A obra O Ateneu recebe o mesmo título que o educandário constituído nesse romance, espaço que ficcionalmente é uma espécie de metonímia de todo o sistema educacional brasileiro na segunda metade do século XIX. Nessa narrativa, o Ateneu alcança o estatuto de uma personagem coletiva, em função do simbolismo e da força anímica que lhe são atribuídos pelo narrador-protagonista – e também devido à identificação com seu diretor, Aristarco. As duas passagens seguintes servem de ilustração desse fato:
“O Ateneu era o grande colégio da época. Afamado por um sistema de nutrido reclame, mantido por um diretor que de tempos em tempos reformava o estabelecimento, pintando-o jeitosamente de novidade, como os negociantes que liquidam para recomeçar com artigos de última remessa” (POMPEIA, 1998, p. 14, grifo nosso).
“A irradiação da réclame alongava de tal modo os tentáculos através do país que não havia família de dinheiro, enriquecida pela setentrional borracha ou pela charqueada do Sul, que não reputasse um compromisso de honra com a posteridade doméstica mandar dentre os seus jovens, um, dois, três representantes abeberar-se à fonte espiritual do Ateneu” (POMPEIA, 1998, p. 16).
Na primeira citação, destaca-se a analogia entre o Ateneu e uma casa comercial; na segunda, além da alusão à propaganda, há a constatação de que o Ateneu era um colégio das elites econômicas da sociedade daquela época.
Originalmente, a obra O Ateneu apresentava um subtítulo: “Crônica de saudades”. Tal subtítulo é ambíguo porque a narrativa não é uma crônica, nem um conjunto delas, mas um romance, que apresenta traços de livro de memórias autobiográficas, ensaios (as palestras do Dr. Cláudio) e aforismos (sentenças morais breves e conceituosas, máximas). Entretanto, a palavra crônica, por ter na sua raiz o nome Cronos (deus grego representado com uma foice, sugerindo a ação do tempo; deriva de seu nome, por exemplo, a palavra cronologia), contribui para a boa compreensão do romance, que realiza uma densa reflexão sobre o tempo.
O Ateneu foi publicado pela primeira vez em folhetins de 8 de abril a 18 de maio de 1888. Seu autor, Raul Pompeia, nascera em Angra dos Reis. Aos dez anos, foi matriculado como interno, permanecendo por seis anos no famoso Colégio Abílio, que certamente serviu de modelo ao Ateneu, embora este seja uma criação artística e não uma cópia servil daquele.
O Ensino Médio no Brasil tinha influência direta da França: currículos semelhantes, idênticos valores (prestígio da razão, da moral, dos preceitos positivistas da ordem e do progresso), os quais correspondiam aos interesses da burguesia na segunda metade do século XIX. Um reflexo dessa influência está na presença de palavras e expressões da língua francesa nas frases desse romance.
“Com o pince-nez grosso de tartaruga [...]” (POMPEIA, 1998, p. 49).
“[...] com o ar sério, espantadiço das femmes qui sortent [...]” (POMPEIA, 1998, p. 140).
“[...] bras dessus, bras dessous [...]” (POMPEIA, 1998, p. 26).
Entretanto, os internos do Ateneu encontram no novo ambiente exatamente o contrário dos valores tão exaltados: tirania (do diretor, de professores), mesquinharia, confinamento, egoísmo e solidão.
O Ateneu tematiza as relações do adolescente Sérgio, protagonista da obra, com o colégio, seu diretor, a esposa dele, D. Emma, professores e funcionários, além de seus colegas de internato. A narrativa explora um rito de passagem, em que o protagonista se amolda aos códigos de um espaço degradado, perdendo suas ilusões infantis e absorvendo o mesmo relativismo ético que domina o Ateneu e o mundo adulto das elites brasileiras da época.
Trata-se, portanto, de um romance de formação1 – ou deformação? –, que encena o rompimento da “estufa do carinho” da vida familiar no choque com a dura realidade do internato, espécie de miniatura do mundo exterior, ou seja, um microcosmo, fato observado pelo próprio narrador: “Não é o internato que faz a sociedade; o internato a reflete” (POMPEIA, 1998, p. 145).
Quando Raul Pompeia estudava no Colégio Abílio, mantinha um jornalzinho manuscrito denominado O Archote, no qual criticava, em pequenos artigos e charges atrevidas, os desmandos de bedéis (disciplinários) e professores. Aí estão as raízes de O Ateneu, romance autobiográfico de desencanto e de vingança. A perfeita figuração dessa vingança é o fogo ateado no internato, fogo de expiação, que fecha o enredo. Para o crítico Alfredo Bosi, o ato de incendiar o colégio é análogo ao suicídio cometido, na realidade, pelo autor Raul Pompeia, aos trinta e três anos, numa noite de Natal (BOSI, 1982, p. 206). Vingativa também é a escrita do narrador, que será analisada adiante.
A crítica especializada tem-se dividido ao tentar definir o estilo de época de O Ateneu. Para Mário de Andrade, este romance de Raul Pompeia é um dos representantes mais altos do Naturalismo brasileiro. Fato inegável é que O Ateneu é contemporâneo de importantes romances naturalistas como O Missionário, de Inglês de Sousa; A Carne, de Júlio Ribeiro; O Mulato, de Aluísio de Azevedo; entre outros. Alguns dados parecem dar razão a Andrade:
• A incidência da problemática sexual entre as personagens, considerando os indícios de uma tensão homoerótica nas relações Sérgio-Sanches, Sérgio-Bento Alves e Sérgio-Egbert, além do envolvimento entre Cândido e Tourinho, cuja relação homoafetiva foi revelada em um episódio de humilhação pública.
