma, o que será reiterado ao longo do texto. Mas elogios a suas glórias passadas não são poupados – ele, que enfrentou a morte diversas vezes, que como ninguém “a lança aguda atirava no espaço”, homem uma vez ligeiro como uma corça, dotado de enorme força e capaz de derrubar diversos inimigos.

Em meio à natureza, no cair da noite, Tapir ouve a voz do vento: “'Tapir! Tapir! é finda a tua raça!" e “'Tapir! Tapir! Tapir! O teu poder é findo!". À medida que o sol cai, o herói é acometido pela triste noção de que, não apenas seu auge se fora, como também o de toda a sua tribo. Ele se lembra da mulher que amou, Juracy. Recorda-se da rede que a amada suspendia e do tempo que lá passavam juntos:

BILAC. Olavo. A morte de Tapir. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Em tais versos, o choque entre um passado feliz, permeado por amor e erotismo, e o presente desolador, vazio, se torna explícito. Guiado pelas indagações do vento e do rio (possíveis metáforas para sua própria consciência), Tapir encara o mais desolador dos fatos: “A tua raça é morta! ”.

À medida que tais verdades lhe são apresentadas, cresce a treva, a noite se impõe. Cercado por escuridão, Tapir, o último sobrevivente, ouve a voz da natureza, que sentencia:

BILAC. Olavo. A morte de Tapir. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

No cume do monte, acometido por tais verdades, Tapir sucumbe e rola pelo despenhadeiro.

Ao invés de um poema sobre vitórias, “A Morte de Tapir” é uma triste representação da derrocada dos povos primeiros, um canto melancólico dedicado a um passado que não volta mais, e uma tocante meditação sobre o fluir do tempo e a inexorável chegada da velhice.

A Sesta de Nero

Os três poemas que sucedem “A Morte de Tapir” dialogam com o passado, constituindo-se enquanto representações de episódios ocorridos na Roma Antiga. “A Sesta de Nero”, poema de estreia de Bilac, publicado na Gazeta da tarde, em 1884, pode ser considerado uma obra parnasiana por excelência.

Ambientado nos cômodos do palácio do imperador Nero, o texto revela um momento de deleite, no qual o extravagante tirano descansa ao lado de sua amante (e futura esposa), Pompeia Sabina.

Trata-se de um soneto que reflete muito bem as principais demandas e características parnasianas: é marcado por uso de alexandrinos, rimas ricas, sintaxe complexa, vocabulário requintado, adjetivação abundante (associada a substantivos, via de regra, bastante materiais), e representações de espaços luxuosos, de arquitetura e decoração ostentosas.

A primeira estrofe apresenta uma visão panorâmica do palácio, antes de o poema nos revelar os interiores do quarto imperial:

BILAC. Olavo. A Sesta de Nero. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Banhado em luz, o local é feito de mármore da Lacônia, com o teto repleto de prata e nácar (madrepérola) do Oriente. Tamanha riqueza é também perceptível no lugar de descanso de Nero. O imperador, num leito de marfim, cercado por tapetes de ouro, incrustados de pedras preciosas, admira o horizonte e se regala.

Nos tercetos finais, nos é chamada à atenção a graciosa presença de outras pessoas no reduto:

BILAC. Olavo. A Sesta de Nero. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Uma escrava toca sua lira de ouro e canta, enquanto os aromas perfumados da mirra vinda da Arábia se espalham. Outras escravas dançam para seu senhor, que dorme sobre os seios da amante. As imagens empregadas em tais versos remetem a um ambiente de serenidade e sensualidade.

Percebe-se no soneto o comprometimento com o ideal de arte pela arte – marcado pela busca por perfeição formal e pela representação mais precisa e elevada de um dado objeto (no caso, o palácio). Bilac não ambiciona refletir sobre a vida de Nero ou as trágicas consequências de seu relacionamento com Pompéia (que, segundo reza a lenda, resultou no assassinato da mãe do imperador, forte opositora de tal união). Não se trata de um poema narrativo, propriamente. O interesse maior é o da representação esteticamente precisa de um determinado espaço e dos corpos que o atravessam.

O poema seguinte, “O Incêndio de Roma”, tem, novamente, Nero como protagonista. Nele, contudo, “vemos” Roma sendo tragada pelas chamas. O famoso incêndio, tramado pelo próprio imperador, é descrito em detalhes, através de versos dotados de grande requinte formal. Diversos espaços relativos à cidade, como o Foro, as muralhas circundantes e o Capitólio, ardem nas palavras de Bilac. Enquanto isso, um imperador impassível a tudo observa, cercado por festivos escravos libertos, bêbados e a música das liras.

O Sonho de Marco Antonio

Fechando a trinca de poemas que remete à Antiguidade Clássica há “O Sonho de Marco Antonio”. Poema longo, dividido em três partes, ele é composto por versos decassílabos com esquema rímico constante (empregam-se rimas cruzadas ao longo de toda a obra). Dotada de forte musicalidade, sobretudo em função do uso de rimas internas, e perpassada por variadas figuras de linguagem, como a metáfora e a personificação, a obra apresenta um nível de legibilidade maior do que o dos antecessores, uma vez que possui uma sintaxe menos truncada. Ainda assim, o emprego de vocabulário “elevado” e a elegância da construção assegura-lhe um forte gosto parnasiano.

