Este romance pode ser classificado como pós-modernista, no sentido cronológico, já que foi publicado em 2002, data já distante do esgotamento da chamada estética modernista1, cujas últimas produções representativas datam do início da segunda metade do século XX. Esse rótulo estilístico justifica-se também por esta narrativa apresentar nítidos traços do que a crítica especializada convencionou chamar de estética pós-moderna, conceito que ainda está sendo elaborado.
O chamado Pós-moderno é fruto do capitalismo tardio, que tenta incluir todas as culturas vivas nos mercados consumidores (o vale-tudo mercadológico). Uma das bases desse conceito é a ideia de aldeia global, colocada em circulação por Mac Luhan, na década de oitenta do século XX, decorrente da agilização dos meios de comunicação de massa, que provocou uma compressão do tempo e do espaço, da qual resultaram significativas alterações nos valores culturais e na visão de mundo das pessoas.
Para o âmbito deste trabalho, basta um quadro sintético das principais características desse estilo de cultura contemporâneo que, de certa forma, estão presentes em Nove Noites:
• Crise do conceito de Verdade. A noção de realidade objetiva torna-se suspeita. O narrador pós-moderno sabe que a verdade é uma construção de linguagem. Até a chamada realidade torna-se uma instância instável, ambígua. Há uma frase consagrada que, para muitos, define o espírito pós-moderno: “Tudo que é sólido se desmancha no ar”. Identifica-se em Nove Noites uma frase que, a meu ver, corresponde à que acabo de citar: “O que ele (o protagonista Buell Quain) me contava se desmanchava como as nuvens” (CARVALHO, Bernardo. Nove Noites. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 48).
• Quebra da Verossimilhança (o que convence como verdade, mesmo não sendo verdade). Claro que, neste romance, não são muitas as quebras de verossimilhança. Por exemplo, as explicações de Quain para deixar a aldeia são verossímeis: o abandono da mãe pelo pai, a traição da eventual esposa com o irmão dele e, para os brancos, a existência de uma doença contagiosa. Mas o americano que estava no leito de hospital ser Andrew Parsons, o velho fotógrafo que tinha vindo para o Brasil em 1940 e teria fotografado Quain numa praia, constitui uma coincidência por demais incrível, inverossímil.
• A Virtualidade (algo suscetível de se realizar, potencial, mas não palpável, material) e a Digitalidade (um neologismo que designa a mecânica do acesso, através das pontas dos dedos, ao continente simbólico da internet) assumem o protagonismo na área dos conceitos.
• Desqualificação dos grandes sistemas ideológicos explicativos. Desintegram-se as identidades sociais, culturais e as fronteiras entre o público e o privado.
• Prevalecimento das imagens sobre as coisas.
• Uma rejeição cada vez maior de autoridades e de hierarquias.
• Um culto ao hedonismo (o prazer acima de tudo, a qualquer custo) e ao narcisismo, tão bem traduzido nestas palavras de uma canção popular: “eu me amo, eu me adoro”.
• Dissolução das certezas e desaparecimento das utopias (tempos pós-utópicos).
• Uma grande transformação no campo da sexualidade e das relações de gêneros.
• Um último traço pós-moderno, muito presente em Nove Noites, é a justaposição paradoxal, ou seja, situações contraditórias colocadas lado a lado, tensionadas, mas sem se privilegiar uma ou outra perspectiva ou ponto de vista. É preciso aprender a conviver com a ambivalência. Um exemplo concreto nesta narrativa de Bernardo Carvalho: a mistura de pessoas reais e personagens (ou pessoas reais sendo tratadas como personagens de ficção). Transcrevemos outro exemplo de justaposição paradoxal na linguagem de um dos narradores: “uma mulher corcunda, ao mesmo tempo frágil e forte, curvada para a frente [...]” (CARVALHO, op. cit. p.107).
Nove noites é um produto literário da pós-modernidade; para isso concorrem algumas situações ligadas ao quadro teórico acima esboçado: a diluição dos limites entre realidade e ficção. Por exemplo: vários antropólogos conhecidos na vida real são focalizados em situações ficcionais, tendo tratamento semelhante ao de personagens literárias. Por exemplo: na página 31, está reproduzida uma foto de 1939, na qual aparecem antropólogos famosos como Luiz de Castro Faria, Ruth Landes e o francês Claude Lévi-Strauss. Esse expediente técnico suscita um “efeito de realidade”. Entretanto, poucas linhas adiante, o narrador 2 escreve que “aquela imagem não deixa de ser, de certa forma, um retrato dele (Buell), pela ausência. Há em toda fotografia um elemento fantasmagórico” (CARVALHO, op. cit. p.32 – parênteses e grifos nossos). Essa declaração relativiza o verismo sugerido pela fotografia. Essa conjunção de dois códigos semióticos (palavra e fotografia) é bastante valorizada na pós-modernidade.