• A morbidez das cenas de morte, como no assassinato cometido por um dos jardineiros do Ateneu contra um criado da casa do diretor. Esse criado era rival do jardineiro no amor por Ângela, também desejada por muitos internos. A descrição do cadáver do serviçal tem feição naturalista:
“Guardava ainda a contorção esquerda da agonia; à boca, fervia-lhe um crivo de espuma rosada; trajava colete fechado, calças de casimira grossa. Os ferimentos não se viam. Os olhos estavam-lhe inteiramente abertos e de tal maneira virados que me fizeram estremecer” (POMPEIA, 1998, p. 75).
Ou esta descrição de objetos usados em aulas de Anatomia:
“Nos grandes armários havia melhor: peças anatômicas de massa, sangrando verniz vermelho, legítima hemorragia; corações enormes, úmidos à vista...” (POMPEIA, 1998, p. 74).
• A apresentação de algumas personagens típicas dos modelos naturalistas, realçando-lhes o furor erótico e, várias vezes, comparando-as a animais:
Gualtério: “caretas de símio” (POMPEIA, 1998, p. 29, grifo nosso)
Negrão: “fisionomia agreste de cabra” (POMPEIA, 1998, p. 30, grifo nosso)
Cerqueira: “ratazana, curvado, redobrado sobre o prato, [...] comia, comia, comia como as sarnas, como um cancro” (POMPEIA, 1998, p.104, grifo nosso).
Franco: “cabeça baixa, como um cão, foi parar no centro da sala” (POMPEIA, 1998, p. 58, grifo nosso).
• O caráter determinista de certas frases:
“Cada um leva às costas o sobrescrito de sua fatalidade (POMPEIA, 1998, p. 145, grifo nosso).
“O que tem de ser, é já” (POMPEIA, 1998, p. 145).
“Os caracteres que ali triunfam trazem a marca da condenação” (POMPEIA, 1998, p. 145, grifo nosso).
• As referências contínuas às correntes filosóficas e científicas em voga na época (evolucionismo, darwinismo, determinismo).
“A perfectibilidade evolutiva dos organismos em função, [...]” (POMPEIA, 1998, p. 89, grifo nosso).
“Depois da ordem em nome do Alto, proclamou-se a ordem positivamente em nome do Ventre. A fatalidade nutrição foi erigida em princípio [...]. Morte aos fracos! Alcançando a bandeira negra do darwinismo espartano [...] (POMPEIA, 1998, p. 91, grifo nosso).
Em contrapartida, a visão do mundo fortemente subjetivada do narrador parece negar a pretensa objetividade cientificista do Naturalismo. Nesse sentido, outra parte da crítica literária considera O Ateneu inserido na estética do Impressionismo. Esse estilo prioriza as sensações do artista diante dos fatos, em detrimento de um registro fotográfico das coisas ou de uma análise objetiva das situações, sendo por isso imprescindível a presença de um narrador a julgar comportamentos e sensações a fim de produzir uma experiência emocionalizada das coisas (BRAYNER, 1979, p. 129). Ainda de acordo com Brayner, é preciso destacar outra característica importante desse estilo: “se há uma tendência formal literária típica desses autores impressionistas, ela é sem dúvida a miniatura” (BRAYNER, 1979, p. 133).
Assim, no Impressionismo, predominam o prazer estético do autor enquanto gravurista, dada a sua tendência a compor quadros. Isso explica por que a visão é o sentido preponderante nas obras impressionistas, seguida pela audição e pelo olfato. Em O Ateneu, há trechos em que o narrador, de forma impressionista, percebe o espaço do colégio e a paisagem que o circunda:
Tínhamos em torno da vida o ajardinamento em floresta do parque e a toalha esmeraldina do campo e o diorama acidental das montanhas da Tijuca, ostentosas em curvatura torácica e frentes felpudas de colosso; espetáculos de exceção, por momentos, que não modificavam a secura branca dos dias, enquadrados em pacote nos limites do pátio central, quente, insuportável de luz, ao fundo daquelas altíssimas paredes do Ateneu, claras de caiação, do tédio, claras, cada vez mais claras” (POMPEIA, 1998, p. 97).
O parágrafo anterior abre o sétimo capítulo da obra, mostrando uma oposição entre o branco do pátio central das paredes do Ateneu e o verde do campo em volta do internato. Lá fora o “diorama” (uma espécie de representação, semelhante a uma maquete, e que produz ilusão de ótica) com suas imprevisíveis imagens. Dentro dos muros, a “secura branca” do tédio, da previsibilidade. Todo esse parágrafo é um selo de identidade impressionista. Há outras passagens que revelam explicitamente esse caráter impressionista de O Ateneu:
“É fácil conceber a atração que me chamava para aquele mundo tão altamente interessante, no conceito de minhas impressões (POMPEIA, 1998, p. 23, grifo nosso).
“As impressões recentes derrogavam o meu Aristarco” (POMPEIA, 1998, p. 23, grifo nosso).
Por fim, também é importante ressaltar que O Ateneu apresenta algumas antecipações surpreendentes de propostas das vanguardas europeias incluídas na estética do Modernismo. Uma delas é a presença da metalinguagem. É, certamente, uma das raras narrativas literárias do século XIX, no Brasil, a produzir uma reflexão sobre a própria obra (SANTIAGO, 1978, p. 94). O narrador justifica alguns defeitos de sua narrativa por esta não ter brotado de uma boa sementeira, mas de um pântano. Além disso, as três conferências do Dr. Cláudio, que representavam as ideias de Raul Pompeia sobre a arte (especialmente a Literatura) são verdadeiras ilhas ensaísticas e, por isso, são ótimos exemplos de inserção metalinguística:
“[...] A Arte significa a alegria do movimento, ou o grito de suprema dor nas sociedades que sofrem” (POMPEIA, 1998, p. 87).