O poema se passa num contexto bastante específico: o período de derrocada do Segundo Triunvirato. Após o assassinato do imperador romano Júlio César, seu aliado militar, Marco Antonio, seu sobrinho, Caio Otávio, e o poderoso banqueiro Lépido se uniram e forjaram uma aliança política, dividindo entre si a vasta quantidade de domínios romanos. Tal acordo sofreu uma desestabilização rápida, uma vez que, antevendo em Marco Antonio um possível futuro rival, Otávio demandou fidelidade e forçou o general a se casar com sua irmã. Apesar da união, contudo, o coração de Antonio permaneceu fiel a Cleópatra, rainha do Egito. Os desenvolvimentos de tal enredo resultaram em uma guerra feroz e na derrota dos amantes, que se viram forçados a cometer suicídio.

O poema de Bilac se passa antes da tragédia. Em sua primeira parte, Marco Antonio, enquanto o resto de seu exército dorme, medita.

BILAC. Olavo. O Sonho de Marco Antonio. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Percebe-se que, mesmo em meio à guerra contra Otávio, o pensamento de Marco Antonio permanece voltado para Cleópatra. Ele se indaga acerca da importância de grandes feitos e vitórias (“Que vale a Grécia, e a Macedônia, e o enorme/ Território do Oriente, e este infinito/ E invencível exército que dorme? ”), e conclui que nada é tão importante quanto o amor da rainha. O general chega mesmo a (mentalmente) conceder a vitória a Otávio. Sequer a salvação de Roma é tão fundamental quanto o carinho da amada.

Na segunda parte do poema, narra-se o sonho de Marco Antonio. Num cômodo requintado, a bela música da harpa “ora interpreta o dissabor e o pranto/ Ora as paixões violentas interpreta”. O lugar é luxuoso, sustentado por colunas de jaspe e adornado por “Amplo dossel de seda levantina”. O leito real é igualmente belo e impressionante, e nele dorme Cleópatra, protegida pela guarda e refrescada por uma escrava, que move seu leque.

BILAC. Olavo. O Sonho de Marco Antonio. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Os dois quartetos acima representam uma mescla de idealismo e erotismo: Cleópatra é, a um só tempo, a figura inatingível, plena, que a tudo faz tremer, e a dona de um lindo “Corpo opulento e sensual”. Para o triste general que sonha, ela é o último e mais ideal dos refúgios.

Na terceira e última parte, Marco Antonio desperta. Apavorado, dá um grito, que ecoa pelo acampamento. As estrofes seguintes exploram sua desolação diante do descompasso entre o sonho e a realidade:

BILAC. Olavo. O Sonho de Marco Antonio. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Desvairado e vitimado por seu grande amor, o protagonista do poema observa o entorno, melancolicamente. Raia a aurora e, com ela, a promessa de um novo dia de agitações e batalhas. A vida seguirá seu rumo e Cleópatra permanecerá distante, inatingível.

Via Láctea



“Via Láctea” é uma coletânea de trinta e cinco sonetos, considerada um dos pontos altos da produção bilaquiana. Em sua antologia, Lajolo selecionou dezenove desses textos, tornando claro que, embora façam parte de um mesmo conjunto e sejam perpassados por temas afins, podem ser lidos de forma independente uns dos outros.

Todos eles são poemas de amor. Contudo, a perspectiva do eu-lírico tende a mudar. Enquanto certos sonetos refletem tons celebratórios, outros são repletos de melancolia; alguns expõem representações carregadas de erotismo e sensualidade, ao passo que outros exprimem visões idealizadas do amor e seus desdobramentos; por vezes, versos esquadrinham a realidade de relacionamentos, por outras, tratam de desejos platônicos e não-correspondidos; a mulher amada pode ser tanto uma entidade que a tudo ilumina quanto uma fonte de sofrimentos profundos. E é justamente essa natureza caleidoscópica, essa capacidade de ilustrar o campo amoroso das mais diversas perspectivas, que assegura à obra seu caráter particular.

Os sonetos são, como de costume quando pensamos em Bilac, organizados com enorme rigor. Seguindo a tradição petrarquiana, eles contam, invariavelmente, com versos decassílabos e distribuição regular em dois quartetos e três tercetos, o último contendo a chave de ouro (síntese da proposição geral). A métrica tende a ser exata e constante, enquanto os elaborados esquemas rímicos variam de poema para poema. Em conformidade com a demanda parnasiana, grande parte dos versos produzem rimas ricas, algumas internas. Há também emprego de variadas figuras de linguagem e criativos enjambements.

O “Soneto I” é aberto com uma bela imagem: provavelmente perdido em sonho, o eu lírico se depara com uma escada infinita, cruzando os céus e ultrapassando as estrelas. Deleitado, ele observa os degraus de ouro, os anjos com suas harpas, um cenário extasiante. No terceto final, declara:


BILAC. Olavo. Via Láctea. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

O poema de abertura de “Via Láctea”, portanto, nos apresenta uma versão amplamente idealizada do objeto amoroso, mulher que se assemelha a uma divindade, brilhando do alto com olhos celestes – plácidos, belos, inefáveis.