A estética pós-moderna cultua o recurso do duplo e do simulacro (cópia, falsificação, imitação). Vejamos alguns exemplos de duplos, algumas vezes em situações forçadas que comprometem a verossimilhança do texto:
• Uma notícia sobre uma morte de um antropólogo análoga ao suicídio de Buell (o duplo), veiculada em jornal no dia 12/05/2001, bem como a última cena do romance do rapaz, no avião, com o objetivo de pesquisar os índios brasileiros (outro duplo do antropólogo).
• O narratário 1, o fotógrafo Andrew Parsons, a quem eram endereçadas as intervenções narrativas de Manoel Perna (narrador 1), quando estava internado em um quarto de hospital, no qual estava também o pai do narrador-jornalista (narrador 2), exclama o nome “Bill Cohen”, que evoca imediatamente Buell Quain, passando a ser um duplo do nome do protagonista 1.
• A mãe de Buell Quain era aflita e solitária; Buell também era aflito e solitário.
• Tanto Buell Quain, quanto o narrador-detetive (narrador 2) eram sujeitos viajantes, desprovidos de uma identidade fixa e permanente (errância identitária), além de ambos terem pais separados e não quererem estabelecer relações afetivas com os índios.
• Tanto Buell Quain, quanto seu pai, Eric Quain, corriam atrás de miragens.
• Há uma passagem eloquente, que fala da última saída de Buell da tribo como uma fuga de si mesmo, em que está explícito o termo duplo:
“Se estava realmente louco, [...] era então uma fuga de si mesmo, do duplo que o mataria, na eventualidade de uma nova crise, que se aproximava” (CARVALHO, op. cit, p.112 – grifo nosso).
O narrador Manoel Perna tem uma identidade cindida entre dois polos opostos: era um engenheiro, mas também um “humilde sertanejo que não conhece o mundo e nunca viu a neve” (CARVALHO, op. cit. p.116). A questão do narrador, neste romance, é bastante sofisticada porque, além de haver dois narradores (o narrador-jornalista e Manoel Perna), este último apresenta, como dissemos, uma cisão interna.
Buell Quain tem um nome indígena, “Cãmtwyòn”, que significa “o rastro do caracol”, sugerindo que “não adianta fugir, aonde quer que você vá estará sempre aqui” (CARVALHO, op. cit. p.81). Em outras palavras, onde se estiver, carrega-se sempre a própria sombra (duplo).
Parece que se estabelece, nesta narrativa, uma duplicidade desdobrável, um jogo de espelhos interminável. Observe, pelos exemplos seguintes, como o narrador 1 e o narrador 2 convergem numa adesão desmedida à imaginação:
Narrador 2: [...] foi assim que imaginei as visões febris e apavoradas dos pobres missionários quando li a carta da mãe do etnólogo”
(CARVALHO, op. cit. p. 50 – grifo nosso).
Narrador 1: “ (Manoel Perna) já não pode dissociar a sua própria imaginação do que ouviu”(CARVALHO, op. cit. p. 116, grifo e parênteses nossos).
Um último exemplo de duplicidade de situações: os indiozinhos trumai escarificavam (arranhavam) os próprios corpos com uma pata afiada de tatu. Buell suicidou-se cortando o próprio corpo com gilete.
No final da narrativa, o narrador 2 vai tentar encontrar, nos Estados Unidos, o filho do velho fotógrafo Andrew Parsons, que morrera no hospital no qual também estava internado o pai do narrador-jornalista. Ao se deparar com Schlomo Parsons, acha que os traços físicos desse homem lembram os de Buell. Poucos momentos depois, já não tem a mesma impressão. A escrita vai-se tornando paranoica e nada mais parece confiável. Estamos em pleno reino do simulacro, característica central da estética pós-moderna.
O título deste romance nasce de nove noites de conversas, em um intervalo de cinco meses, entre um dos protagonistas, o antropólogo Buell Quain, que denominaremos protagonista 1, e um dos narradores, seu amigo, o engenheiro Manoel Perna, que chamaremos de narrador 1. As nove noites desdobram-se em muitas outras noites e outros tantos dias de investigação, por parte do segundo narrador, representante do autor Bernardo Carvalho na narrativa, que é também um segundo protagonista, e que denominarei ora narrador-jornalista, ora narrador-detetive, por razão que mencionarei em breve. Essa investigação procura desvendar alguns mistérios que cercam o suicídio do antropólogo Buell Quain, após uma estada desse cientista com os índios krahô, em matas brasileiras, quando procurava regressar à civilização.
A primeira referência ao suicídio de Quain está na intervenção inicial do narrador 1, Manoel Perna, toda registrada em itálico:
“Que o antropólogo americano, meu amigo, morreu na noite de 2 de agosto de 1939, aos vinte e sete anos. Que se matou sem explicação aparente, num ato intempestivo e de uma violência assustadora” (CARVALHO, op. cit. p.7).
O narrador 2, jornalista, conhece esse fato por meio de uma notícia jornalística e se dispõe a buscar os motivos que levaram o antropólogo a cometer o suicídio.
