A arte barroca é fruto de um período histórico marcado por grandes transformações que abalaram a vida na Europa Ocidental e criaram uma nova ordem econômica, política, social, cultural e espiritual. O contexto histórico do século XVII é resultado das alterações provocadas pelo mercantilismo, pelo fortalecimento do capitalismo (Revolução Comercial) e pelo declínio acentuado do mundo feudal.
No plano político, é a época do absolutismo, sistema cuja centralização do poder nas mãos do monarca era atribuída à vontade divina. Esse sistema favoreceu os interesses da nova classe, a burguesia, em sua luta pelo poder político, numa estrutura social que incluía a nobreza e o clero. A gradativa ascensão burguesa vem acompanhada do fortalecimento da crença nas potencialidades do ser humano – humanismo, antropocentrismo –, com sua capacidade de conquistar o mundo e transformar a natureza, baseando-se na razão e em avanços técnico-científicos.
Quanto à vida espiritual, o século do Barroco vive os reflexos de crises religiosas. Ao lado da consolidação da Reforma Protestante, veem-se os efeitos da reação da Contrarreforma: o Concílio de Trento e a fundação da Companhia de Jesus são iniciativas para conter a onda de protestantismo que comprometeu a unidade da Igreja Católica, processo bem acentuado em Portugal e Espanha, redutos de um cristianismo de natureza medieval.
No seu afã de recuperar a tradição cristã e medieval, mantida latente sob a força dos ideais renascentistas e antropocêntricos, a Igreja forneceu os elementos que definiram a arte e a ideologia da época. Nesse sentido, pode-se afirmar que o Barroco serviu de veículo para a ideologia que orientou a vida espiritual do Seiscentismo, já que essa arte foi uma expressão da tendência geral de rejeição a valores, visão de mundo e concepções trazidos pela Renascença.
São essas circunstâncias que formarão a realidade do homem barroco: realidade conflituosa, contraditória; de certezas e incertezas, de segurança e insegurança, de possibilidades e impossibilidades, de crenças e descrenças, de otimismo e pessimismo. Em síntese: de razão e fé. O estilo barroco, cuja marca distintiva é a constelação de artifícios e sinais, possui as seguintes características, apontadas pelo professor Renato Dórea, ao recorrer à obra Estilo de época na Literatura,
de Domício Proença Filho:
Fusionismo: fusão de luz e treva (chiaroscuro = claro-escuro), do racional e irracional, etc. O Barroco procura a fusão, a conciliação, a incorporação dos ideais da Idade Média com os valores trazidos pelo Renascimento. Resulta em contradições, tensão, dualidade, contrastes entre valores terrenos, mundanos, carnais, materiais e os valores espirituais, supraterrenos. Na prosa, verifica-se a anulação de linhas que limita as partes e capítulos.
Culto do contraste: consequência da característica anterior, ou seja, expressão de um homem dividido espiritualmente entre razão e fé. A literatura barroca é contaminada de elementos contrastantes, como ascetismo e mundaneidade, vida e morte, amor e sofrimento, realismo e idealismo, juventude e velhice, céu e terra, erotismo e religiosidade, ilusionismo e naturalismo.
Intensidade: o poeta barroco se utiliza de uma expressão carregada de intensidade, de hipérboles, para traduzir o sentido da existência humana. Daí o sentimento amoroso, o ciúme, o arrependimento e o desejo sexual serem expressos com “palavras de fogo, levando até ao assassinato, à violação, ao incesto”. Verifica-se essa tendência, também, “nos excessos de desespero, no orgulho desmesurado, no gosto das emoções fortes, do espetáculo aterrador da morte, do macabro,
das alucinações, do fantástico”.
Impressionismo: a arte barroca procura, por meio de fortes impressões sensoriais, reaproximar o ser humano de Deus, buscando incutir-lhe aversão à vida terrena. Daí a referência a aspectos repugnantes, dolorosos, cruéis, sangrentos – características da “estética do feio” –, estratégia usada para mostrar a pequenez e a miséria humanas.
Este estudo tem como referência a obra Poemas Escolhidos de Gregório de Matos – seleção e prefácio de José Miguel Wisnik, publicada pela Companhia das Letras, em 2010. Tal obra divide a poesia do poeta baiano com base em um critério temático, afirmando que este não é definitivo: “A poesia de circunstância: aquela que se volta claramente para a realidade circundante, o meio social, a cidade, o Recôncavo. [...] dentro da poesia de circunstância, ficou a poesia encomiástica, também atada à circunstância local. A poesia amorosa: a poesia lírica e a que resolvemos denominar erótico-irônica [...]. A poesia religiosa: [...] que tematiza a culpa e o perdão, e também aquela que tematiza a vida como trânsito, e que, em muitos casos, consta da Lírica na edição da Academia”. (p. 35).
Nascido em Salvador (Bahia), por volta de 20 de dezembro de 1633 ou 1636, o poeta barroco brasileiro foi contemporâneo do Pe. Antônio Vieira. Ele faleceu em Recife (Pernambuco), em 1696. Amado e odiado, além de reconhecido por muitos como o “Boca do Inferno”, o “Notabilíssimo Canalha”, o “Bacharel no Purgatório”, por causa de suas poesias satíricas, Gregório de Matos bebeu da estética, do estilo e da sintaxe de Góngora e Quevedo. Sua importância centra-se no fato de que ele é tido como o iniciador da literatura brasileira.
Depois de uma longa estada na Europa, o poeta retorna para a mestiça Bahia, onde viveu dos 48 aos 60 anos de idade. Nessa época de maturidade, o irrequieto artista produziu duríssimas poesias satíricas, denunciando, de maneira implacável “o roubo, a injustiça e a tirania”. Foi na “Cidade da Bahia” que o “Boca do Inferno” soltou a sua “metralhadora” de impropérios e críticas a todas as esferas da sociedade. Ambientado em um universo completamente diferente do vivido na Corte, o poeta abrasileirou o “seu Barroco”, utilizando, muitas vezes, na sua poesia, palavras novas que os índios, brancos e negros usavam pelas ruas da Bahia. Surgiu, assim, a poesia brasileira, pela formulação do “sentimento nativista na Colônia dos primeiros açúcares e dos primeiros mulatos”. Surgiu, portanto, a poesia de nossa gente, que brotava livre e divertida, sem rancor e sem ressentimento.