A perspectiva se altera no “Soneto IV”, poema bastante metafórico que versa sobre uma abertura subjetiva ao mundo em função da ocorrência do amor. Nos primeiros versos, o coração da amada é comparado a uma floresta fechada, densa, inabitada. A mulher, portanto, se distingue da figura angelical do primeiro soneto. Aqui, lidamos com um ser humano real, inacessível, dotado de tendências, provavelmente, introspectivas. Tal situação, contudo, é alterada drasticamente:

BILAC. Olavo. Via Láctea. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Percebe-se que a imagem sombria da floresta secular, com seus tigres e machados, é substituída por um cenário suave e harmonioso, animado pelo canto dos pássaros, tingido pela aurora e adornado por flores palpitantes. O sol do amor, antes ausente, passa a tudo atingir e dourar, modificando a postura da figura amada.

É interessante destacar como um poema sobre sentimentos tão elusivos é constituído quase inteiramente por imagens materiais – visuais, auditivas e tácteis. É através da exploração metafórica de tais paisagens, sonoridades e objetos que Bilac representa o universo psicológico daquela que examina, procedimento que nos parece bastante moderno e sofisticado.

Nos Sonetos VI e IX, dois dos mais belos da coletânea, um novo tema é abordado: o caráter paradoxal do amor. No primeiro, o sujeito poético deixa claro que não se abate mais pelas tristezas do passado. Conclui, contudo, que o sofrimento tem também seu encanto:

BILAC. Olavo. Via Láctea. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Alegria e tristeza coexistem no peito do amador. Muitas vezes busca ele as próprias penas, salta em direção ao pesar, a fim de gozá-lo com ambíguo prazer. Em realidade, prazer e dor, o êxtase da paixão e o tormento oriundo dela, se alimentam, levando loucos e amantes a “Na maior alegria andar chorando”.

No “Soneto IX”, marcado pela forte presença de antíteses (o que o aproxima, em certa medida, de algumas produções barrocas, como os poemas de Gregório de Matos), os efeitos contraditórios do amor são novamente explorados. O tom, entretanto, é menos generalista: trata-se de um exame da amada, agora possuidora de uma índole duvidosa.

O eu lírico abre o poema comparando seu objeto de desejo a outras mulheres. Diferentemente delas, sua amada parece possuir um temperamento algo sádico. Ao mesmo tempo que ama, ela tortura: cega o olhar que a contempla, ignora as palavras ardentes a ela lançadas, e sequer mira as dores que causa. Sim, o objeto de afeto pode ser também a fonte das mais duras dores. Vale também apontar como, ao longo do poema, imagens contraditórias se chocam, permitindo-nos entrar em contato com o inferno emocional do eu lírico, perdido que se encontra em um labirinto de impressões.

No “Soneto X”, o poeta chora as dores do não-reconhecimento. Sequioso por dividir com o mundo a intensidade de sua paixão, se vê impedido de fazê-lo (em virtude da discrição da amada? De sua indiferença? De alguma questão mais séria? As causas não são explicitadas). Implora o amador:

BILAC. Olavo. Via Láctea. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

É clara a vontade do sujeito poético de expor publicamente aquilo que o consome. E o consome com furor: nos tercetos finais, ele admite não mais suportar tamanho amor (eis, novamente, o caráter paradoxal de tal sentimento, ao mesmo tempo tão doce e amargo, tão leve e pesado). Guardá-lo em silêncio é um sacrifício enorme, de modo que o eu lírico reconhece: “Ouço em tudo teu nome, em tudo o leio”. Tal estado de espírito quase o leva a revelar, publicamente, no próprio poema, o nome de seu objeto de desejo.

O “Soneto XIII” é o mais famoso de “Via Láctea” e um dos mais famosos de Bilac, tendo o tornado um nome nacional. O poema encena uma espécie de diálogo (é muito comum, na obra do poeta, a presença de textos que se estruturam enquanto partes de uma conversa – como bem coloca Lajolo, “a lírica amorosa bilaquiana reserva um espaço importantíssimo para o interlocutor, muitas vezes trazido ao texto pela presença explícita de um pronome de segunda pessoa” (p. 14)). Logo em sua abertura, tal estrutura dialógica se expõe:

BILAC. Olavo. Via Láctea. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

O interlocutor cético censura o amigo, achando uma loucura a ideia de alguém conversar com estrelas. Ainda assim, o eu lírico, responsável por, a um só tempo, expor seus posicionamentos e parafrasear as reações do outro, assume que tem o hábito de falar com o céu estrelado, sendo a Via Láctea “como um pátio aberto”. A conversa é apenas interrompida com a chegada do sol.

Os tercetos são marcados, novamente, pela interação entre o sujeito poético e aquele que se opõe a suas práticas:

BILAC. Olavo. Via Láctea. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

A natureza amorosa do poema é tornada evidente na estrofe final: só aqueles que já amaram podem entender as verdadeiras razões para se conversar com estrelas. Apenas o amor pode suscitar uma forma de “comunicação cósmica”.

Curiosamente, embora lide com ideias de fundo romântico e se afaste dos preceitos da “objetividade” parnasiana, o poema mantém sua relação estreita com termos materiais e adjetivações precisas. O uso recorrente de enjambements provoca um ritmo truncado, que parece chamar a atenção do leitor para a própria forma do texto. Essas particularidades formais afastam o soneto do campo romântico, assegurando-lhe certa filiação parnasiana.