Em outras passagens do citado narrador, repontam aqui e ali alusões ao título do romance:
“Se faço as contas, vejo que foram apenas nove noites. Mas foram como a vida toda. A primeira, na véspera de sua (de Quain) partida para a aldeia. Depois, mais sete durante a sua passagem por Carolina em maio e junho, quando vinha à minha casa em busca de abrigo, e a última quando o acompanhei pelo primeiro trecho de volta à aldeia, quando pernoitamos no mato, debaixo do céu de estrelas” (CARVALHO, op. cit. p. 46 – grifos e parênteses nossos).
“O que agora lhe conto é a combinação do que ele (Buell Quain) me contou e da minha imaginação ao longo de nove noites” (CARVALHO, op. cit. p. 47 – grifos e parênteses nossos).
Nove Noites é um romance tecnicamente muito complexo. O leitor nunca sabe bem onde está pisando. Basicamente é uma mescla de romance-reportagem e romance policial, rótulos nos quais a palavra romance garante a dimensão ficcional. Nos “Agradecimentos” finais, o autor explícito Bernardo Carvalho presta ao leitor algum esclarecimento sobre o gênero de sua narrativa:
“Este é um livro de ficção, embora esteja baseado em fatos, experiências e pessoas reais. É uma combinação entre memória e imaginação – como todo romance, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos direta” (CARVALHO, op. cit. p. 169 – grifos nossos). Trata-se da ficcionalização de fatos e situações empíricas, partindo do pressuposto de que toda verdade é movediça, lacunar, incompleta.
Existe uma “convenção de veracidade” nos discursos científico, histórico e mesmo memorialístico, assim como há uma “convenção de ficcionalidade” no discurso literário. Ao apresentar esta narrativa como romance, Bernardo Carvalho estabelece com seu eventual leitor um pacto de literariedade, que isenta a narrativa de compromisso com a veracidade da matéria narrada. Entre as palavras e as coisas, um mundo de incerteza nos espreita. O que importa são os efeitos de realidade produzidos pela linguagem literária, a qual povoa de imagens o universo reconstruído. Melhor que o termo pesquisa é a palavra investigação para dar conta do esforço de desvendar os enigmas que envolvem o suicídio do antropólogo. Daí o lado romance policial desta narrativa, no qual o narrador-detetive transforma também o leitor em detetive, com interesse investigativo análogo ao dele, narrador 2. A seguinte intervenção do narrador 1, Manoel Perna parece ter aflorado o sentido mais profundo das palavras do antropólogo, durante as nove noites, pouco antes de tornar-se um suicida:
“Estou certo de que o que ele me contou aos poucos, ao longo daquelas nove noites, foi uma confissão, mas de alguma coisa além do que parecia confessar. Foi a preparação da sua morte” (CARVALHO, op. cit. p. 132 – grifos nossos).
Levantam-se muitas questões que ficam sem respostas, para a angústia do leitor, com quem os narradores não podem ou não querem compartilhar tudo que sabem ou imaginam, como se lê nesta passagem do narrador 1:
“Eu teria feito qualquer coisa para salvá-lo, se tivesse entendido que ele (Quain) já estava no fim de suas forças quando voltou para a aldeia da última vez, embora hoje compreenda todos os indícios que ele me dava, assim como as atribuições e responsabilidades. Teria tentado impedi-lo, mas o que aconteceu entre nós na ocasião, me deixou sem iniciativa, no fundo por respeito ao Dr. Buell. Era um homem orgulhoso e eu sabia que iria até o fim. Mas eu não podia interferir, ainda mais depois da nossa última conversa, depois da última noite” (CARVALHO, op. cit. p. 133 – grifos nossos).
Pergunta-se: o que aconteceu entre Manoel Perna e Buell Quain, naquela circunstância, que deixou o narrador 1 sem iniciativa? Esse pequeno enigma é apenas um elo de uma cadeia de mistérios ao longo da narrativa. Os exemplos que se seguem são todos extraídos de intervenções do narrador 2 (narrador-jornalista, narrador-detetive):
“[...] aquilo só fazia aumentar o meu medo e a desconfiança sobre alguma coisa que pudessem estar realmente escondendo de mim” (CARVALHO, op. cit. p. 99 – grifos nossos).
“Foi quando comecei a acalentar a suposição de que devia haver (ou ter havido) uma oitava carta” (CARVALHO, op. cit. p. 114 – grifos nossos).
“Eu me pergunto o que o levou a rasgar a última parte de sua carta” (CARVALHO, op. cit. p. 119 – grifos nossos).
“Não deixa de ser um mistério que entre as sete cartas escritas por Quain nas horas que precederam o suicídio uma fosse endereçada ao cunhado. O etnólogo não escreveu à mãe ou à irmã. Apenas aos homens da família” (CARVALHO, op. cit. p. 86 – grifo nossos).
Pensei em uma expressão como romance de exumação para caracterizar esta narrativa a partir das seguintes passagens, extraídas de intervenções do narrador 1:
“Os índios me levaram até o túmulo cercado de talos de buriti. Podia estar diante de qualquer árvore. Tive que acreditar que havia sido ali. A comprovação eu só teria se exumasse o cadáver com as próprias mãos. Muita coisa não se pode desenterrar. Sozinho eu não tinha forças” (CARVALHO, op. cit. p. 133 – grifos nossos).