A Igreja bem que tentou conter o ímpeto do poeta, mas não conseguiu remi-lo, ao oferecer a batina em troca da “língua maldizente”. Gregório recusou o “negócio”. Ele preferiu a boemia e as ruas da Bahia a uma vida contida pelos corredores das igrejas. Ele voltou a advogar de sua maneira, adornando a mesa de trabalho com bananas Maranhão em vez de flores. Depois de ter largado a família e todas as atribuições que exigissem certa dose de responsabilidade, o “Notabilíssimo Canalha” fora absorvido por completo pelo mundo baiano, livre de preconceitos. Nasceu, então, o poeta popular, obsceno, tocador de viola e muito irreverente. Depois de muitos problemas, breves prisões, tentativas de agressões, demissões, perseguição e degredo para Angola, uma breve estada na África, Gregório retornou para Pernambuco (“não seria cabível voltar para a Bahia”), onde morreu. Naquele ano, morreu o homem, mas nasceu, definitivamente, o grande debochador e satírico poeta do Barroco brasileiro.
A sátira de Gregório de Matos não foi facilmente aceita no seu tempo. Afinal de contas, o poeta ridicularizava ricos e pobres, poderosos e fracos, homens e mulheres, e era difícil perdoar-lhe os desaforos. O seu descontentamento por voltar a viver na Bahia gerou um confronto com a sociedade baiana e intensificou sua veia satírica em nome da moral e dos bons costumes. Por tornar-se um crítico da sociedade, seus versos vibram na boca dos marginalizados do rígido sistema.
Era eu em Portugal
sábio, discreto, entendido,
poeta, melhor que alguns,
douto como os meus vizinhos.
Chegando a esta cidade,
logo não fui nada disto:
porque o direito entrou torto
parece que anda torcido. (p. 152)
A escritora e estudiosa da obra de Gregório de Matos, Cleise Furtado Mendes (1996), aponta que o vocabulário de Gregório de Matos é ‘‘inconveniente’’; seus instintos são agressivos; seu furor é de escárnio; seu deleite é na feiura e no grotesco. Observe os versos a seguir dedicados ao Governador Antônio Luiz Gonçalves da Câmara Coutinho:
A vós, merda dos fidalgos,
a vós, escória dos Godos,
filho do Espírito Santo
e bisneto de um caboclo: (p. 120)
Sua sátira atinge
• governadores (sobre o governador Antônio de Souza Menezes, o Braço de Prata):
Senhor Antão de Sousa de Meneses,
Quem sobe a alto lugar, que não merece,
Homem sobe, asno vai, burro parece,
Que o subir é desgraça muitas vezes. (p. 114)
• religiosos:
Que um cão revestido em padre
por culpa da Santa Sé,
seja tão ousado que
contra um branco ousado ladre; (p. 49)
• membros da sociedade:
A putinha aldeã achada em feira,
Eterno murmurar de alheias famas,
Soneto infame, sátira elegante;
Cartinhas de trocado para a freira,
Comer boi, ser Quixote com as damas,
Pouco estudo: isto é ser estudante. (p. 173)
• mulheres:
Senhora Beatriz: foi o demônio
Este amor, esta raiva, esta porfia,
Pois não canso de noite nem de dia
Em cuidar nesse negro matrimônio. (p. 281)
• a Igreja:
A nossa Sé da Bahia,
com ser um mapa de festas,
é um presépio de bestas,
se não for estrebaria:
várias bestas cada dia
vemos que o sino congrega,
caveira mula galega,
o Deão burrinha parda,
Pereira Besta de albarda,
tudo para a Sé se agrega.
• a própria Cidade da Bahia:
Eia! estamos na Bahia,
onde agrada adulação,
onde a verdade é baldão,
e a virtude hipocrisia: (p. 70)
• até a si mesmo:
Eu sou aquele, que os passados anos
Cantei na minha lira maldizente
Torpezas do Brasil, vícios e enganos. (p. 199)
Gregório, pertencente à pequena nobreza luso-baiana, condena o fato de Dom João IV fomentar uma “política anticastelhana”, aliando-se aos britânicos, privilegiando os comerciantes estrangeiros e os latifundiários mais importantes. Sua poesia já revela uma certa consciência anticolonialista se formando nas elites econômicas brasileiras da época.
A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.
Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote. (p. 44)
O poeta e professor Fernando Rocha Peres (2000) afirma que a poesia de Gregório de Matos “tem muita mestiçagem, até mesmo agressiva, na medida em que ele assume um papel preconceituoso contra o negro, o mulato”.
Imaginais que o insensato
do canzarrão fala tanto,
porque sabe tanto ou quanto?
não, senão porque é mulato;
ter sangue de carrapato,
ter estoraque de congo,
cheirar-lhe a roupa a mondongo
é cifra de perfeição:
milagres do Brasil são. (p. 52)
Gregório de Matos é alguém que demonstra, em sua obra, uma refinada percepção da realidade do seu tempo, seu mundo de sensações, medos, fraquezas, aversões e solidão. O trecho a seguir é sobre a fome que houve na Bahia no ano de 1691:
Toda a cidade derrota
esta fome universal,
uns dão a culpa total
à câmara, outros à frota: (p. 62)
Já o trecho a seguir descreve como os estrangeiros arruínam a Bahia:
Senhora Dona Bahia,
nobre e opulenta cidade,
madrasta dos naturais,
e dos estrangeiros madre:
Dizei-me por vida vossa
em que fundais o ditame
de exaltar os que aí vêm,
e abater, os que ali nascem? (p. 53)
Na sua poesia satírica, ele amplia as possibilidades de expressão do nosso barroco, ao fazer uso de vocábulos indígenas e africanos junto aos vocabulários espanhol, francês e latino.
Há coisa como ver um Paiaiá
Mui prezado de ser Caramuru,
Descendente de sangue de tatu,
Cujo torpe idioma é Cobepá?
A linha feminina é carimá
Muqueca, pititinga, caruru
Mingau de puba, vinho de caju
Pisado num pilão de Pirajá. (p. 108)
Na sua linguagem satírica, Gregório de Matos usa o coloquialismo, aproximando-se da linguagem modernista.