“Arte, estética, estesia é a educação do instinto sexual” (POMPEIA, 1998, p. 88).
“Além de inútil, a arte é imoral” (POMPEIA, 1998, p. 94).
Dizer que a arte é inútil faz lembrar ao leitor de poesia do século XX uma famosa frase do poeta Paulo Leminski: “A poesia é um inutensílio”. Quando a personagem Dr. Cláudio, de O Ateneu, diz que “a arte é imoral”, certamente ele quer dizer, nos termos atuais, “amoral” – ou seja, nas palavras do próprio Dr. Cláudio: “A verdadeira arte, a arte natural, não conhece a moralidade” (POMPEIA, 1998, p. 94, grifos do autor).
Em uma de suas palestras, o Dr. Cláudio já fala preventivamente sobre o que viria a ser chamado de verso livre:
“Na arte da eloquência da atualidade [século XIX] acentua-se uma reação poderosa contra o metro clássico” (POMPEIA, 1998, p. 93, grifo nosso).
Há várias passagens que antecipam traços expressionistas (deformações) e surrealistas (liberação do inconsciente), que só se afirmariam nas vanguardas artísticas do início do século XX (Expressionismo e Surrealismo). A seguir, uma descrição repleta de personificações de teor claramente expressionista:
“[...] Antes de maldizerem do hortelão, caluniadores e invejosos julgassem-lhe os nabos, as tronchudas couves, crespas, modestas, serviçais, as cândidas alfaces, sensíveis cebolas de lágrimas tão fáceis quanto sinceras, as instruídas batatas, as delicadas abóboras...” (POMPEIA, 1998, p. 153).
O Expressionismo tende a deformar, exagerar a realidade, por meio de uma visão advinda de uma sensibilidade exacerbada e até doentia. Os pintores expressionistas, por exemplo, usavam mais as cores quentes e o traço caricatural. Como exemplo, a seguinte visão que o protagonista Sérgio apresenta da Geografia pode ser considerada expressionista:
“[...] os rios dispensavam detalhes complicados dos meandros e afluíam-me para a memória, abandonando o pendor natural das vertentes; as cordilheiras, imensa tropa de amestrados elefantes, arranjavam-se em sistemas de orografia facílima” (POMPEIA, 1998, p. 41).
A passagem seguinte, que contempla as reações do menino Sérgio ao encontrar um folheto com versos e estampas de cunho erótico, mostra como uma mistura de emoções de ordem inconsciente altera a percepção do adolescente:
“[...] um entravamento obscuro de formas despidas, roupas abertas, um turbilhão de frades bêbados, deslocados ao capricho de todas as deformidades de um monstruoso desenho, tocando-se, saltando a sarabanda diabólica sem fim, no empastado negrume da tinta do prelo...” (POMPEIA, 1998, p. 31).
Esse aproveitamento do inconsciente na arte teve no Surrealismo sua principal expressão artística. Raul Pompéia já lançava mão do sonho como atalho para o inconsciente, mesmo antes de esse conceito ser teorizado pelo psicanalista Sigmund Freud. Nessa perspectiva, a passagem seguinte certamente seria chamada de surrealista no início do século XX:
“Sonhei mesmo em regra. Eu era o Franco. A minha aula, o colégio inteiro, mil colégios, arrebatados, num pé de vento [...] a mão magra do Maurílio, crescida, enorme, preta, torcendo, destorcendo os dedos sôfregos, convulsionados da histeria do quinau [...]” (POMPEIA, 1998, p. 36).
Em O Ateneu, existe um tempo da enunciação (tempo da escrita, da produção do texto), em que Sérgio-narrador recorda a adolescência vivida por Sérgio-protagonista no Ateneu; e um tempo do enunciado, em que o jovem Sérgio vive as ações narradas. O discurso narrativo é o do adulto, narrador que tenta recuperar, via memória, as experiências vividas pelo protagonista, mas as duas perspectivas, às vezes, interpenetram-se, permitindo uma dupla leitura: a do deslumbramento inicial, seguido pelas decepções do adolescente, e a da reflexão crítica feita pelo narrador maduro. Às vezes, a intervenção de Sérgio-narrador na ação vivida por Sérgio-personagem torna-se explícita, como nesta passagem:
“Esperei um dia, dois dias, três: o castigo não veio. Soube que Bento Alves despediu-se do Ateneu na mesma tarde do extraordinário desvario. Acreditei algum tempo que a minha impunidade era um caso especial do afamado sistema de punições morais e que Aristarco delegara ao abutre da minha consciência o encargo da sua justiça e desafronta. Hoje penso diversamente: não valia a pena perder de uma vez dois pagadores prontos, só pela futilidade de uma ocorrência, desagradável, não se duvida, mas sem testemunha” (POMPEIA, 1998, 122, grifo nosso).
Portanto, temos um narrador em primeira pessoa do singular, o Sérgio-adulto, portador de um estilo irônico, e o Sérgio-protagonista, que age ao sabor das experiências vividas. É claro que o maciço conjunto de recordações surge da memória de um narrador que, debruçado sobre o passado, concentra-se nos poucos anos de sua vida escolar, quando adolescente. Como toda escrita memorialista, os fatos narrados sofrem transformações no processo de evocação, devido à distância temporal que separa as vivências de seu registro na escrita do narrador.
Logo nas primeiras páginas, ao descrever e comentar o discurso do Prof. Venâncio, o narrador não só exemplifica fartamente a retórica suntuosa da sua época, como também cria uma caricatura demolidora dessa retórica liceana (discurso escolar), que introduzia nos jovens espíritos a ideologia hipócrita e interesseira da burguesia. O referido discurso termina, de modo exagerado, com um insuperável exemplo de servilismo e bajulação, reconhecendo acima de Aristarco apenas a figura de Deus.