Na página de abertura do livro, Manuel Perna, o narrador 1, já anotara:
“[...] é preciso saber que (você, narratário 1) estará às portas de uma terra em que a memória não pode ser exumada [...]” (CARVALHO, op. cit., p. 7 – grifos e parênteses nossos).
Se não pode ser exumada materialmente, essa memória tem que ser resgatada pela investigação ou pela imaginação. Aí entram os fatores que relativizam a “verdade”.
Nove Noites apresenta uma alternância de duas vozes narrativas (dois narradores), cada uma formalizada em um tipo de letra: narrador 1 em itálico; narrador 2 em tipo comum. O narrador 1 dirige-se a um narratário (destinatário da narrativa, que pode ser chamado de narratário 1), cuja identidade é desconhecida e cuja voz não se faz ouvir no corpo da narrativa. O narrador 2 é quem investiga as causas do suicídio do protagonista. O leitor pode ser considerado o narratário 2; o grande protagonista é Buell Quain, o etnólogo suicida, nomeado aqui protagonista 1; mas o narrador-detetive ou narrador--jornalista, que atua em grande parte da narrativa, é também protagonista, protagonista 2. É possível elaborar, então, a seguinte “planta-baixa” da estrutura desta narrativa:
Os protagonistas das narrativas de Bernardo Carvalho são angustiados, desesperados, solitários e presos à ideia de morte. É o caso do antropólogo norte--americano Buell Quain, que realmente existiu e desenvolveu seus estudos sobre os índios Krahô no final da década de 1930, no Brasil. Sua pesquisa deixou um legado importante sobre essa tribo, principalmente sobre a língua falada pelos indígenas. Conviveu com ilustres antropólogos como Castro Faria e o francês Claude Lévy-Strauss.
Uma característica atribuída a Buell Quain é a dissimulação. Não se tome aqui essa palavra no sentido de um defeito moral, um fingimento, uma falha de caráter. Trata-se de ser ou ter e tentar parecer que não se é ou não se tem. É o contrário da simulação (que o protagonista 1 também praticava, embora menos), que consiste em tentar parecer ser ou ter o que não se é, nem se tem:
“Segundo se dizia, era muito rico. Era filho de médicos. Tinha muito dinheiro. Mas detestava usar dinheiro. Era uma obsessão. Essa preocupação de não deixar transparecer que tinha dinheiro [...] Ele detestava ser rico” (CARVALHO, op. cit. p. 34 – grifos nossos).
As palavras grifadas acima são claro exemplo de dissimulação. No exemplo seguinte, a palavra dissimulação está explícita:
“Se é que Buell Quain já tinha alguma coisa a esconder, a situação política só lhe dava ainda mais razões para a dissimulação e a preservação quase paranoica de sua vida pessoal” (CARVALHO, op. cit. p. 44 – grifo nosso).
“Ele (Buell) sempre viveu essa obsessão: não parecer e na realidade ser” (CARVALHO, op. cit. p.37). Tendo em vista a fala do colega antropólogo Castro Faria, de que Buell Quain tinha “a preocupação de demonstrar que não era ninguém, como se fosse só um serviçal” (CARVALHO, op. cit. p. 37), conclui-se que Buell Quain simulava ser um serviçal para dissimular sua condição de rico.
Quain era um homem muito sensível, atormentado, tinha uma fértil imaginação. Sentia-se um estrangeiro para si mesmo. Amava tocar piano:
“Em Cuiabá, a primeira coisa que fez ao chegar foi procurar um piano” (CARVALHO, op. cit. p. 38).
Outros exemplos de sua vulnerabilidade psíquica:
“Porque, como os índios, ele (Buell) estava só e desamparado” (CARVALHO, op. cit, p. 10).
“O homem (Buell) que chegou naquela tarde modorrenta de março era um homem atormentado” (CARVALHO, op. cit. p. 26).
Buell identifica-se, na aldeia, com “um órfão de dez ou doze anos que era mantido à margem. Era um desajustado. O único ali que, como ele, não tinha família” (CARVALHO, op. cit. p.56). Trata-se de uma evidente relação especular. Esse mesmo tipo de relação ocorre quando o protagonista 1 conhece os índios Trumai. Nas palavras do narrador 1:
“(...) ele (Buell) tinha encontrado um povo cuja cultura era a representação coletiva do desespero que ele próprio vivia como um traço de personalidade” (CARVALHO, op. cit. p. 57 – grifo e parênteses nossos).
Buell sempre teve fascínio pelas ilhas. Não seria ele próprio, metaforicamente, uma ilha? O narrador 2, em certa passagem, cita o poema “Elegia 1938” de Carlos Drummond de Andrade, que termina com a expressão “dinamitar a ilha de Manhattan”. Certamente, o narrador 2 estava pensando no suicídio do protagonista 1.
Outra marca no retrato psíquico de Quain é a contradição (ou essa contradição estaria nos depoimentos sobre ele?). É estranho o fato de um antropólogo evitar uma aproximação maior com índios e ter horror de ser confundido com a cultura que estuda:
“O etnólogo não comia com os índios e não aceitava a comida deles. Não comia beiju. Tinha seu próprio arroz” (CARVALHO, op. cit. p. 82).