O Amor é finalmente
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias.
Uma confusão de bocas,
uma batalha de veias,
um rebuliço de ancas,
quem diz outra coisa, é besta. (p. 309)
No entanto, como Cleise Furtado Mendes aponta, em sua obra Senhora Dona Bahia, “as marcas barrocas na obra gregoriana são notórias”. Por exemplo, ao tratar sobre a fome que houve na Bahia no ano de 1691, o poeta apresenta hipérbatos (de acordo com o estilo cultista): “Toda a cidade derrota / Esta fome universal, / uns dão a culpa total / À câmara, outros à frota”. Na ordem direta, os versos ficariam assim: Esta fome universal derrota a cidade toda. Ele apresenta também jogos de palavras entre Inácia e Apolônia: “Mas se debaixo da Luz / não vai mais esta que estoutra, / Eu não deixo uma por outra / Nem escolho outra por uma”. Além desse trecho, há este: “guarde-se a cruz do diabo, não o diabo da cruz”. Há também a técnica da escolha. Essa técnica consiste em recolher, em um verso-síntese, as últimas palavras dos versos antecedentes:
Que falta nesta cidade? .................................................... VERDADE
Que mais por sua desonra? ............................................. HONRA
Falta mais que se lhe ponha? .......................................... VERGONHA
O demo a viver se exponha,
por mais que a fama a exalta,
numa cidade onde falta /
Verdade, Honra, Vergonha (p. 41, grifo nosso).
Por fim, é possível encontrar nos poemas de Gregório de Matos também os paradoxos e o raciocínio tortuoso: “Não é fácil viver entre os insanos, / Erra, quem presumir que sabe tudo, / Se o atalho não soube dos seus danos. // O prudente varão há de ser mudo, / Que é melhor neste mundo, mar de enganos, / Ser louco c’os demais, que só, sisudo”.
Agora leia alguns poemas emblemáticos.
Esse soneto foi usado pelo cantor baiano Caetano Veloso como letra de sua canção “Triste Bahia”. Tal fato comprova que a poesia satírica de Gregório é muito atual. Alguns estudiosos chegam a dizer que ele antecipou traços do Modernismo brasileiro, com sua sátira ferina e incisiva, como foi citado anteriormente. Nesse poema, o “Boca do Inferno” mostra o aperto que a metrópole portuguesa vinha impondo à Colônia. Portugal levava o que havia de melhor (açúcar) e deixava o que não tinha valor algum (drogas inúteis).
Aqui o poeta registra o seu desgosto com a Bahia, região outrora rica e abundante, mas que agora, pela ação mercenária dos negociantes, cai em miséria. Cabe atentar para o paralelismo que o autor estabelece entre seu passado pessoal e o passado da terra baiana: “Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, / Rica te vi eu já, tu a mi abundante.”
O soneto não deixa escapar certo teor autobiográfico, em que o poeta lastima a falta de bom senso e seriedade de seus compatriotas, que fizeram péssimos negócios, como também a sua própria fraqueza e decadência pessoal: “[...] quão dessemelhante /
Estás e estou do nosso antigo estado!” Gregório ativa o jogo das trocas poéticas, dos truques e das tramas da linguagem, dos trocadilhos, dos jogos paronomásticos, produzindo toda uma gama de deslocamentos de significante e significado.
“Estás e estou do nosso antigo estado”: as antíteses, presentes em todo o poema, são acompanhadas de efeitos fônicos,
de aliterações, que vão modulando a mensagem, sempre nas sílabas acentuadas do verso (ta / to / ti / ta). Podemos perceber, portanto, que há uma preocupação com a forma do poema e com os recursos estilísticos também, pois o rebuscamento e o uso exagerado de figuras de linguagem são traços marcantes do Barroco.
Em síntese, observamos que, no que diz respeito à relação entre o eu lírico e a Bahia, na primeira estrofe, o eu lírico identifica-se com a Bahia, pois ambos sofrem a perda de um antigo estado; na segunda estrofe, a Bahia aparece personificada, fato confirmado no momento em que ela e o eu lírico se olham. Na terceira estrofe, a Bahia não está isenta da culpa pela perda de seu antigo estado.
Descreve o que era realmente naquele tempo a cidade da Bahia de mais enredada por menos confusa
A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha,
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um frequentado olheiro,
Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e ao terreiro.
Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos pelos pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.
Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia. (p. 45)
Nesse soneto, um dos mais conhecidos sonetos da sátira gregoriana, a descrição dos tipos humanos e dos costumes que caracterizam a cidade da Bahia revela a ironia do poeta para com uma sociedade marcada pela incompetência dos governantes, pela prática cotidiana da fofoca e da bisbilhotice, pela desonestidade e pela prática generalizada do roubo no comércio. Gregório representa, de maneira satírica, os governantes e a desonestidade na Bahia colonial.
Nele, o poeta discorre sobre a usura, a ignorância e a inversão de valores reinantes em sua época e em sua “Cidade da Bahia”. Ele critica os políticos incompetentes que chegam ao poder sem nenhuma condição de ocupar cargos importantes, critica os pretensiosos e os néscios que “mal sabem governar sua cozinha”, mas creem poder dar ordens a todos. Volta-se contra os fofoqueiros da cidade, que levam para a “praça e terreiro” as suas “verdades”. Critica a falta de vergonha dos mulatos em não respeitar os “verdadeiros nobres” da cidade e, por fim, mostra a usura dos comerciantes da cidade (os quais eram alvo de muitas críticas de Gregório), que sempre exploraram a população com preços extorsivos. Trata-se de um poema em que o elemento satírico do humor e da ironia se conjuga com a crítica de costumes.
Em relação a esse poema, o professor José Édil de Lima Alves assegura que, no que diz respeito ao metro, o presente soneto se apresenta como isométrico, ou simples, pois todos os seus versos são decassílabos. Embora haja predominância do decassílabo heroico (tonicidade na 6ª e na 10ª sílabas), é possível notar o uso do icto (tônica predominante ou mais intensa num verso) que altera o esquema básico, podendo-se, pois, afirmar que a estrofe é heterorrítmica.