Os sonetos XVII e XVIII assemelham-se em função de suas cargas eróticas. O primeiro pinta um cenário enormemente sensual, coberto por névoa e atravessado por perfumes de rosas e sombras vaporosas:

BILAC. Olavo. Via Láctea. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Os últimos versos parecem apontar para uma espécie de êxtase, no qual os corpos se misturam em um cenário indefinido, ainda que palpitante. O “Soneto XVIII” também é perpassado por erotismo, embora mantenha, simultaneamente, uma dimensão metalinguística. O poeta reflete sobre seus versos: eles se transformam em via de acesso à amada, percorrendo seu corpo, beijando sua boca, subindo e descendo, seu hálito sorvendo. No exercício da poesia, o poeta atinge o corpo desejado, e, ao representá-lo, sente como se o possuísse.

Nos sonetos XIX e XX, retornamos ao território da idealização. O primeiro sobrepõe à própria natureza a mulher que cruza as ruas, trajando vestes simples, e rivalizando com a beleza das rosas. Falas misteriosas saídas das moitas a saúdam e celebram. A luz a beija, o vento chora, as flores se curvam e as aves a saúdam: todo o espaço natural e seus representantes se prostram diante da magnificência da amada.

Não se trata do primeiro poema de Bilac a comparar o objeto amoroso a paisagens, animais e afins, mas é, certamente, um dos mais belos. Nele, a idealização é assinalada não através do uso de vocabulário elusivo, hermético, mas sim por meio da personificação de entidades materiais. O belo em estado mais absoluto é representado indiretamente pela comparação com o mundano.

No “Soneto XX”, um eu lírico se deprecia diante daquela que domina sua afeição. O olhar dela, como um largo rio “de ondas de ouro e de luz” penetra-lhe o peito, comparado ao “ermo de um bosque tenebroso e frio”. A posição do amante é sempre de adoração e inferioridade. Ele requisita falas que acendem as estrelas no céu sombrio, e implora:

BILAC. Olavo. Via Láctea. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Sugerindo que a voz da mulher abriga a de uma sereia, ele a eleva. Afinal, os cantos das sereias, de acordo com a mitologia grega, são dotados de beleza irresistível (responsável, inclusive, pela desgraça de muitos marinheiros). O soneto, portanto, estabelece relações entre a amada e uma gama de imagens atraentes e mágicas.

No “Soneto XXVI”, o canto da amada é responsável por elevar a alma do eu lírico, que ascende em direção ao paraíso, cercada por arcanjos e pelo som das cítaras. A alma enlevada percorre diferentes países, encetando movimentos que miram a arquitetura do canto. Finalmente, quando expira a voz luminosa, a alma do amador despenca:

BILAC. Olavo. Via Láctea. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Curiosamente, a grandiosa atmosfera metafísica desse poema (e, novamente, a visão idealizada que expressa acerca do objeto amoroso) se choca com a natureza algo coloquial do poema seguinte. No “Soneto XXVII”, que, mais uma vez, possui uma estruturação dialógica, o eu lírico ouve de uma estrela que sua amada fará aniversário. Tal estrela é, obviamente, uma metáfora, usada para representar certa garota bela e traiçoeira. O eu lírico não acredita e acaba por ignorar a data, apenas para se arrepender amargamente no dia seguinte (momento da enunciação do texto). Não deixam de ser curiosos a escolha do termo “estrela” para designar a amiga da namorada, e o desfecho histriônico, com laivos trágicos, concedendo força simbólica e certa grandeza a um poema de circunstância, que parece versar sobre acontecimentos bastante banais.

No “Soneto XXVIII”, o sujeito poético guia um artista em sua tarefa de pintar uma paisagem. A descrição de cada aspecto do espaço e de seus elementos constitutivos é minuciosa, carregada de termos dotados de enorme solidez. Nos tercetos, contudo, o poeta pede ao pintor: “Antes busques as cores da tristeza, / Poupando o escrínio das alegres tintas”. Fechando um poema fortemente parnasiano, uma melancólica nota romântica: que a organização do mundo reflita os sentimentos que carrego no peito.

O “Soneto XXIX” lida com tema semelhante. O sujeito poético, observando o céu, se lembra de um momento passado de grande aflição. Tendo emitido um furioso grito sob um céu que “fulgia plácido e infinito”, o homem percebera um choro no rumor do vento. Ele segue, então, personificando a natureza, conversando com o “piedoso céu” e intuindo a presença de uma Via Láctea que se desenrolava “Como um jorro de lágrimas ardentes”.

Há indícios no poema de que o espaço circundante adquire formas que dialogam com os sentimentos do poeta (o vento chora, o céu sente, a Via Láctea é triste): espelham-se, em certa medida, o desespero subjetivo e a forma do mundo. E embora o transbordamento lírico típico da estética romântica não se encontre tão presente (a linguagem é mais contida e sóbria), sobrevive a noção de que, no auge do sofrimento, o homem é capaz de encontrar algum conforto na natureza.