Por outro lado, em mais de uma oportunidade, Buell manifesta preocupação com os índios. Na carta à autoridade policial da cidade de Carolina, o protagonista 1 faz questão de retirar dos índios qualquer responsabilidade por sua morte. Em carta a Ruth Benedict, diz:
“Os índios estão a salvo, pelo que fico muito feliz” (CARVALHO, op. cit. p. 87).
Em carta a D. Heloísa Torres, o antropólogo pede:
“[...] por favor, lembre-se dos índios” (CARVALHO, op. cit. p. 23).
O narrador 1, Manoel Perna, depõe:
“(Buell) não falou aos índios sobre nenhuma doença. Não queria assustá-los” (CARVALHO, op. cit. p. 25 – parênteses nossos).
O leitor se depara com outras contradições. Exemplos: Buell, em carta a Ruth Benedict, pede a ela que entregue o dinheiro dele à irmã Marion e à sobrinha dele, porque “estão quebradas e precisam de dinheiro” (CARVALHO, op. cit. p. 87). Marion escreve a Ruth, contradizendo o irmão Buell:
“Não estou quebrada e certamente não estou desesperadamente necessitada de fundo nenhum” (CARVALHO, op. cit. p. 88).
Em carta a Ruth Benedict, Buell diz:
“Minha doença me deixa especialmente angustiado e inseguro em relação ao futuro” (CARVALHO, op. cit. p. 54).
Mas os índios, que acompanhavam Buell em sua última jornada, negam qualquer problema de saúde do antropólogo.
É possível que Buell Quain tenha sido levado ao suicídio por um conjunto de causas, mas uma delas, provavelmente, estaria relacionada à sua vida sexual e amorosa. Ambos os narradores fornecem dados para a hipótese da homossexualidade do protagonista 1, embora haja sinais de que ele tenha tido também amores (clandestinos ou não) com mulheres, uma delas envolvendo também o narratário 1:
“Quando voltou a Carolina, no final de maio, (Buell) me mostrou orgulhoso a foto e o desenho que fizera do próprio punho, retratos de negros enormes e fortes (CARVALHO, op. cit. p. 115 – parênteses nossos).
“... dois vultos numa janela do sótão, ao cair da tarde de chuva, depois da revelação que modificou para sempre a vida de ambos. Só você (narratário 1) pode saber do que estou falando” (CARVALHO, op. cit. p. 122 – parênteses nossos).
“Ele me falou apenas de uma mulher, do homem que o traiu e de mais ninguém, se é o que você quer saber” (CARVALHO, op. cit. p. 123).
O narrador 1, Manoel Perna, lembra que Buell lhe relatara um encontro que tivera com uma “negra alta e vistosa”, no carnaval do Rio de Janeiro, em 1938:
“... levou-a para o quarto de pensão, dormiram juntos, mas quando acordou no dia seguinte, ela já não estava lá, como o contador de histórias de Fiji, que o abandonava antes do nascer do sol, e no lugar da enfermeira havia um homem na sua cama, um negro forte e nu...” (CARVALHO, op. cit. p. 127).
Buell Quain identificava-se muito com os índios Trumai. São esses índios que apresentam ao protagonista 1 mais um “espelho” (ou “duplo”):
“Como não havia meninas adolescentes, os jogos sexuais aconteciam entre meninos ou entre meninos e homens, quase sempre por iniciativa dos primeiros, que os adultos não reprimiam” (CARVALHO, op. cit. p. 56).
Mas, mesmo a homossexualidade de Buell, tantas vezes apontada na narrativa, nem sempre é confirmada: um jovem antropólogo da Universidade de Colúmbia, Bernard Mishkin, deu o seguinte depoimento sobre Buell:
“Filho de pai alcoólatra, mas rico, e de mãe neurótica e dominadora. Obriga-se à homossexualidade com negros, dos quais ele tem horror” (CARVALHO, op. cit. p. 130).
Em seguida, o narrador-jornalista acrescenta que o antropólogo franco-suíço Alfred Métraux considerava Mishkin “rancoroso, pretensioso e fofoqueiro”, desqualificando, portanto, as acusações feitas por este ao colega Buell Quain.
Este segundo narrador, um jornalista, é uma espécie de representante do autor Bernardo Carvalho dentro da narrativa, grande parte da qual ele conduz, sessenta e dois anos após o suicídio de Buell Quain. Esse narrador-detetive pesquisa cartas deixadas pelo antropólogo-suicida e viaja para entrevistar pessoas ligadas a Buell, como colegas dele (Buell) de trabalho e parentes dele (Buell), que viviam nos Estados Unidos. E, por agir como personagem, não sendo apenas narrador, posso chamá-lo também de protagonista 2. A seguir, citamos uma pergunta que também formula uma obsessão desse narrador-protagonista, bem nos moldes do romance policial:
“O que Buell Quain queria tanto esconder” (CARVALHO, op. cit. p. 30)?