No tocante ao vocabulário utilizado nesse poema, verificamos que Gregório de Matos fez escolhas lexicais ao alcance do grande público: palavras de sentido corrente (nível referencial ou denotativo). Acerca da estrutura gramatical dos versos, utiliza construções sintáticas quase sempre em ordem direta, evitando deslocamentos mais arrojados que pudessem truncar a compreensão imediata do discurso. Deve-se notar, igualmente, que, de forma didática, ele recorreu mesmo à metalinguagem, para evitar algum mal-entendido possível, na passagem em que se refere a quem é pobre, naquela Bahia: “os que não roubam”.
É fácil perceber, nos versos de Gregório de Matos, no presente soneto, o conflito entre o Bem e o Mal, princípio maniqueísta tão ao gosto do homem daquele período. Apesar do tom um tanto jocoso que ele confere aos versos, mercê do emprego do paradoxo no primeiro quarteto (Não sabem × E podem), ressaltado pela hipérbole (mundo inteiro), é perceptível o caráter moralizante em que se fundamenta o tema, destacado pela oposição paradoxal: os bons estão para os pobres, assim como os maus estão para os ricos; os homens nobres trazidos pelos pés, enquanto a picardia está posta nas palmas.
O paradoxo é um dos fundamentos do Barroco, abundante no registro de fatos que comprovam a tese do chamado “desconcerto do mundo”, tematizado de forma magistral por Luís Vaz de Camões.
Contemplando nas cousas do mundo desde o seu retiro,
lhe atira com o seu ápage, como quem a nado escapou da tormenta
Neste mundo é mais rico o que mais rapa:
Quem mais limpo se faz tem mais carepa;
Com sua língua, ao nobre o vil decepa;
O velhaco maior sempre tem capa.
Mostra o patife da nobreza o mapa:
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.
A flor baixa se inculca por Tulipa;
Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Mais isento se mostra o que mais chupa.
Para a tropa do trapo vazo a tripa;
E mais não digo; que a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa. (p. 46)
Nesse poema, Gregório mostra a sua destreza no domínio dos recursos fônicos, ao usar com maestria a assonância em
a-e-i-o-u. Ele também faz uso de aliterações, principalmente em t e p. Na segunda estrofe, há uma anáfora (repetição de palavras no início dos versos). O poeta faz uso de rimas exóticas, como “garlopa / topa”. O uso de muitas figuras de linguagem é uma marca tipicamente barroca, por isso podemos perceber antítese com ironia no segundo verso. O trocadilho (tropa-trapo-tripa) ironiza os fidalgos da Bahia (“tropa do trapo”). A expressão “vazo a tripa” tem o sentido pejorativo de defecar.
Define a sua cidade
Mote
De dous ff se compõe
esta cidade a meu ver,
um furtar, outro foder.
Glosa
1
Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem digesto, e colheito,
só com dois ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer que esta terra
de dous ff se compõe.
2
Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta,
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
esta cidade a meu ver.
3
Provo a conjetura já
prontamente com um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são B A H I A,
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder. (p. 102, 103)
Não foi à toa que Gregório foi chamado de “Boca do Inferno” e de “Notabilíssimo Canalha!” Ele não poupou críticas aos costumes da cidade e aos moradores da sua época. Sua sátira atingiu toda a pirâmide social brasileira, desde o povo até o governador. Neste poema, a sua irreverência e ousadia foram notáveis, pois, por meio de uma linguagem de baixo calão,
o poeta afirma: na “cidade da Bahia”, o que prevalece é a luxúria e a roubalheira. Gregório afrontou os valores e a falsa moral da sociedade que, para ele, tinha comportamentos considerados indecorosos e repulsivos.
À despedida do mau governo que fez o governador da Bahia
Senhor Antão de Sousa de Meneses,
Quem sobe ao alto lugar, que não merece,
Homem sobe, asno vai, burro parece,
Que o subir é desgraça muitas vezes.
A fortunilha, autora de entremezes,
Transpõe em burro o herói, que indigno cresce:
Desanda a roda, e logo homem parece,
Que é discreta a fortuna em seus reveses.
Homem sei eu que foi Vossenhoria,
Quando o pisava da fortuna a roda,
Burro foi ao subir tão alto clima.
Pois vá descendo do alto onde jazia;
Verá quanto melhor se lhe acomoda
Ser home em baixo, do que burro em cima. (p. 114)
O soneto faz uma dura e incisiva crítica ao então governador Antão de Sousa de Meneses (Antônio, mas Gregório faz questão de chamá-lo de uma anta gigante – Antão) por ele, mesmo sendo muito incompetente, ter chegado a um cargo que jamais deveria ter alcançado. Escrito à maneira de provérbio, o poema adverte sobre aqueles que, despreparados, aspiram a altos postos. Não sabendo, nem podendo manter-se na posição privilegiada, essas figuras (antas) melhor fariam se permanecessem onde estavam.
O texto faz alusão a Antônio Meneses, conhecido como “Braço de Prata”, homem que vivia dentro do seu “palácio” e que tinha o hábito de ficar segurando o seu “braço de prata” com a outra mão. Ele era temido por onde passava, ao ponto de exigir que todos se ajoelhassem quando ele estivesse passando. Mesmo sendo tão ameaçador, Antão “caiu” na sátira do “Boca do Inferno”, o que nos mostra como o poeta era ousado e, muitas vezes, inconsequente.
A uma freira, que satirizando a delgada fisionomia do poeta lhe chamou “pica-flor”
Gregório teve cargo religioso – era formado em Direito Canônico – mas, mesmo assim, usou a sua sátira para “metralhar” algumas figuras do clero de sua época. Ele foi além do seu tempo, pois, em um Brasil ainda bastante religioso e, portanto, respeitoso com os religiosos, ele “brincou” com palavras para provocar a freira que o tinha chamado de “pica-flor”. Trata-se de uma décima, poema ou estrofe de dez versos, de intenção erótica, cuja palavra-chave é “flor”. É um texto galante, eufemístico, pois expõe, de forma indireta e sutil, o desejo libertino do poeta. Note como as palavras “pica” e “flor” são exploradas com graça, economia e destreza.