Nos sonetos XXX e XXXI, o eu lírico lamenta a distância da amada. O primeiro contempla um indivíduo exilado que chora – não apenas por ausência de afeto, mas também pela falta do corpo. Na contramão dos poemas idealistas que colocam a amada num altar quase inatingível, o soneto exalta as formas físicas do objeto de afeição, sua sensualidade e os prazeres que tem a ofertar. Valendo-se de um jogo conceptista que, mais uma vez, lembra a poesia dos mestres barrocos, o sujeito poético assume que

BILAC. Olavo. Via Láctea. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Essencialmente materialista, o poema desvela outra dimensão do jogo amoroso: para além do deleite místico, das ascensões da alma, das dores e dos suplícios, há o sexo, o corpo e a vida pulsante da matéria.

O sujeito exilado também chora suas mágoas no “Soneto XXXI”. Contudo, o enfoque aqui não é erótico. O eu lírico chora, à distância, sempre que o nome da amada é murmurado. O segundo quarteto sugere que se encontra em terra estrangeira, e que a mera audição de termos da linguagem natal é suficiente para provocar grandes tristezas. A maior delas, contudo, é desencadeada pelo nome da mulher – nome que, de forma muito bela, ele associa à sua pátria:

BILAC. Olavo. Via Láctea. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

O poema parece propor uma sucinta reflexão acerca da saudade, essa estranha mistura de nostalgia e perda, de celebração e melancolia. Ouvir o nome da mulher-pátria, essa pessoa especial cuja existência rememorada remete a todo um universo, é, simultaneamente, ter acesso à eterna primavera, à luz de uma terra abençoada e a todo o sofrimento que a distância engendra. Nesse sentido, o poema também versa sobre o potencial da própria linguagem de gerar realidades, alimentar sentimentos e transportar indivíduos no tempo e no espaço.

Assim como no “Soneto XXVIII”, o sujeito poético do “Soneto XXXII” descreve a obra de outro artista, valendo-se da linguagem poética a fim de parafraseá-la. Aqui o poeta se depara com a representação de sua relação amorosa em outro poema. Assim como no “Soneto XXXI”, o poder da linguagem é novamente tematizado – após a leitura do livro que tanto o encanta, o sujeito assume:

BILAC. Olavo. Via Láctea. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Os dois últimos poemas selecionados por Lajolo, “Soneto XXXIII” e “Soneto XXXIV”, dedicam-se a analisar cenas mais corriqueiras: enquanto o primeiro, através do uso de metáforas naturais (são evocados pássaros, climas, céus, nuvens, o sol), descreve a partida da amada rumo a uma vida mais livre e seu retorno saudoso e arrependido, o posterior, muito graciosamente, pinta uma cena na qual uma jovem tímida ouve os passos do amado, aproxima-se titubeantemente dele e, finalmente, o abraça com entusiasmo.

De modo leve e delicado, Bilac fecha seu variegado ciclo de poemas amorosos, legando ao leitor um compêndio poético das dinâmicas, fissuras, fantasias e possibilidades abertas pelo amor.

Abyssus

“Abyssus” é mais um rigoroso soneto bilaquiano, que conta com versos decassílabos, um esquema de rimas interpoladas, emprego intermitente de rimas ricas e uso bastante recorrente do polissíndeto. Trata-se de uma descrição poética de figura feminina ameaçadora e ambígua. O poeta atesta logo na abertura do poema:

BILAC. Olavo. Abyssus. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Espécie de “femme fatale”, a mulher representada encarna um fundo senso de ambiguidade: ao mesmo tempo bela e traidora, ela beija e assassina, gerando um efeito irresistível sobre aquele que a contempla.

Pertencente à vasta categoria de poemas eróticos de Bilac, “Abyssus” versa acerca do poder sexual de uma pessoa capaz de guiar seus admiradores rumo à total ruína. O título do texto, termo latino cuja tradução é “abismo” (no sentido de inferno), aponta para a própria protagonista, mulher que seduz, convida, fascina e suga sua vítima em direção às profundezas do tormento amoroso. Curiosamente, o eu lírico parece possuir consciência acerca das artimanhas da perversa amada, mas o conhecimento não é suficiente para salvá-lo: o efeito gerado é forte demais.

A comparação metafórica entre a mulher e o abismo profundo é fortalecida nos tercetos:

BILAC. Olavo. Abyssus. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Encantado pelas flores (possível metáfora para a beleza da sedutora e seus métodos de conquista), o homem vitimado “Vacila e grita, luta e se ensanguenta, / E rola, e tomba, e se espedaça, e morre…”. O uso do polissíndeto amplia a sensação de que nos deparamos com um processo de destruição gradual, ainda que dotado de consequências permanentes.

Pantum

“Pantum” é mais um poema longo a integrar a seleção de Marisa Lajolo. Seu título possui um significado bastante específico: composição poética originária da Malásia, o pantum é um tipo de poema formado por quartetos (estruturados, geralmente, a partir de decassílabos, e perpassados por rimas cruzadas), nos quais o 2º e o 4º versos de uma estrofe reaparecem como 1º e 3º da estrofe seguinte. Uma de suas regras é que o poema deve terminar com o verso que o abriu.