Castro Faria, outro colega sobrevivente de Buell, entrevistado pelo narrador 2-protagonista 2, declara:
“Falaram um monte de coisas depois do suicídio, inclusive que ele (Buell) tinha lepra. Não se tem prova de coisa nenhuma” (CARVALHO, op. cit. p. 41 – grifos nossos).
No final da narrativa, o narrador 2 deixa claro ao leitor que sua obsessiva busca de decifração do quebra-cabeça que ele mesmo montou não dispõe de nenhuma prova cabal e se sustenta apenas em hipóteses e conjecturas:
“Na verdade, nada me provava que o velho fotógrafo tivera alguma relação com Buell Quain, ou mesmo que o tivesse conhecido, além do fato de ter falado o nome dele antes de morrer – se é que realmente falou” (CARVALHO, op. cit. p. 158 – grifo nosso).
Sem provas, sobra espaço para a ficção. E fazer dessa pesquisa uma ficção é justamente o objetivo final do narrador 2-protagonista 2.
A escrita do narrador 1 vale-se das letras em itálico para marcar até visualmente sua diferença em relação à escrita do narrador 2. Quase todas as suas intervenções começam com a frase “Isto é para quando você chegar”, dirigindo-se a um narratário (que denominamos narratário 1) e de quem falaremos adiante.
Na sua primeira intervenção, ele se caracteriza assim: “Posso ser humilde sertanejo, amigo dos índios, mas não sou tolo” (CARVALHO, op. cit. p. 9). Um pouco adiante, acrescenta: “Posso ser ignorante, mas nunca fui supersticioso” (CARVALHO, op. cit. p. 11). Manoel Perna carrega um sentimento de culpa por ter mandado entregar a Buell as cartas a este endereçadas e que, na opinião do narrador 1, levaram o antropólogo à depressão e à morte. Era como se Perna tivesse enviado a sentença de morte a Buell.
No final de sua última intervenção, o narrador 1 escreve a seguinte frase: Seria como tornar real o fantasma do homicídio que o (Buell) assombrava” (CARVALHO, op. cit. p. 134). Diz, portanto, que Buell temia ser assassinado e, assim, o suicídio passa a ser uma antecipação da esperada morte.
O conjunto das intervenções do narrador 1 pode ser chamado de carta-testamento. Por sinal, o próprio narrador 1, no final de sua primeira intervenção, usa essa expressão:
“Faz anos que o espero (que eu, narrador 1, Manoel Perna, espero você , narratário 1, Andrew Parsons), mas já não posso me arriscar ou desafiar a morte. Este mês começam as chuvas. Amanhã pego a balsa de volta para Carolina, mas antes deixo este testamento para quando você vier” (CARVALHO, op. cit. p. 13 – grifo meu).
Manuel Perna, o narrador-personagem, falece, em 1946, vítima de um afogamento no rio Tocantins, em uma forte chuva, no momento que tentava salvar a sua neta.
A teoria da literatura criou o termo narratário para nomear o destinatário da narrativa. E o narratário 1 é o destinatário das intervenções narrativas de Manoel Perna, o narrador 1. O “possivelmente” do título acima deve-se à falta de certeza, principalmente por parte do narrador 1, quanto à identidade do referido narratário, muitas vezes referido pela expressão “seja você quem for”. A primeira frase do relato de Manoel Perna dirige-se a um “você”, que se transforma na grande chave para uma esperada decifração (que, afinal, nunca vem) do enigma em que se transforma o suicídio de Buell Quain.
A principal hipótese da identidade desse narratário 1 é o misterioso homem que registrou, com uma máquina fotográfica, “a expressão de espanto (de Buell) diante do desconhecido” (CARVALHO, op. cit. p. 117 – parênteses nossos). E o narrador 1 conclui: “Eu só sei que esse estranho era você” (CARVALHO, op. cit, p. 117). Seja lá como for, o narrador 1 confere a esse narratário 1 um papel decisivo para a resolução do referido enigma, elemento estrutural tão próprio do romance policial:
“Só você pode saber do que estou falando” (CARVALHO, op. cit. p. 122).
“Só você pode entender o que quero dizer, pois tem a chave que me falta” (CARVALHO, op. cit. p. 122).
Tudo me levava a crer que a carta que ele (Buell) lhe deixou ao morrer podia revelar a verdade, qualquer que ela fosse” (CARVALHO, op. cit. 131).
Entre as cartas deixadas pelo suicida para serem encaminhadas a seus destinatários, uma ficou guardada com Manoel Perna e era exatamente a dirigida ao narratário 1. O narrador 1 decide dar um fim a ela, temendo as consequências da revelação do seu conteúdo. Com essa decisão, Manoel Perna destrói preciosa fonte de solução para o quebra-cabeça montado pelo narrador 2.