É muito importante percebermos a destreza com que o poeta usa a linguagem. Ele provoca o riso, a galhofa, atitude de um típico poeta satírico. Há um jogo poético com o termo “pica-flor”, que ganha o sentido de um convite erótico claramente profano, já que é dirigido a uma freira.
Aos principais da Bahia chamados os caramurus
Um calção de pindoba, a meia zorra,
Camisa de urucu, mantéu de arara,
Em lugar de cotó, arco e taquara
Penacho de guarás, em vez de gorra.
Furado o beiço, e sem temor que morra
O pai, que lho envasou c’uma titara,
Porém a Mãe a pedra lhe aplicara
Por reprimir-lhe o sangue que não corra.
Alarve sem razão, bruto sem fé,
Sem mais leis que a do gosto, quando erra,
De Paiaiá tornou-se em abaité.
Não sei onde acabou, ou em que guerra:
Só sei que deste Adão de Massapé
Procedem os fidalgos desta terra. (p. 110)
A sátira de Gregório é a parte mais conhecida da sua obra poética, mas não pode ser considerada a mais barroca. Esse soneto exemplifica uma das características de sua sátira: o uso de palavras indígenas e o uso de aspectos culturais nativos. O poeta criticava bastante aqueles que se diziam descendentes de Caramuru (figura histórica do século XVI, que se casou com Paraguaçu e deixou muitos filhos e netos).
Para entendermos a crítica que Gregório faz aos fidalgos da Bahia, é imprescindível buscarmos o significado de algumas palavras indígenas, pois elas não eram usadas habitualmente. O poeta usou a língua tupi (uma dentre tantas faladas pelas nações indígenas). O efeito é cômico e bastante lúdico também. O poeta satírico debochava também da pompa da linguagem barroca europeia. O que Gregório fazia era ridicularizar os fumos dos “principais da Bahia”, cujo idioma é Cobepá.
A certa personagem desvanecida
Um soneto começo em vosso gabo:
Contemos esta regra por primeira:
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no cabo.
Na quinta torce agora a porca o rabo;
A sexta vá também desta maneira:
na sétima entro já com grã canseira,
E saio dos quartetos muito brabo.
Agora nos tercetos que direi?
Direi que vós, Senhor, a mim me honrais
Gabando-vos a vós, e eu fico um rei.
Nesta vida um soneto já ditei;
Se desta agora escapo, nunca mais:
Louvado seja Deus, que o acabei. (p. 166)
O Conde de Ericeira, D. Luiz de Menezes, pediu ao poeta que lhe fizesse um soneto elogioso, mas Gregório não via nada nele que fosse digno de ser elogiado, por isso fez esse poema. Aqui temos um poema emblemático da pena gregoriana, no que se dá como leve e satírico, e também criativo, uma brincadeira precisa e inteligente. Esse soneto emprega níveis de linguagem contrastantes, como podemos observar nos versos 5 e 10. Há uma oposição entre a proposta inicial de elogio e a sua realização.
É interessante notar que, formalmente, o soneto é perfeito: versos decassílabos, jogo de rimas e ritmos bem elaborados, mas completamente vazio de conteúdo. Nele, podemos perceber, ainda, a função metalinguística, pois o poeta “fala” da poesia na própria poesia. O soneto é perfeito no aspecto formal, mas, no aspecto conteudístico, completamente vazio. De maneira provocadora, o poeta não apenas insinuou, ele evidenciou que o Conde não tinha nada para ser elogiado.
Aos vícios
Eu sou aquele, que os passados anos
Cantei na minha lira maldizente
Torpezas do Brasil, vícios e enganos.
E bem que os descantei bastantemente,
Canto segunda vez na mesma lira
O mesmo assunto em pletro diferente.
Já sinto que me inflama e que me inspira
Talia, que anjo é da minha guarda
Dês que Apolo mandou que me assistira.
Arda Baiona, e todo o mundo arda,
Que a quem de profissão falta à verdade
Nunca a dominga das verdades tarda.
Nenhum tempo excetua a cristandade
Ao pobre pegureiro do Parnaso
Para falar em sua liberdade. (p. 199)
Gregório passou mais da metade da sua vida em Portugal, com todas as regalias de que um homem culto poderia gozar. Veio para o Brasil e não gostou nada do que encontrou aqui. Por isso, usou sua sátira para fazer uma crítica duríssima e violenta aos vícios do Brasil. Nesse poema, ele fala de si, “Eu sou aquele que os passados anos / Cantei na minha lira maldizente / Torpezas do Brasil, vícios e enganos”. Com sua “lira maldizente”, Gregório viveu uma vida tão tumultuada que foi descrita como “espantosa” por um de seus biógrafos.
Podemos encontrar três vertentes da poesia lírica: a amorosa, a filosófica e a religiosa. Como poeta lírico, Gregório adequou-se aos temas e aos procedimentos do Barroco europeu. Nesse tipo, destaca-se a poesia lírico-amorosa, ou seja, voltada para os sentimentos e manifestações amorosas de um eu lírico, expressos como se fossem seus próprios sentimentos, quando, na verdade, não o são necessariamente. Percebemos, nesse tipo de poesia, o dualismo de Matos ao representar a mulher ora de forma espiritualizada e platônica (nesse caso, branca); ora de forma erótica e sensual (nesse caso, mulata).
José Wisnik diz que a lírica amorosa de Gregório de Matos, por sua vez, tematiza basicamente os choques entre ascetismo e sensualismo, espírito e matéria, fazendo os contrários passarem por uma série de transformações e aproximações que os faz inseparáveis.
Rompe o Poeta com a primeira impaciência querendo declarar-se e temendo perder por ousado
Anjo no nome, Angélica na cara!
Isso é ser flor, e Anjo juntamente:
Se Angélica flor, e Anjo florente,
Em quem, senão em vós, se uniformara:
Quem vira uma tal flor, que a não cortara,
De verde pé, de rama florescente;
E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por seu Deus o não idolatrara?
Se pois como Anjo sois dos meus altares,
Fôreis o meu Custódio, e a minha guarda,
Livrara eu de diabólicos azares.