Entretanto, a conduta de bajulação também era praticada pelo próprio Aristarco, diante de autoridades e clientes ricos e poderosos, festejando-os com reverência de súdito e cortesão.
Sérgio-narrador trabalha em sentido antiproustiano, ou seja, ele quer recuperar o passado para destruí-lo. Sua escrita vibrante e colorida é também incendiária e violenta. O narrador sustenta “fogo cerrado” contra várias personagens de O Ateneu. O choque entre o protagonista e o mundo é anunciado já na primeira frase do romance:
“Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. ´Coragem para a luta`” (POMPEIA, 1998, p. 13, grifo nosso).
É justamente a visão crítica do narrador em relação ao Ateneu a grande responsável pelo empenho caricatural que domina toda a narrativa. A caricatura exagera ainda mais o que já é exagerado e transforma-se numa arma que procura ridicularizar seu objeto de ataque. Inclui claramente um juízo moral, ao carregar nos traços grotescos que atribui ao caricaturado. Exemplo disso é a caricatura verbal cujo alvo é o estudante Rômulo, o “hipopótamo domesticado”, a quem o diretor Aristarco havia escolhido para genro:
“Cozinheiro, Rômulo! Só porque lembrava a culinária, com a carnosidade bamba, fofada dos pastelões, ou porque era gordo das enxúndias enganadoras dos fregistas, dissolução mórbida de sardinha e azeite, sob os aspectos de mais volumosa saúde? Rômulo era simplesmente e completamente o confeiteiro das esperanças doces de Aristarco” (POMPEIA, 1998, p. 104).
Aristarco, o diretor do Ateneu, “homem-sanduíche da educação nacional” (isto é, o grande propagandista daquela tradição escolar no Brasil), é outra grande vítima da satírica caricatura do narrador, como é visto em “[...] a simples estatura dizia dele: aqui está um grande homem” (POMPEIA, 1998, p. 15-16, grifo nosso). Outro trecho que comprova a ironia usada pelo narrador para caracterizar o diretor é o seguinte:
“Aristarco todo era um anúncio. Os gestos calmos, soberanos, eram de um rei [...], o olhar fulgurante, sob a crispação áspera dos supercílios de monstro japonês, penetrando de luz as almas circunstantes [...]. Retorça-se sobre tudo isso um par de bigodes, volutas maciças de fios alvos, torneadas a capricho, cobrindo os lábios, fecho de prata sobre o silêncio de ouro [...] teremos esboçado, moralmente, o perfil do ilustre diretor” (POMPEIA, 1998, p. 15, grifo nosso).
Se é evidente a dimensão trágica desse romance, não lhe faltam também exemplos de humor. Se são numerosos os exemplos de ironia e sátira, ambas portadoras também de traços humorísticos, são mais escassos os exemplos de pura comicidade, como este, em que o narrador comenta jocosamente um instrumento musical:
“[...] o fagote, aumentativo de requinta, único aparelho capaz de produzir artificialmente a fanhosidade colérica das sogras” (POMPEIA, 1998, p. 106).
Outro episódio, sutilmente engraçado, é dedicado às flatulências de um colega do internato, o qual exibia sua capacidade de soltar gases ruidosos:
“Maurílio [...] não era exclusivamente o campeão da tabuada que conhecemos; tinha outra habilidade notável e prestava-se com aplauso a uma experiência original de fluidos inflamáveis. Este rapaz escapou de morrer, em um dos últimos naufrágios da nossa costa; um ex-colega escreveu-lhe: Quem os semeia, colhe tempestades” (POMPEIA, 1998, p. 104).
Uma das mais notáveis passagens do livro é encontrada em outro discurso do Prof. Venâncio, na inauguração da estátua de Aristarco. Venâncio transforma-se em uma espécie de escultor verbal de Aristarco, cujo corpo acusa os efeitos de cada frase pronunciada, à medida que o homenageado vai ouvindo o orador.
“Sentia-se estranhamente maciço por dentro, como se houvera bebido gesso. Parava-lhe o sangue nas artérias comprimidas. Perdia a sensação da roupa. Empedernia-se, mineralizava-se todo” (POMPEIA, 1998, p.216).
O crítico José Paulo Paes (1985, p. 51), ao analisar esse trecho, afirma que existe uma inversão caricatural do processo da criação bíblica do homem. O nome inversão caricatural deve-se ao fato de que, na narrativa bíblica, o barro é transformado em carne e, no trecho citado, o homem transforma-se em uma estátua mineral. O narrador parece pintar e esculpir com as palavras. Talvez porque Raul Pompéia tenha sido também um excelente desenhista, um notável caricaturista. Vale lembrar que as primeiras edições de O Ateneu traziam quarenta e quatro ilustrações do próprio autor (PAES, 1998, p. 52), que demonstram o talento de Pompéia como artista plástico. São vinte e nove representações de pessoas e quinze de coisas, o que vem confirmar o fato de que este romance se preocupa muito mais em explorar conflitos humanos que descrever objetos ou paisagens. Nesse sentido, o aspecto psicológico parece suplantar o documental.