De qualquer forma, há um segredo que só o narratário 1 conhece e que envolve uma mulher, com a qual estariam envolvidos tanto o protagonista 1, Buell Quain, quanto o fotógrafo, narratário 1. Os dois homens “discutiram sobre uma mulher durante a noite de chuva” (CARVALHO, op. cit. p. 123). O fotógrafo é acusado por Buell de traição. Mas, para aumentar ainda mais o enigma, “ele reconheceu que também o havia traído (Buell reconheceu ter traído também o fotógrafo)” (CARVALHO, op. cit. p. 123 – parênteses nossos).
É claro que o acaso existe e, às vezes, torna-se decisivo na elucidação de alguns enigmas, mas é uma evidente quebra de verossimilhança que, a nosso ver, enfraquece esta narrativa, o “acaso” que reúne no mesmo quarto de um hospital o pai do narrador 2 e um velho americano que morre de câncer, esperando por alguém (que é Buell Quain). Esse americano, por “coincidência”, é o fotógrafo Andrew Parsons, que vem a ser o próprio narratário 1. O encontro final entre o narrador 2 e o filho de Andrew Parsons parece confirmar a referida hipótese e iluminar o caminho para a solução do quebra-cabeça montado pelo narrador-detetive. Mas o que prevalece no final é a dúvida. Tudo fica em aberto. O único produto real e concreto de toda essa investigação é o livro de ficção que está diante do leitor.
O dado estilístico mais evidente na linguagem de ambos os narradores é a profusão de palavras ou expressões de caráter dubitativo que, obviamente, enfatiza o caráter de enigma e mistério que permeia toda a narrativa e abre as portas para a ficção, a imaginação, a inventividade:
“Vou lhe contar uma história cuja veracidade talvez nunca se possa comprovar” (CARVALHO, op. cit, p. 34 – grifo nosso).
“E já não sei se era por não saber o que o esperava ou justamente por saber” (CARVALHO, op, cit. p. 26 – grifos nossos).
“Parece que também bebiam muito” (CARVALHO, op.cit. p. 38 – grifos nossos).
(Os kamayurá) devem ter percebido a vulnerabilidade psíquica do antropólogo” (CARVALHO, op. cit. p. 52 – grifos nossos).
Na mesma direção estão os incontáveis pontos de interrogação:
“O que pode ter passado um homem na infância para trazer uma cicatriz daquela na barriga? Que espécie de sofrimento o pôs em sintonia com um mundo pior que o seu?” (CARVALHO, op. cit. p. 43 – grifos nossos).
“Mas se (Buell) começou a se mutilar ainda de dia, como me disse o velho Diniz, como é que não foi visto pelo índio Ismael, que teria ficado ao lado dele enquanto o outro tinha ido levar seu bilhete à fazenda mais próxima? (CARVALHO, op. cit. p. 84 – grifo nosso).
Só pode ter sido na casa da praia que ele (Buell) lhe (fotógrafo) falou dela pela primeira vez. Se não por que teria associado, bêbado, numa das noites em que me procurou em Carolina, o mar e a chuva à decepção que infligia aos que o amaram? (CARVALHO, op. cit. p. 122 – grifos nossos).
Do mesmo modo, a frequência inaudita de verbos no futuro do pretérito (antigo Condicional):
“[...] a razão do suicídio tinha sido a descoberta de que a mulher o teria traído com o cunhado” (CARVALHO, op. cit. p. 85 – grifos nossos).
“Não fazia ideia do filme a que assistiria quando entrou no cinema, assim como não fazia do destino que ali lhe era apresentado” (CARVALHO, op. cit. p. 47, grifo nossos).
Quando o dr. Buell tentou entrar, a irmã do chefe lhe disse que, como elas, ele morreria se pisasse ali dentro” (CARVALHO, op. cit. p. 58 – grifo nossos).
Talvez devido à condição de jornalista do autor Bernardo Carvalho, as frases dos dois narradores são quase sempre curtas, claras, incisivas:
“Perguntou se eu já estivera no Rio de Janeiro durante o carnaval. Estava cada vez mais bêbado. Eu também não estava sóbrio. E nem sei tudo o que ouvi. Imaginei o seu sonho e o seu pesadelo” (CARVALHO, op. cit, p. 127).
“Nunca mais me amolaram. A maioria dos índios não falava comigo. Ou me ignoravam ou me observavam à distância. [...] Só as crianças riam de mim, e as mulheres. As crianças e as mulheres eram mais vivas” (CARVALHO, op. cit. p. 97).
Às vezes, a linguagem dos narradores assume forma coloquial; outras vezes, a expressão chula:
“[...] perguntei o que ele queria, como se não estivesse nem aí” (CARVALHO, op. cit. p. 98).
“Tinha vontade de mandar o índio à puta que o pariu, mas não podia me indispor com a aldeia” (CARVALHO, op. cit. p. 96).
Nove noites apresenta tempos que coexistem e espaços que se entrecruzam. Se o chamado tempo psicológico já é, por definição não linear, o tempo cronológico também se articula (ou se desarticula) num vaivém ditado pela relevância para a memória. Do ponto de vista estritamente didático, percebem-se quatro grandes etapas nesse tempo cronológico:
• Primeira: no contexto internacional, eram vésperas da Segunda Grande Guerra Mundial; no Brasil, vigorava o Estado Novo. Tempos de medo e insegurança. Buell Quain sentia-se “vigiado onde quer que estivesse” (CARVALHO, op. cit. p. 111).