Mas vejo, que por bela, e por galharda,
Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda. (p. 216)
A mulher, como anjo e flor, espírito e matéria, acaba sendo convertida – de antítese, em paradoxo: “Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda” – em um anjo-demônio diante do qual o ascetismo contrarreformista, sob pressão da neoescolástica, da Monarquia absoluta e da Inquisição, julga preciso cegar-se a visão da galhardia da matéria.
O poema é marcado pelo dualismo carne / espírito que leva o poeta a um sentimento de culpa no plano espiritual, pois a mulher, muitas vezes, é a personificação do próprio pecado e da perdição espiritual. Ela é associada à figura de um “anjo” (espírito), que protege, e à figura de uma “flor” (angélica – matéria), que tenta o sujeito poético. Após o jogo de palavras que contrapõe Anjo e Angélica, flor e anjo são irmanados pela beleza, mas opostos enquanto duração: flor é efêmera e anjo é eterno.
No entanto, o Anjo-mulher, causa das dores e aflições do poeta, é o anjo diabólico, uma vez que o tenta e não o guarda. Vale ressaltar que o poeta baiano “bebeu” bastante da influência dos poetas Camões e Petrarca, no que concerne ao uso do soneto e à idealização da mulher amada. Era bastante comum os artistas buscarem nos clássicos as suas referências, chegando até, muitas vezes, a quase “copiar” trechos inteiros.
A Maria dos Povos, sua futura esposa
Discreta, e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora,
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos, e boca o Sol, e o dia:
Enquanto com gentil descortesia
O ar, que fresco Adônis te namora,
Te espalha a rica trança voadora,
Quando vem passear-te pela fria:
Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trota a toda ligeireza,
E imprime em toda a flor sua pisada.
Oh, não aguardes, que a madura idade,
Te converta em flor, essa beleza
Em terra, em cinza, em pó, em sobra, em nada. (p. 338)
Esse soneto apresenta a temática do Carpe diem, decorrente da consciência da fugacidade do tempo, com a qual se intensifica a angústia em face da fragilidade e da transitoriedade da matéria. Essa consciência é, muitas vezes, retoricamente aproveitada em situações amorosas. No que tange ao aspecto estilístico e estrutural, percebemos, nesse soneto, com versos decassílabos e rimas opostas nos quartetos, a utilização abundante de figuras de linguagem (gongorismo), como metáfora, metonímia, paradoxo, gradação, além do apelo aos recursos sensoriais de luz e cor, do uso de analogias e de mitologia, que revelam a tendência barroca ao rebuscamento formal.
Mesmo a “morte” aparecendo bastante em poemas barrocos, não era ela que mais angustiava os poetas da época.
O que mais angustiava o homem do século XVII era a inexorável e dolorosa passagem do tempo. Esse soneto ficou bastante famoso por parafrasear (algo comum no Barroco) e traduzir, combinando-os, dois sonetos do mestre do cultismo, Góngora: “Ilustre y hermosísima María” e “Mientras por competir con tu cabello”.
Aos afetos, e lágrimas derramadas na ausência da dama a quem queria bem
Ardor em firme coração nascido;
Pranto por belos olhos derramado;
Incêndio em mares de água disfarçado;
Rio de neve em fogo convertido:
Tu, que em um peito abrasas escondido;
Tu, que em um rosto corres desatado;
Quando fogo, em cristais aprisionado;
Quando cristal em chamas derretido.
Se és fogo como passas brandamente,
Se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!
Pois para temperar a tirania,
Como quis que aqui fosse a neve ardente,
Permitiu parecesse a chama fria. (p. 232)
Esse é um dos mais emblemáticos poemas de Gregório de Matos. O gosto por imagens visuais, geralmente a partir de objetos translúcidos – cristais, água, etc. –, acrescido de efeitos visuais, principalmente a recorrência a elementos inconsistentes – fogo, neve, etc. –, torna-se uma das constantes do Barroco. Forte presença da antítese, que evolui para o oxímoro, já que essência e aparência comportam a mesma contradição: neve ardente / chama fria.
Portanto, no final, as oposições convergem para uma síntese: a neve passa a arder como o fogo (“neve ardente”), do mesmo modo que o fogo inicial provoca uma sensação fria (“chama fria”). Esse jogo de opostos, típico da estética barroca, reproduz-se em outros poemas. O tema do soneto é o amor, desenvolvido por meio de uma sucessão de imagens apoiadas em sensações térmicas, com a utilização de metáforas. Esse poema cultista se vale de várias imagens para sugerir as metáforas: ardor, pranto, incêndio, rio, que são expansões do núcleo semântico “fogo e neve”. Tais metáforas estão organizadas num sistema de oposições, em volta do núcleo “quente × frio”.
Na poesia religiosa de Gregório de Matos, percebemos os seguintes temas: o sentimento de culpa; a volta para Deus (depois de ter pecado muito); e a consciência do pecado. Seguindo o ponto de vista de Wisnik, no prefácio dos Poemas Escolhidos, podemos constatar que “estamos diante do confessionário (instituição que tratou, justamente a partir do Barroco, de conciliar os conflitos entre uma moral rígida e uma prática ‘relaxada’, para usar um termo de Gregório, fazendo passar minuciosamente cada pecado pelo vale angustioso e estreito do arrependimento)”. (p. 31)
A poesia é a sacra, de cunho religioso, em que há o bifrontismo entre o teocentrismo medieval e o antropocentrismo renascentista, como observamos na seguinte poesia escrita pelo poeta e dedicada a Jesus Cristo, no último momento de sua vida:
A N. Senhor Jesus Cristo com atos de arrependido e suspiros de amor
Ofendi-vos, meu Deus, é bem verdade,
É verdade, Senhor, que hei delinquido,
Delinquido vos tenho, e ofendido,
Ofendido vos tem minha maldade.
Maldade, que encaminha a vaidade,
Vaidade, que todo me há vencido,
Vencido quero ver-me e arrependido,
Arrependido a tanta enormidade.
Arrependido estou de coração,
De coração vos busco, dai-me os braços,
Abraços, que me rendem vossa luz.