A plasticidade (capacidade de alteração das formas através de ações exteriores; no caso do estilo literário, a plasticidade é a capacidade que um autor tem para dar a ver o que ele está escrevendo, levando o leitor a visualizar com nitidez os aspectos visuais de um objeto ou de uma cena descrita) é a marca principal do estilo individual deste narrador que, sob muitos aspectos, representa o próprio autor. Sua linguagem apresenta um fulgurante apelo visual na sensibilidade ao sortilégio das cores e das formas, dos reflexos, dos brilhos difusos, das nuanças da luz errante. Em dado momento, o narrador aparenta compor verbalmente uma pintura de natureza-morta:
“Guarnecendo os assados, perfilavam-se montes de maçãs, peras, laranjas, apoiadas às nacionalíssimas bananas, como um traço de nativismo. Os pudins, as marmeladas, as compotas enchiam os vãos da toalha, com um zelo apertado de mediador plástico” (POMPEIA, 1998, p. 116).
Às vezes, detalhes de um quadro de pintura misturam-se com os do ambiente circundante, em um criativo diálogo entre o que está dentro e o que está fora da moldura da tela. Neste trecho, o narrador descreve um cromo, figura estampada a cores, em geral com relevo:
“Havia no aposento um grande cromo de paisagem, montanhas de neve no fundo, mais à vista uma vivenda desmantelada, uma cachoeira de anil e pinheiros espectrais, encanecidos por um século de tormentas. A madrugada subia no quadro, como se amanhecesse também na região dos pinheiros. Eu esperando. A madrugada progredia” (POMPEIA, 1998, p. 162).
A narrativa de O Ateneu é, portanto, rigorosamente pictórica, ou seja, é como se o narrador articulasse uma série de quadros, ligados por correntes narrativas. O gosto pelos matizes cromáticos e luminosos está na identidade dessa escrita. A seguinte passagem destaca o variado espectro interno da cor verde:
“Era a primeira vez que me encantavam assim aquelas gradações de verde, o verde negro, de faiança, luzente da hera, o verde flutuante mais claro dos bambus, o verde claríssimo do campo ao longe sobre o muro, em todo o fulgor da manhã” (POMPEIA, 1998, p. 161).
O próprio Aristarco é caricaturado em termos cromáticos nesta passagem:
“O anúncio confundia-se com ele [Aristarco], suprimia-o, substituía-o, e ele gozava como um cartaz que experimentasse o entusiasmo de ser vermelho” (POMPEIA, 1998, p. 22, grifo nosso).
Para dizer que o protagonista estava perdendo a fé religiosa, abandonando sua fase mística, o narrador vale-se de uma metáfora da área semântica do claro / escuro:
“[...] foi-se-me a religião escurecendo” (POMPEIA, 1998, p. 66).
Percebem-se motivações plásticas no próprio código linguístico:
“Dois grandes olhos pretos, exagero dos olhos pretos da mãe, tomavam-lhe a face [da personagem Melica], dando-lhe de frente a semelhança justa de um belo I com dois pingos” (POMPEIA, 1998, p. 104).
O narrador vale-se também do código literário para criar uma surpreendente e engraçada caricatura do Dr. Ícaro do Nascimento que atinge ainda a poética parnasiana:
“Dentre as suíças, como um gorjeio do bosque, saía um belo nariz alexandrino de dois hemistíquios, artisticamente longo, disfarçando o cavalete da cesura, tal qual os da última moda do Parnaso” (POMPEIA, 1998, p. 154, grifo nosso).
O autor Raul Pompéia, talvez por ser um artista plástico (desenhista), era também um mestre do retrato verbal, com enorme poder de dar a ver ao leitor traços físicos tão definidores do retratado, que revelam ao mesmo tempo o retrato moral de uma personagem.
Apesar de satirizar a retórica requintada e até agressiva de professores como o Venâncio, o narrador desse romance também ama a ênfase e o “signo do ornamental” (quando a palavra serve de ornamento, enfeite, afastando-se da função referencial e objetiva da palavra), que são conaturais à sensibilidade exacerbada do protagonista. Daí o vocabulário sofisticado, as metáforas grandiloquentes, as metonímias atrevidas, a profusão de símiles, hipérboles e personificações:
•Vocabulário sofisticado: mesmo o leitor experiente e culto deverá munir-se de um bom dicionário para decodificar com segurança o significado de inúmeras palavras na obra:
“Vigilância cerberesca”(p. 82), “empenho madrepórico” (p. 87), “esplim infinito” (p. 69).
• A metáfora é uma figura em que a significação natural de uma palavra é transferida a outra, devido a uma relação de analogia entre elas:
“Não era um homem aquilo; era um de profundis” (POMPEIA, 1998, p. 167, grifo do autor).
“Aristarco fisgava os astros” (POMPEIA, 1998, p. 48, grifo nosso).
“O meio, filosofemos, é um ouriço invertido” (POMPEIA, 1998, p. 70, grifo nosso).
• A metonímia é a substituição de um termo por outro, devido a relações de contiguidade (causa pelo efeito, continente pelo conteúdo, lugar pelo produto, matéria por objeto, parte pelo todo, todo pela parte, etc.) que esses termos estabelecem entre si:
“Uma bonita meninada [o todo pela parte], que festança!” (POMPEIA, 1998, p. 146, grifo nosso).
“[...] adeus indolência feliz [a qualidade do indolente (feliz) passou para o abstrato “indolência”] dos tempos beatos!” (POMPEIA, 1998, p. 69, grifo nosso).
“[...] havia duas mesas de exame: a de matemática [...] a de português [...] tão chegadas que se confundiam as respostas de uma com as perguntas da outra” (as respostas e perguntas de alunos e professores são transferidas para as mesas) (POMPEIA, 1998, p. 137).
• O símile ou a comparação é a qualidade do que é semelhante e apresenta sempre explícito o conectivo comparativo. Há um abuso do “como” comparativo em O Ateneu:
“[Nearco da Fonseca era] magro como uma preleção de osteologia (POMPEIA, 1998, p. 78, grifo nosso).
“[Mr. Delille era] barbado como um colchão de crinas” (POMPEIA, 1998, p. 131 – grifo nosso).