Bilac lança mão desses procedimentos em seu próprio texto, concedendo-lhe forte musicalidade. Além disso, trata-se de obra, a um só tempo, carregada de plasticidade, em função de suas imagens materiais, e algo melancólica, remetendo, em certa medida, à lírica baudelairiana (difícil, ao ler “Pantum”, não lembrar da famosa passante imortalizada pelo poeta francês).

As primeiras estrofes do poema descrevem uma paisagem avistada pelo eu lírico, composta por um pálido sol em despedida, um pássaro cantante, a luz crepuscular e um tranquilo coqueiral. Eis que, em meio a tal paisagem, o sujeito poético distingue a presença de alguém:

BILAC. Olavo. Pantum. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Não sabemos ao certo quem é a mulher que passa (um antigo amor? Uma mera desconhecida?), mas torna-se evidente o impacto que sua visão causa no poeta. Ele examina o vulto da caminhante, os passos que deixa na areia – e se ressente do fato de ela não reciprocar seu olhar. Cruzando o espaço como um raio, ela parece incitar sentimentos de curiosidade e maravilhamento. Finalmente, sai do campo de visão do eu lírico, que admite:

BILAC. Olavo. Pantum. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Depois que a mulher desaparece, estrelas piscam como lâmpadas trementes, anunciando o pleno estabelecimento da noite. O luar nasce entre as nuvens, luzem os pirilampos, a terra toda dorme – e o melancólico poeta segue pensando na fugidia imagem da mulher que passara.

Embora “Pantum” possua a disciplina parnasiana, evidenciada no modo como a realidade é representada (sempre de forma precisa, “clássica”, sem se valer de imagens herméticas, vagas, “dissonantes”), destacando-se grande sobriedade e desejo por concretude, é possível argumentar que traços românticos perpassam o texto. A imagem da amada intangível, figura espectral que atormenta o amador/expectador, castigando-o à medida que se espalha pelo mundo e concentra sua atenção, é um topoi bastante caro à poesia romântica. Aqui, Bilac parece ressuscitá-lo, concedendo-lhe uma roupagem mais moderna.

Nel Mezzo Del Camin...

BILAC. Olavo. Nel Mezzo Del Camin. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Por longos anos, as vidas de ambos os amantes estiveram entrelaçadas, suas almas, povoadas de sonhos. A presença da mulher encantava o sujeito poético, cuja vista era seduzida pela luz do olhar que contemplava. Mas os anos passaram. E, agora, parte a mulher amada. Em seus olhos, nenhum sinal de pranto ou comoção.

BILAC. Olavo. Nel Mezzo Del Camin. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Diferentemente do furor de seus poemas eróticos, do clima de maravilhamento de seus cantos idealizados, do encanto propiciado por seus sonetos mais fortemente parnasianos (com suas descrições plásticas de espaços e objetos metaforicamente associados aos prazeres do amor) ou mesmo da escuridão revoltosa que consome algumas de suas obras mais desesperadas, deparamo-nos em “Nel Mezzo Del Camin” com a representação de emoções contidas, uma melancolia abafada – um tipo de dor madura. O sofrimento assinalado é sincero e profundo, ainda que resultado de anos de desgaste e dissabor. Fica ao fim uma nota singular de desnorteamento e uma sensação de perda inexorável.

Inania Verba

Dois poemas, “A Avenida de Lágrimas” e “Inania Verba”, dispostos em sequência na antologia organizada por Marisa Lajolo, embora bastante diversos, possuem um ponto em comum: são poemas metalinguísticos – ou seja, refletem sobre a própria atividade do poeta. Porém, enquanto o primeiro remete à capacidade do artista de encapsular sentimentos e os eternizar através da linguagem (“O aroma dessa flor, que o teu martírio encerra, / Se imortalizará, pelas almas disperso”), “Inania Verba” lida com o oposto: refere-se à impotência da palavra.

Soneto estruturado por versos alexandrinos, com rimas interpoladas e construção bastante complexa, atravessada por antíteses, polissíndetos e outras figuras de linguagem, além de contar com o emprego criativo e rigoroso de parônimos (escrava/escreve, lava/leve), “Inania Verbia” (termo latino que quer dizer “palavra inútil”) evidencia a impotência do vate diante de conteúdos que escapam à linguagem, que não permitem ser representados. O sentimento gerado por essa impossibilidade, como deixam claros os quartetos de abertura, é de enorme frustração:

BILAC. Olavo. Inania Verba.Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

O poeta talha seus versos se entregando por completo – se doa, arde, sangra, assemelha-se mesmo a Cristo na cruz – e o que num momento admirava, logo se lhe apresenta como lodo. O pensamento ferve, a forma congela; a palavra não dá conta da Ideia, é pesada demais. Daí brota o tormento interior: como lidar com um turbilhão de sensações e não conseguir representá-lo, transformá-lo em forma, em arte, em poesia? Não há molde que abrace o indizível, as “ânsias infinitas do sonho”, o céu fugidio.

BILAC. Olavo. Inania Verba. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Ao falar sobre o indizível, tematizar o sofrimento do poeta diante da matéria intraduzível da vida, de tudo o que o desafia e depõe, Bilac parece questionar as bases mesmas do próprio parnasianismo. Apontando as limitações do esteta, o autor questiona o mito parnasiano da objetividade, desconstruindo a imagem do poeta-engenheiro, figura racional, sempre pronta a projetar sobre o mundo a justeza de seus versos. Não, aqui Bilac parece assumir: há limites para os trabalhadores das palavras. Por mais belas as expressões que cunhem, existem realidades que não conseguem representar.