Luz, que claro me mostra a salvação,
A salvação pretendo em tais abraços,
Misericórdia, amor, Jesus, Jesus! (p. 315)
O poeta usa a anadiplose – figura de linguagem que repete a palavra final do verso no verso subsequente. Trata-se de um expediente estilístico bem expressivo da ânsia do infinito, tão característica dos espíritos barrocos, que se comprazem no desenvolvimento espiral do pensamento. E é por isso que, ao término de seu soneto, o poeta irrompe numa angustiante apóstrofe: “Misericórdia, amor, Jesus, Jesus!” A repetição sugere o desenho de uma linha sinuosa e provoca uma sonoridade bastante interessante.
As inversões sintáticas presentes no soneto criam um estilo contorcido (traço bem tipicamente barroco), tortuoso, como se reforçassem a tensão emocional do eu lírico. Os encadeamentos sonoros criam uma musicalidade ressonante, semelhante ao eco. A repetição encadeada faz com que o poema se assemelhe a uma ladainha.
Há, nesse soneto e na poesia religiosa do poeta baiano, uma nítida consciência do pecado, uma noção de penitência, e a esperança na redenção das culpas. O perdão é buscado nesse soneto por meio da linguagem, organizada de maneira a torná-la bastante persuasiva. Aqui a aparelhagem retórica barroca, uma “tramoia” verbal, atinge o máximo de sua funcionalidade, pelo esplendor encenatório (e encantatório) da gradação anadiplótica dos 14 versos do poema, espécie de via sacra em que literalmente cada passo verbal se articula com o próximo, assim como a última palavra do verso se repete no início do seguinte, até chegar ao cume – semântico e sagrado –, em que o poeta busca a Cristo, pretendendo salvar-se nos Seus braços / abraços luminosos.
Os versos parecem rodas dentadas, dinamizando a máquina verbal do poema: um encaixando-se no outro, um sobre o outro, um saindo e entrando no outro. Aproximação e distanciamento. Jogo incessante entre profano e sagrado; humano e divino (divino abraçado ao humano). Fim e começo de um e de outro. Essa engrenagem repetitiva e correlativa no texto, centrada que é nas anadiploses contínuas, permite também que o poema seja lido de baixo para cima.
Atente para a engenhosidade na arquitetura desse soneto. Logo na primeira estrofe, o poeta confessa-se pecador e expressa a convicção de que será abençoado com a graça divina. Há uma progressão temática que constrói forças de tensão entre pecado e salvação. O poeta baseou-se em trechos bíblicos do livro de Mateus, “Assim não é a vontade de vosso Pai que está nos céus, que pereça um só destes pequeninos”, e de Judas, ”[...] do mesmo modo, haverá maior júbilo no céu por um pecador que fizer penitência, que por quaisquer justos que não têm necessidade de penitência”.
José Wisnik afirma que “Três espaços se encontram aqui: o da religião (o confessionário), o da lei (o julgamento) e o da poesia (o soneto). Trazendo os dois primeiros para o âmbito do terceiro, o poeta está fazendo o que sempre fez: arquitetar a sua salvação através da linguagem (é ela que permite estabelecer o jogo em que se põe o jogador mais forte, Deus, em xeque, para se propor o empate [...]”. (p. 32).
Portanto, após “jogar” com as ideias e ter trazido uma parábola bíblica para fundamentar a sua argumentação, o poeta habilmente “obriga” Deus a mostrar sua clemência, enquanto se desobriga de se manter na rígida lei divina. Atente para o último terceto: “Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, / Cobrai-a; e não queirais, pastor divino, / Perder na vossa ovelha a vossa glória”.
Esse soneto desenvolve uma argumentação paradoxal que apresenta, em primeiro plano, um pecador em ato de confissão. O eu lírico não nega os seus pecados e procura convencer, por meio de um raciocínio engenhoso, que a sua conversão para o bem seria prova da glória e do poder divinos. O ato de confissão indica a presença da dogmática católica contrarreformista.
Buscando a Cristo
A vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos,
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.
A vós, divinos olhos, eclipsados
De tanto sangue e lágrimas abertos
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados.
A vós, pregados pés, por não deixar-me,
A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, p’ra chamar-me.
A vós, lado patente, quero unir-me,
A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme. (p. 316)
Esse é um típico poema religioso de Gregório de Matos. Aqui, encontramos as principais características do Barroco sacro. A busca pelo perdão é projetada no Jesus Cristo pregado na cruz. Na poesia religiosa, o poeta frequentemente se culpa por ter consciência dos seus pecados e expressa, de maneira contundente, o desejo de aproximar-se de Deus. O soneto, no aspecto formal, é bem estruturado, com rimas opostas e versos decassílabos. Metonimicamente, a imagem de Jesus é tomada pelas partes de seu corpo: braços, olhos, pés, cabeça. De maneira bastante engenhosa, Gregório usa de um jogo de opostos: aberto / perdão e fechado / condenação para mostrar a sua intenção de ser perdoado. O poeta fragmenta a imagem de Cristo, que é vista por partes, de baixo para cima (pés, sangue espalhado pelo tronco, cabeça).
A Cristo S. N. crucificado estando o poeta na última hora de sua vida
Meu Deus, que estais pendente em um madeiro,
Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei de morrer
Animoso, constante, firme e inteiro:
Neste lance, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer,
É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um Pai, manso Cordeiro.
Mui grande é vosso amor e o meu delito;
Porém pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor, que é infinito.
Esta razão me obriga a confiar,
Que, por mais que pequei, neste conflito,
Espero em vosso amor de me salvar. (p. 314)
A poesia lírico-religiosa expressa a culpa e o arrependimento. O texto enfoca “a insignificância do homem perante Deus, a consciência nítida do pecado e a busca do perdão”. Mais uma vez, o poeta, depois de muito pecar, volta-se para Jesus em busca da salvação. Ele se volta com a certeza do perdão, pois o amor divino é infinito. Sendo assim, por maior que seja o seu pecado, ele espera a salvação. Há estudiosos que afirmam que Gregório escreveu esse poema perto da morte, já com as mãos trêmulas. Ele se irmana a Cristo, nesse momento derradeiro, quando vê sua “vida anoitecer”, e busca garantir, por meio da misericórdia divina, o perdão de todos os seus pecados.
À perfeição do santo exercício da Via Sacra, feito com boa devoção
Via de perfeição é a sacra via,
Via do céu, caminho da verdade:
Mas ir ao céu com tal publicidade,
Mais que à virtude o boto à hipocrisia.