• Segunda: tempo da narrativa de Manoel Perna: poucos anos após o suicídio de Buell.
• Terceira: tempo da infância do narrador 2 e suas viagens com o pai ao Mato Grosso.
• Quarta: tempo da narrativa do narrador 2. Novamente tempo de medo e violência. Há uma referência explícita ao atentado às torres gêmeas do World Trade Center e o clima de terror instaurado nos EUA nos dias subsequentes ao atentado.
Uma curiosidade: o primeiro emprego de Buell foi de “controlador do tempo e das horas” (CARVALHO, op. cit. p. 116).
O tempo psicológico permeia toda a narrativa, já que a visão dos fatos narrados nasce da consciência individual e da visão de mundo dos dois narradores.
Vários espaços geográficos são mencionados nesta narrativa: o elemento nuclear da trama se passa em plena selva brasileira. Os índios Trumai, tão relevantes na vida do antropólogo-suicida (que sentia o mesmo terror que acometia os Trumai), habitam as margens do rio Coliseu, no Alto Xingu. Buell Quain percorreu transitoriamente a Rússia, o Egito, a Palestina, a Síria, Xangai, ilhas do Pacífico Sul (para Buell, os nativos da ilha Fiji eram um “modelo de reserva e dignidade” – CARVALHO, op. cit. p. 54) e países do Oriente Médio. O Rio de Janeiro, onde o antropólogo morou, é mencionado várias vezes. Os Estados Unidos são um espaço privilegiado neste livro por ser a terra de nascimento do protagonista 1 e também para onde viaja o narrador-detetive em busca de confirmação de suas hipóteses, que encaminharia a solução do quebra-cabeça formulado por ele próprio.
Há também um lugar muito valorizado nesta narrativa por se tratar de um espaço simbólico: a ilha, metáfora da solidão existencial do protagonista 1.
Os documentos, as cartas e os depoimentos utilizados pelo narrador 2 (narrador-jornalista, narrador-detetive) são sempre insuficientes para explicar as causas do suicídio de Buell Quain, protagonista 1. Dessa falta ou insuficiência, nasce a necessidade de suplementar os dados com a imaginação, que confere à matéria narrada seu caráter ficcional. O romance Nove Noites pode ser entendido como a trajetória da investigação empreendida pelo narrador 2 das referidas causas do suicídio do protagonista 1.
O sucesso de Nove Noites deve-se à capacidade de envolver o leitor no relato, mantendo o suspense todo o tempo, de adequar perfeitamente forma e conteúdo, mesclando a linguagem jornalística a passagens de alto rendimento literário e artístico, como a que se segue, recortada de uma das intervenções do narrador 2:
“Havia mil barulhos à noite, mas quando rasguei a embalagem (de uma barra de cereal), foi como se o silêncio mais absoluto tivesse baixado sobre a aldeia e só eu, com a crepitação irritante daquela embalagem, pudesse ser ouvido. Dei a primeira mordida e foi como se o barulho da minha mastigação fosse uma trovoada sem fim” (CARVALHO, op. cit. p. 94).
Retomamos um dos traços pós-modernos elencados no início deste estudo, a justaposição paradoxal, que ganha um excelente exemplo nesta afirmativa do autor Bernardo Carvalho:
“Então, trabalhei com um discurso alucinado que é, ao mesmo tempo, totalmente lógico” (CARVALHO, Bernardo, Revista Cult, número 10, p. 8).
O leitor, às vezes, sente-se perdido e desorientado no meio de tantas pistas, muitas vezes contraditórias. O homem contemporâneo sente, mesmo inconscientemente, que o excesso de informações o afasta de uma pretensa verdade. É inevitável se lembrar das fake news, que tanto interferiram em recentes embates eleitorais, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, ao ler a seguinte passagem de Nove Noites:
“A ficção começa no dia em que botei os pés nos Estados Unidos. A edição do The New York Times, de 19 de fevereiro de 2002, que distribuíram a bordo, anunciava as novas estratégias do Pentágono: disseminar notícias – até mesmo falsas, se preciso – pela mídia internacional; usar todos os meios para influenciar as audiências estrangeiras” (CARVALHO, op. cit. p. 158 – grifos nossos).
Dois possíveis defeitos deste romance são elencados a seguir: o autor perdeu uma grande oportunidade de apresentar diferenças estilísticas nos discursos dos dois narradores; e também forçou demais os acasos e coincidências, desrespeitando um valor importante no pacto ficcional: a verossimilhança. É possível, entretanto, que este segundo “defeito” consista em uma marca de intencionalidade, cujo efeito de sentido seja caricaturar certos valores que vão dominando esses sombrios tempos pós-modernos.
Sirvam de arremate as seguintes palavras de cunho metalinguístico, recortadas do final da narrativa:
“Tomei o avião para Nova York com pelo menos uma certeza: a de que não encontrando mais nada, poderia, por fim, começar a escrever o romance” (CARVALHO, op. cit. p. 158).