In Extremis

Um dos poemas mais elogiados de Bilac, “In Extremis” concilia a estética parnasiana com uma certa tendência decadentista. Marcado pela forte contraposição de opostos, o poema se refere a uma situação mórbida: um moribundo observa sua amada, deitado em seu leito de morte.

Possuindo versos alexandrinos rimados (com esquema de rimas emparelhadas), organizados em estrofes com dimensões irregulares, o poema, logo em suas linhas iniciais, revela o sofrimento do eu lírico. Dominado pela angústia, ele exclama:

BILAC. Olavo. In Extremis. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Em negação, o pobre sujeito contempla o olhar choroso da amada, que por ele vela. Pensa, então, no mundo exterior, carregado de sol, de azul, do esplendor da primavera. Os pássaros, o vento, as rosas, o arvoredo, tudo parece cheio de vida e intensidade. Em oposição, nos limites de seu quarto, apenas o silêncio, o medo e a morte.

O eu lírico mantém a amada em seu coração. Ela o observa se retorcendo diante do fim que se aproxima. Finalmente, com o peito pleno de dor e revolta, o homem agonizante lamenta:

BILAC. Olavo. In Extremis. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Novamente, são acentuados os enormes contrastes entre a preciosa vida e a morte sombria que se aproxima. O uso do polissíndeto transmite uma certa impressão de impaciência e revolta. O sujeito poético é agora vítima dos piores sentimentos. A “delícia da vida” adquire a seus olhos uma tonalidade ambígua: ao mesmo tempo em que a encara com alguma admiração, ele lamenta sua existência, a inveja, contrapondo-a a seu estado de deterioração.

Poema desencantado, que nos lembra, dentre outras, as obras de Edgar Allan Poe, “In Extremis” prima por conciliar um enorme controle formal – tornado evidente, por exemplo, pelo uso magistral de antíteses, responsáveis por gerar um efeito poderoso de desolação – e um nível de arrebatamento emocional bastante elevado.

A Alvorada do Amor

O herético “A Alvorada do Amor” remete ao livro de Gênesis na Bíblia, dando voz a um de seus personagens mais notórios: Adão. Composto por versos alexandrinos (agrupados, assim como no caso de “In Extremis”, em estrofes de tamanho irregular), possuindo rimas emparelhadas e uma construção dialógica que lhe concede um leve tom narrativo, o poema é aberto pelas palavras de um eu lírico que se assemelha a um narrador. Ele ajuda o leitor a se situar, descrevendo, de forma poética e bastante concisa, a Queda do paraíso. Perplexo em meio ao deserto, Adão observa Eva e se dirige a ela. A partir desse ponto, ocorre no texto uma variação do foco narrativo: o primeiro eu lírico concede a enunciação a Adão, que diz:

BILAC. Olavo. A Alvorada do Amor. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Uma atmosfera profana embala tais palavras. Apaixonado, Adão aconselha Eva a se entregar ao amor e renovar o pecado. Seria nele que se encontram as fontes dos maiores prazeres. Na estrofe seguinte, o sujeito poético descreve com detalhes os grandes horrores da Criação, apresentando uma imagem sombria e violenta da natureza. Ao invés de um espaço antropomórfico, construído em conformidade com os anseios humanos, a natureza repele os amantes: a cólera divina torce as árvores, incita a explosão de vulcões, encrespa as águas, etc. O mundo é lido como um lugar ameaçador e destrutivo.

Contudo, há uma saída para o sofrimento originado por tamanha maldição. Como um Nietzsche avant la lettre, Adão convida à dor: que as chamas ardam os pés da amada, que seu corpo seja mordido pelo sol, que feras uivem e serpentes se espalhem. Afinal,

BILAC. Olavo. A Alvorada do Amor. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

O amor se impõe como veículo para a redenção. Não aquela concebida por Deus, mas a extraída do cerne do próprio prazer. De acordo com o amador, toda a natureza pode se aniquilar, desde que a amada permaneça viva e apaixonada. De modo, a um só tempo, idealista e desafiador, Adão indaga: “E se, em torno ao teu corpo encantador e nu / Tudo morrer, que importa?”. Nada, já que Eva, ao pecar, encarna e traduz a mais funda beleza do mundo.

1Há um pequeno erro de digitação no livro: ao invés de "carne" lê-se "carpe". Carne é o termo correto

Num desfecho arrebatador, o grande pecador se volta frontalmente contra o Pai, asseverando a superioridade do amor humano:

BILAC. Olavo. A Alvorada do Amor. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

Elogio da entrega amorosa, “A Alvorada do Amor” rebaixa o amor divino ao compará-lo com a potência titânica do amor humano. Assim, Bilac subverte o mito cristão, elevando Adão à condição de herói romântico – arrebatado, intenso e festivamente pecaminoso.