O ódio é d’alma infame companhia,
A paz deixou-a Deus à cristandade:
Mas arrastar por força uma vontade,
Em vez de perfeição é tirania.
O dar pregões do púlpito é indecência:
“Que de fulano?” “Venha aqui sicrano!”,
Porque o pecado e pecador se veja,
É próprio de um porteiro d’audiência,
E se nisto maldigo, ou mal me engano,
Eu me submeto à Santa Madre Igreja. (p. 329)
Segundo o mesmo Adriano Espínola, esse poema torna patente que a fé em Cristo, sob o influxo contrarreformista, se revela excludente e capital, tanto quanto o poder absolutista monárquico (com a vantagem sobre este de imiscuir-se na intimidade e na alma dos devotos), submetendo a todos. Depois do tom patético e grave do poema anterior, agora o eu lírico adiciona, em contraponto, um tom burlesco, articulado, porém, entre o elogio à via sacra (versos iniciais) e a submissão à Igreja (verso final). O poeta equilibra-se nas pontas do soneto: no meio, balança-se no trapézio religioso-crítico. No plano linguístico, esse efeito é obtido pela progressão temática dos e entre os poemas em foco.
Ora, nesse poema, a persona religiosa retoma anaforicamente (dando continuidade ao recurso estilístico usado no poema anterior) uma série de temas ou dados semânticos do texto antecedente – admitindo-se, aqui, uma sequenciação coesiva entre eles –, propondo conteúdos novos ao leitor. Por exemplo, se a imagem da via sacra se encontra implícita na estrutura anadiplótica e ideológica do soneto anterior, neste, torna-se explícita e definida (“Via de perfeição é a sacra via”). O tema da salvação também se repete, ao considerar, agora, o locutor, que a via sacra é “Via do céu, caminho da verdade”.
Moraliza o poeta nos Ocidentes do Sol a inconstância dos bens do mundo
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.
Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é formosa a Luz, por que não dura?
Como beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância. (p. 336)
Esse é um dos mais emblemáticos sonetos de Gregório e tem um fundamento metafísico, enovelado na angústia de ver que tudo se altera e tudo volta à ignorância (trata-se do pessimismo, típico do Barroco), dado o mistério da marcha fatal e inexorável do tempo. Nesse poema, percebe-se a sensação de instabilidade da fortuna, da fugacidade do tempo e da transitoriedade das coisas. Na sua poesia lírico-filosófica, a consciência da transitoriedade de todas as coisas é bastante latente.
A certeza de que a vida é breve e de que é preciso aproveitar os pequenos momentos.
As causas do lamento do eu lírico são: a certeza de que o tempo tem apenas o poder de degradar e destruir; a convicção de que a realidade humana é constituída de paradoxos e a descoberta de que há uma só certeza para o ser humano: tudo é efêmero e passageiro.
Há nele um jogo simétrico de contrastes, expresso por pares antagônicos como Sol / Lua, dia / noite, luz / sombra, tristeza / alegria, etc., que compõem a figura da antítese. O tema central do soneto revela-se em sua última estrofe e pode ser definido como uma reflexão acerca da transitoriedade dos bens do mundo, cuja última firmeza é a inconstância.
O século XVII no Brasil não seria tão conhecido se não existisse Gregório de Matos. Ele foi o “primeiro jornal” da Colônia. Por isso, a sua obra tem uma importância sociológica incomensurável. É verdade que sua sátira foi duríssima com todos os segmentos da sociedade, mas ele foi muito além da crítica social. Suas produções são as primeiras a conduzir a poesia brasileira a uma certa autonomia (por isso ele é, de fato, considerado o iniciador da literatura brasileira). O poeta foi uma extensão daquilo que estava acontecendo na poesia ibérica, pois importou de seus contemporâneos europeus a poética do desconcerto do mundo, do desengano, por exemplo.
Ele foi a tradução do homem do século XVII. Observe a síntese que Segismundo Spina fez do baiano:
Numa carreira literária descontínua e de difícil reconstituição cronológica, Gregório de Matos militou por todos os setores da poesia: na sátira, na lírica profana e religiosa, na encomiástica, explorando também todos os recantos da versificação. Foi, sem dúvida, o primeiro prelo e o primeiro jornal que circulou na Colônia. Ao que parece, o lirismo do Poeta, sobretudo o amoroso, foi precedido por uma intensa atividade satírica; a certa altura as duas formas correram paralelamente, até que, como ponto de chegada, um período de fé e de reflexão lhe abonançou a impetuosidade venenosa e o gênio picaresco.2
Observe o que James Amado fala do poeta baiano em entrevista a Otávio Dias (Folha de São Paulo):
[...] quase três séculos se passaram sem que Gregório tivesse sua obra reunida porque existiria incompatibilidade entre o poeta e o ‘“establishment’”.
“Há dois tipos de intelectual. O primeiro acaba absorvido pelo ‘establishment’. O outro é a crítica constante do poder”, analisa James [...]. “Entre Matos e o poder, não há acordo. Gregório foi sabotado durante 300 anos porque a cúpula da cultura não o admitia. E ele também não a admitia. Ele não aceitava a cultura de elite, reacionária e contra o povo.”
[...]
James destaca outro aspecto da poesia de Gregório: seu caráter popular e cômico. “Na Bahia, Gregório fez uma viola de uma cabaça e vivia, de engenho em engenho do Recôncavo, como um menestrel, um cancioneiro português do século 13”, diz. “A vida popular foi o estrume, o cadinho de sua poesia, que era aberta, divertida.”
“O regime baiano era rígido, a forca e o pelourinho estavam na praça pública. Então, o povo criou sua maneira de combater a rigidez”, explica. “A cultura baiana resulta da criação de um espaço de liberdade popular. A atualidade de Gregório vem de sua posição crítica. A arte é a crítica da sociedade”. [...] “Gregório é fundamental para a poesia baiana e brasileira”.
“Ele influi em geral”, diz Jorge. “Eu, como todos os autores desta terra, estou sob sua influência. Ele é o poeta baiano por excelência. Eu trato dos mesmos temas, mas não por excelência.”