“[O Dr. Velho Júnior – não se perca o paradoxo – era] calvo como a ocasião “(POMPEIA, 1998, p. 131, grifo nosso).
Em O Ateneu, verificam-se várias figuras típicas da estética do Barroco, como os paradoxos, as enumerações, o andamento vertiginoso, ascensional e espiralado das frases dentro de muitos parágrafos, além de inúmeras hipérboles (figura do exagero). O fato de esta narrativa ser marcada pelo exagero das imagens levou Mário de Andrade a ver em Raul Pompeia a derradeira expressão do Barroco na literatura. Como exemplo, todo o tom do parágrafo seguinte é hiperbólico:
“Prediletos principalmente o tambor e o bombo tonante, a trovoada das peles tesas, que a tormenta sobraça nos arroubos de carnaval canalha dos seus dias e que sobraçava, no Ateneu, Rômulo, o graxo Rômulo, o nédio, o opulento, o caríssimo genro das esperanças caras” (POMPEIA, 1998, p. 106).
Note-se ainda, no trecho citado, o tratamento poético dado à linguagem por meio das aliterações (repetição de fonemas consonantais) e das assonâncias (repetição de fonemas vocálicos). O atropelo de adjetivos também chama a atenção do leitor atento. A farta adjetivação é predicado da eloquência, marca estilística da escrita do narrador.
As sinestesias (mistura dos sentidos do corpo) também comparecem em grande número nesta narrativa:
“tristeza verde” (POMPEIA, 1998, p. 55)
“Ouvia-se bem, agradavelmente amaciado, o som do piano do salão” (POMPEIA, 1998, p. 161, grifo nosso).
“um moreno cálido” (POMPEIA, 1998, p. 76, grifo nosso).
Em síntese, a linguagem do narrador pode ser caracterizada como uma prosa artística, uma linguagem-espetáculo, em que o autor, através de seu narrador, compete consigo mesmo no crescente requinte dos retratos e na magia das imagens cada vez mais ousadas. Eis uma pequena amostra dessa prosa artística neste trecho da descrição da banda de música do colégio, cheia de onomatopeias e outros efeitos sonoros:
“Mas a predileção de Aristarco era pela banda, pela pancadaria, grita vibrante dos cobres, fuzilaria das vaquetas [baquetas], [...] o estrépito das caixas troando à marcha dobrada como um eco de combates, furor infrene, irresistível, de zabumbada em feira” (POMPEIA, 1998, p. 106).
As análises apresentadas nas seções anteriores já esboçaram alguns perfis das principais personagens, porém faz-se necessário explorar a composição delas na obra. O colégio Ateneu, como já foi dito, é quase uma personagem na narrativa. Nas páginas iniciais, há uma descrição apoteótica do colégio, em que se mostra, em toda sua plenitude, o esplendor e o exibicionismo da propaganda, utilizando-se comparações grandiosas:
O protagonista Sérgio e o diretor do Ateneu, Aristarco, compõem uma polarização fundamental no romance, mas que precisa ser relativizada. Como se percebe no final da última citação, Aristarco identifica-se com o Ateneu, e é essa identificação que permite dizer que o Ateneu tem a força de uma personagem, representando o poder, a autoridade e sintetizando em sua figura os valores das camadas mais altas da sociedade. O estudante Sérgio (não possui sobrenome, mas ganha o número identificador 54), que vem de família abastada, conta com a boa vontade e a cumplicidade de Sérgio-narrador; afinal, o nome Sérgio abriga duas etapas de um mesmo sujeito, um mesmo trajeto existencial. Por isso, o narrador poupa o protagonista do sarcasmo com que fustiga os colegas dele.
Com uma ou duas exceções, as personagens que desfilam pela narrativa não passam de figurantes (tipos), cuja importância se mede pela relevância na vida de Sérgio. O perfil do protagonista é móvel, desenhando-se em etapas, por meio das relações que ele estabelece com os colegas de internato. A perda do aconchego do lar desenvolveu em Sérgio uma necessidade de proteção, uma passividade, a “efeminação mórbida das escolas” (POMPEIA, 1998, p. 40).
Sanches foi o primeiro “protetor” de Sérgio. Os dois estudavam juntos, e o primeiro foi-se aproximando do segundo, insinuando-se, até que se deu a inevitável abordagem, tratada pelo narrador de forma não explícita, mas com a clareza delicada da sugestão. A palavra “hoje”, destacada no trecho abaixo, mostra mais uma vez o tempo da enunciação, a interferência do narrador, ao narrar, na ação vivida pelo protagonista:
“Uma vez, ao escurecer, passeando eu calado, com o Sanches igualmente, [...] percebi que o meu companheiro balbuciava uma pergunta. [...] como não aprendi a pergunta, o Sanches repetiu. Escapou-me involuntário o riso. Abarbava-me a mais rara espécie de pretendente! Eu ria com franqueza, mas abismado. Era de uma extravagância original aquele Sanches! Hoje, ele é engenheiro em uma estrada de ferro do Sul, um grave engenheiro...” (POMPEIA, 1998, p. 45-46, grifo nosso).
Para o crítico Silviano Santiago, a personagem Sérgio faz um jogo de sedução para dominar Sanches pela fraqueza. Santiago não concorda com outros críticos literários que veem nessa relação uma semelhança com a fábula em que o lobo ataca o cordeiro. Para ele, foi justamente a ampliação desse papel feminino que guiou Sérgio em sua relação afetiva com Bento Alves, que era temido e impunha-se pela força hercúlea e pela sisudez:
“[...] Estimei-o femininamente, porque [Bento Alves] era grande, forte, bravo; porque me podia valer” (POMPEIA, 1998, p.84 ).