Vila Rica

“Vila Rica” é um soneto com versos alexandrinos, marcado pelo emprego de linguagem culta, esquema de rimas alternadas (muitas delas ricas) e uma variedade de figuras de linguagem, como a metáfora, a metonímia, a prosopopeia e o símile. O soneto á também atravessado por antíteses, que reforçam os aspectos paradoxais da cidade representada – no caso, Vila Rica, atual Ouro Preto.

A primeira estrofe já apresenta a imagem mais recorrente e importante do poema (que adquirirá diferentes significados ao longo do texto): o ouro. Especificamente, o “ouro fulvo do ocaso”, ou seja, o brilho do crepúsculo que cobre as casas. Mais uma vez, Bilac contempla o poente, momento em que o dia se despede e a noite se aproxima. Essa imagem ambígua é bastante explorada na obra do poeta, e aqui se justifica tanto de uma perspectiva visual, associada à composição de um cenário de enorme beleza, quanto de uma perspectiva simbólica, relacionada à consolidação de uma atmosfera melancólica, que reflete a identidade mesma da pequena cidade.

A estrofe também faz menção às minas de Vila Rica, que sangram em “laivos de ouro”. Caracterizadas como feridas deixadas na “torturada entranha” da terra nobre, as minas são um ponto de partida para a confecção de jogos antitéticos: são ricas e pobres, belíssimas e vitimadas, marcos no interior de uma terra ambígua, de passado glorioso e presente declinante. Na estrofe seguinte, a imagem do ouro se relaciona ao sol, que morre na cerração. Uma oração soa tristemente e o crepúsculo cai sobre a urbe como um sacramento dedicado aos mortos. A imagem é, a um só tempo, bela e mórbida, e parece refletir tanto o estado físico da cidade, quanto sua cultura e essência. Nesse espaço paradoxal, vida e morte coexistem o tempo todo.

Tal imagem é expandida nos tercetos:

BILAC. Olavo. Vila Rica. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

O céu é, agora, comparado a um ouro enegrecido. A neblina murmura como uma procissão espectral que se move. São ouvidos o sino e um verso de Dirceu 2 , enquanto astros chovem. Trata-se de um desfecho triste e misterioso.

Aludindo às terríveis consequências da exploração de ouro em Vila Rica, que tantas marcas deixaram, à beleza decadente dos espaços, à funda religiosidade do povo e à melancolia que reina pelas casas, ruas e vielas, o soneto de Bilac apresenta uma imagem penetrante de uma geografia perpassada por contrastes e carregada de História.

2 Marília de Dirceu é a obra essencial do Arcadismo brasileiro, assinada pelo poeta vila-riquenho Tomás Antônio Gonzaga.

Medicina

Os últimos onze poemas da antologia organizada por Marisa Lajolo não fazem parte da Obra Reunida de Olavo Bilac 3 . Trata-se de versos licenciosos, muitos de tendência satírica, que vão na contramão de nossas expectativas. Brincalhões, sensuais, irônicos e, de uma perspectiva formal, menos sisudos, os poemas de tal seção oferecem uma visão diferente de seu autor, tão associado ao parnasianismo e a suas demandas por preciosismo, rigor e seriedade. O conjunto contempla desde paródias políticas de Hamlet e das famosas “Cartas Chilenas”, de Tomás Antônio Gonzaga (por Bilac transformadas em “Cartas Chinesas”...), até poemas escancaradamente eróticos (beirando o pornográfico). Ter contato com tal variedade amplia nossa percepção acerca dos alcances da obra de Bilac.

O primeiro destes textos presente em Melhores Poemas é “Medicina”. Composto por nove quartetos, ele é marcado pela presença de redondilhas menores, metro muito comumente associado a composições populares. Em termos rímicos, observa-se o uso de rimas alternadas. O vocabulário é acessível, a sintaxe é bastante direta.

Trata-se de um poema narrativo, que conta a estória de Rita Rosa. A garota vai a uma consulta com o Padre Jacinto Prior, em função de uma inflamação no dedo. O diagnóstico do especialista é simples: “A sua enfermidade / Tem um remédio: o calor”. Um dia depois, Rita volta “Bela e cheia de rubor”: ela aplicara calor ao dedo e tudo dera certo. Diante da felicidade da moça, o padre admite, ele mesmo, estar com problema semelhante: “Eu também tenho um tumor... / Tão grande que me alucina...”. É a vez de Rita oferecer auxílio:

BILAC. Olavo. Medicina. Melhores poemas. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003.

3Tanto a Obra Reunida, publicada em 1996 pela Nova Aguilar, quanto a Obra Completa, da Livraria Francisco Alves (1943), compilam apenas a dita “poesia séria” de Bilac. Muitos de seus versos de circunstância, com tom mais satírico e linguagem popularesca, foram publicados ao longo dos anos sob pseudônimo. Alguns se encontram também no livro Contos Para Velhos.

O desfecho é, claramente, carregado de erotismo e zombaria. O emprego de reticências, que dá à fala um tom arfante, e o uso do trocadilho (Jacinto/ já sinto), ampliando o potencial cômico da obra, expandem sua óbvia malícia. Muito distante dos campos crepusculares, dos edifícios gloriosos e dos grandes enlaces amorosos representados em poemas anteriores, “Medicina” nos revela um Bilac lúdico, cáustico, prosaico e capaz de se valer da linguagem de um modo bastante particular, distinto daquele usualmente associado a seu estilo.