Egbert representa a pureza idílica de uma nova amizade, com um foco diferente em relação às anteriores. Com Egbert, Sérgio assume o papel de irmão mais velho, quando antes, por ser o mais novo, era o protegido. Vale registrar que o narrador se vale do que a teoria literária dos nossos dias chama de “recado do nome”. Os nomes de algumas personagens são claramente motivados pelos seus papéis nas relações homoeróticas que experimentaram: Cândido evoca pureza e era apelidado, ironicamente, de “Sra. D. Cândida”, e Tourinho evoca força vital.
A citada relação Sérgio-Egbert faz a ponte para o desejo heterossexual que o protagonista alimentará por D. Ema, esposa do diretor Aristarco. Ema – anagrama da palavra mãe e nome da protagonista do romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert – representa a ultrapassagem, por parte do protagonista, tanto das tendências homoeróticas, quanto de possíveis situações edipianas2 mal resolvidas (“Não! Eu não amara nunca assim minha mãe” (POMPEIA, 1998, p. 161). Nessa relação de oblíqua sensualidade, de ambíguas carícias trocadas entre os dois, Ema promove Sérgio aos privilégios e deveres da idade adulta, possibilitando-lhe o passo final do rito de passagem para a maturidade.
Várias dessas relações afetivas apresentam uma mediação literária: a “ilha dos amores”, do Canto IX de Os Lusíadas, no caso da relação Sérgio-Sanches; as trovas medievais, no que diz respeito a Sérgio-Bento Alves; e o romance Paulo e Virgínia, referência literária na relação Sérgio-Egbert. Até o infortúnio do caso Cândido-Tourinho (humilhados por Aristarco diante dos outros alunos) é comparado à desgraça de Francesca e Paolo, no inferno de Dante em A Divina Comédia.
Aristarco, cujo nome significa ironicamente “o ótimo chefe”, é mostrado caricaturalmente como interesseiro, oportunista e narcisista. O caráter interesseiro chega a chocar o leitor pela forma como Aristarco se refere (indiretamente, pela voz do narrador, na terceira pessoa) à esposa, que foge durante o incêndio, no final da narrativa:
“A própria senhora com quem ele contava para o jardim de crianças” (POMPEIA, 1998, p. 167).
Apesar dessa alusão cruel à esposa, há de se reconhecer que, diante do incêndio do Ateneu, o diretor aparece humanizado pela dor e ganha uma profundidade inesperada. Durante toda a narrativa, comporta-se sempre como um poseur3, voltado para a própria imagem, vivendo apenas para o exterior: “Aristarco todo era um anúncio” e tinha “a obsessão da própria estátua”, estátua essa que ele acaba recebendo dos alunos. Foi comparado a Júpiter pelo narrador. Era uma mistura de educador e gerente, que dispensava ao aluno tratamento de acordo com sua condição social e financeira.
Franco representa o nível de máxima inferioridade na escala social do internato. É o bode expiatório que realça, por oposição, a pretensa virtude dos demais. Aristarco cultiva Franco como uma aberração necessária para destacar a “harmonia” do modelo educacional do Ateneu.
“De joelhos... não há perguntar; é o Franco. Uma alma penada. Hoje é o primeiro dia, ali está de joelhos o Franco. Assim atravessa as semanas, os meses, assim o conheço, nesta casa, desde que entrei. De joelhos como um penitente expiando a culpa de uma raça” (POMPEIA, 1998, p. 32).
“Franco não ria nunca” (POMPEIA, 1998, p. 35).
A morte de Franco é uma recusa selvagem da vida. Ela passará despercebida fora do espaço do Ateneu porque não convém à instituição um enterro aparatoso que chame a atenção para uma situação negativa no colégio. Propagar o bom, esconder o ruim, eis a tática.
Já a personagem Dr. Cláudio não faz parte da ação propriamente dita de O Ateneu, mas funciona, através de suas conferências sobre Arte, defendendo uma teoria materialista e darwiniana, como um porta-voz das ideias do próprio Raul Pompeia sobre arte. O Dr. Cláudio seria um Sérgio maduro, grave, ponderado, mais próximo do Sérgio-narrador. Nesse sentido é que afirma Santiago:
Sem exageros diríamos que o Dr. Cláudio é a única personagem sem rosto na galeria de O Ateneu e talvez a única personagem que nunca faz nada, apenas fala e, certamente, a única personagem masculina, adulta, que mantém estreito contato com Sérgio e que nunca recebe deste uma crítica sequer. Trata-se do Dr. Cláudio, em que todos os críticos em voz unânime reconhecem o dedo e as ideias do próprio Pompeia (SANTIAGO, 1998, p. 93).
É o Dr. Cláudio que vai fazer uma leitura menos amarga do Ateneu e, até, sob a ótica do darwinismo, justificá-lo, embora ironicamente, dizendo ser salutar o internato, por possibilitar aos estudantes a experiência da miséria moral. Nesse choque, os fracos serão destruídos e os mais aptos, exaltados. É a lei da seleção natural. Portanto, a opinião do Dr. Cláudio diverge do retrato que o narrador nos dá do Ateneu, o que torna a narrativa ainda mais complexa.
O espaço físico do Ateneu começa a ser descrito por uma porta, a entrada do internato. Essa porta se fecha às costas do protagonista Sérgio. O Ateneu é uma clausura, uma muralha, uma edificação composta de três níveis: subsolo, primeiro andar e segundo andar. O subsolo aumenta a sensação de profundidade e aprisionamento. Nele situa-se a cafua (espécie de gaiola), destino dos infratores.
O primeiro andar está no nível do pátio central, “duas alas como os braços da reclusão severa”. No mesmo andar, encontram-se a cozinha e a copa. Todas as janelas dão para o pátio, também fechado. Mesmo construções independentes, como a sala geral de estudo e a piscina, apresentam paredes e muros que cumprem o papel de separação. Até as janelas da enfermaria estão sempre fechadas.
No segundo andar, estão situados os dormitórios: “salão pérola” para os menores; “salão floresta” para os médios e o dormitório dos maiores bem isolado do resto do estabelecimento (ROIG, 1981, p. 16). Tudo é muito recluso e vigiado. A comparação do Ateneu a um cárcere está explícita nesta declaração de Sérgio: “Estava aclimado. Mas eu me aclimara pelo desalento, como um encarcerado no seu cárcere” (POMPEIA, 1998, p. 40). Além do mais, a brancura das paredes, como já vimos, associa-se ao tédio e evoca a própria morte: “ [...] as paredes brancas como túmulos caiados” (POMPEIA, 1998, p. 51).
Os alunos que permanecem no internato, “os tristes reclusos de férias”, são reificados (coisificados) quando comparados às paredes do Ateneu, “com o deplorável inconveniente de se não poder caiar de novo” (POMPEIA, 1998, p. 160). As próprias plantas do pátio apresentam uma cruel analogia com a vida dos jovens internos, que não encontram no Ateneu um ambiente propício à saúde. O verdor morto das palmas e a folhagem fixa das árvores de cambucá lembram o Ribas, um ancião precoce; ou o Franco, de cabeça baixa como um cão.
São raras as vezes em que se menciona o espaço exterior do internato. Os arredores não são descritos. A cidade está distante. As saídas coletivas são excepcionais, e os vigilantes fiscalizam todos os movimentos dos internos. As poucas evasões possíveis dão-se pela via fictícia dos romances de Júlio Verne. Não há brechas na clausura do internato. A única tentativa de fuga, narrada no romance, fracassa. Seu autor é Américo, cujo nome evoca Américo Vespúcio, do qual se originou o nome do continente americano.
Outra vertente de evasão é por meio da pornografia e do sexo. O Ateneu, como qualquer internato, tem seus espaços de interdição: a moita de bambus e ramos de hera, onde Ângela, a canarina, vinha ver os banhos dos rapazes, à tarde, ou o pátio de pouca luz, em que Sanches abordava Sérgio mais intimamente.
Portanto, o Ateneu é um viveiro de ressentidos, dividido em castas, marcado por privilégios e injustiças. Para Silviano Santiago, “a verdade do Ateneu realmente extrapola os limites do educandário e se apresenta metaforicamente como um retrato do Brasil durante o Segundo Reinado” (SANTIAGO, 1998, p. 96). É um espelho de uma sociedade de trocas, na qual todos os gestos têm um preço.
Dois quadros em alto-relevo recobriam uma das salas do colégio: à direita, uma alegoria das artes e do estudo; à esquerda, outra das indústrias humanas. A expectativa do menino Sérgio, ao entrar no Ateneu, era de que o colégio fosse uma tradução harmoniosa dessas alegorias, que ele contemplara, encantado, uma primeira vez. A trajetória do protagonista é, na verdade, a destruição dessa expectativa diante das duas imagens:
“Enquanto na sala verde, emparedada de pórfiro polido, esperava, com os colegas, que aparecesse à porta o inspetor que devia ler o resultado do escrutínio, foi-me parar a vista aos quadros de alto-relevo, das artes e das indústrias, os risonhos meninos nus, fraternais, em gesso puro e inocência. Senti-me velho. Que longa viagem de desenganos!” (POMPEIA, 1998, p. 108-109, grifo nosso).
O Ateneu é um romance ambicioso. O narrador Sérgio exibe toda a cultura erudita do autor Raul Pompeia. Na trama desse romance, há toda uma visão panorâmica da literatura ocidental e, particularmente, da literatura brasileira. Há ainda ricas alusões à Música, às Artes Plásticas, ao Teatro Clássico, além de incursões reflexivas às Ciências Naturais, como à Anatomia, à História Geral e à Geografia, entre outras áreas do saber humano.
Por ocasião da publicação de O Ateneu, essa obra era vista como um roman à clef (narrativas nas quais situações e personagens são rigorosamente calcados na vida real): O Ateneu seria o Colégio Abílio; Aristarco seria o Dr. Abílio de César Borges, Barão de Macaúbas; Sérgio seria o próprio autor, Raul Pompeia. Entretanto, com o passar dos anos, os modelos empíricos que inspiraram as criações fictícias do autor deste romance são cada vez menos importantes, como esclarece Lúcia Miguel Pereira:
Pela força que a anima, a figura do diretor Aristarco se libertou da do Barão de Macaúbas, se dela nasceu; tem as características da criação artística que, se não prescinde da experiência, aproveita-a apenas como material de construção, como o barro dos escultores, transformando-a livremente. Assim todas as outras, ainda a de Sérgio (PEREIRA, 1988, p. 108).
Terminada a história, esgotado o desfile de ocorrências que se inicia com a entrada de Sérgio para o internato e se encerra com o incêndio do Ateneu, o relato finda bruscamente, no violento corte de uma imagem do tempo:
“Aqui suspendo a crônica das saudades. Saudades verdadeiramente? Puras recordações, saudades talvez se ponderarmos que o tempo é a ocasião passageira dos fatos, mas sobretudo – o funeral para sempre das horas” (POMPEIA, 1998, p. 168).
O rito de passagem se completara porque, se o internato é uma espécie de miniatura do conjunto da sociedade, não haverá nenhuma novidade no mundo lá fora. Daí a narrativa não se interessar pela vida de Sérgio depois de sua saída do Ateneu.