A crítica literária é unânime em nomear Machado de Assis o maior escritor brasileiro do século XIX, tanto pela versatilidade quanto pelo volume de sua obra. Ao longo de seus 69 anos de vida (1839-1908) foram publicados 4 livros de poesia, 9 romances, 7 coletâneas de contos e 8 peças teatrais. De origem humilde, o autor passou sua infância no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro. Trabalhou, ainda adolescente, como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional. Foi aluno de Manuel Antônio de Almeida, autor de uma das obras mais importantes da transição entre o Romantismo e o Realismo, Memórias de um sargento de milícias. Tendo publicado seu primeiro poema antes de completar 16 anos, Machado de Assis inicia-se, quatro anos mais tarde, na carreira jornalística como revisor e colaborador do Correio Mercantil e do Diário do Rio de Janeiro, periódico este que teve como diretor José de Alencar. Ingressou na carreira burocrática em 1872 como primeiro oficial da Secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, órgão a que esteve vinculado até o fim da vida.
A publicação de Quincas Borba em 1891 confirmou a tendência realista que despontou na obra de Machado de Assis desde Memórias póstumas de Brás Cubas, dez anos antes. A crítica às relações sociais, a reflexão aguda sobre as ambiguidades do comportamento humano, a ironia de um narrador surpreendente e imprevisível são alguns procedimentos que marcaram sua estética e o individualizaram como um escritor inclassificável em termos estilísticos. O crítico José Veríssimo já destacava esse fato no lançamento de Quincas Borba:
O Senhor Machado de Assis não é nem um romântico, nem um naturalista, nem um nacionalista, nem um realista nem entra em nenhuma dessas classificações em ismo ou ista. (VERÍSSIMO, 1892).
Luiz Costa Lima afirma que a “poética machadiana assenta no primado do alegórico" (LIMA, 1981), já que seus romances não apontam para um “sentido único" – daí sua diferença em relação aos realistas dos “romances de tese". Apenas em termos didáticos é comum adotar o critério de divisão dos romances machadianos entre os de tendência romântica – Ressurreição, A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia – e os de caráter realista – Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Quincas Borba, Esaú e Jacó e Memorial de Aires.
Lançado inicialmente no periódico quinzenal A Estação, de junho de 1886 a setembro de 1891, Quincas Borba é um romance em que Machado de Assis apresenta, de maneira contundente e crítica, um ambiente sociopolítico instável que se move pelo interesse barato, pela vaidade banal e corriqueira, e pela teatralidade dos comportamentos. Vinculado tematicamente à narrativa de Brás Cubas, o defunto-autor das Memórias póstumas, o livro retoma o tema do Humanitismo, doutrina criada pelo filósofo Joaquim Borba dos Santos, personagem que se insinua – perigosamente, como se verá adiante – no título do livro.
Quincas Borba foi o romance machadiano que sofreu modificações mais significativas se comparado às suas versões em folhetim e em livro. Segundo Leopoldo Oliveira,
[...] as mudanças e os cortes são de várias naturezas, desde permutas aparentemente ingênuas de vocábulos e expressões até transformações significativas de arquitetura textual (o entrecho, o enredo). (OLIVEIRA apud BARBIERI, 2003, p. 123-124).
Essa remodelação é significativa, se considerarmos seu volume e abrangência. Por um lado, demonstra o esforço e o perfeccionismo de sua concepção; por outro, traduz o caráter inquieto e (auto)crítico de um autor que fez de sua prática literária um veículo de reflexão e questionamento que desconstrói a estrutura do próprio romance.
A obra de Machado de Assis é fundamental para pensarmos na consolidação desse gênero no Brasil. Influenciado pela literatura francesa, o romance já havia sido explorado e desenvolvido por escritores como José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e Manuel Antônio de Almeida. No entanto, é com Machado de Assis que a forma encontra sua expressão mais densa e contundente na literatura brasileira do século XIX. Isso porque em sua obra ressaltam-se questões da realidade brasileira que nenhum de seus predecessores explorou devidamente. Os conflitos e as vaidades políticas, a problemática social e racial, as relações de poder entre o provinciano e o burguês são temas centrais de seus romances. Segundo Roberto Schwarz, Machado de Assis conseguiu conciliar o modelo do romance francês à realidade humana, social, política e econômica de um Brasil que oscilava entre o anseio de modernização e sua condição arcaica:
[...] herdávamos com o romance, mas não só com ele, uma postura e dicção que não assentavam nas circunstâncias locais, e destoavam delas. Machado de Assis iria tirar muito partido deste desajuste, naturalmente cômico [...]: o temário periférico e localista de Alencar virá para o centro do romance machadiano. (SCHWARZ, 1992, p. 87).
De fato, se compararmos o relevo e o tratamento dado a personagens e temas “periféricos" em Senhora, de José de Alencar, e em Quincas Borba, notamos uma diferença de complexidade e intensidade consideráveis. Basta um paralelo entre as personagens Mariquinha (Senhora) e Dona Tonica (Quincas Borba) para percebermos como a questão do (não) casamento traduz de modo distinto a condição precária e humilhada de algumas personagens femininas no século XIX.
A narrativa de Quincas Borba desenvolve-se entre os anos de 1867 e 1872. O cenário principal é o Rio de Janeiro, então capital do Brasil. O protagonista é Rubião, um provinciano professor de Barbacena que abandona a profissão para cuidar do noivo de sua falecida irmã, Quincas Borba, que apresenta um quadro de demência irreversível. O filósofo morre, deixando como herança algumas centenas de contos de réis para Rubião. O professor, então, abandona a cidade natal e parte para o Rio de Janeiro, em busca de uma vida de luxo e prazer. Na viagem de trem de Barbacena para o Rio conhece um casal, Sofia e Cristiano Palha, de quem se torna amigo no convívio da Corte. Seduzido pelos olhos de Sofia, o agora capitalista Rubião estreita os laços de amizade com o casal, desejoso de viver uma aventura amorosa com a esposa de Palha. Este procura tirar proveito da atração de Rubião por Sofia propondo-lhe empréstimos financeiros, pedindo-lhe o aval de fiador e, por fim, propondo a ele sociedade em uma firma de importação e exportação, em que Rubião participa com o investimento e Palha com o trabalho e o talento comercial.
Passam meses e o círculo de amizades de Rubião aumenta. Surge nesse período o Dr. João de Souza Camacho, um “homem de política" que, com vistas a também aproveitar de seu espólio, incute em Rubião o desejo de entrar para a vida pública. Camacho propõe a criação de um jornal, A Atalaia, do qual Rubião se torna investidor e assinante. Além dessas personagens, há um séquito de “comensais", figuras anônimas que almoçam e jantam todos os dias com o capitalista, representantes que são do interesse anônimo, do clientelismo e da venalidade. Nota-se que o livro busca focalizar a precariedade das relações sociais em um Brasil cuja independência política não traduz uma independência cultural. Um fato considerável ao longo do romance é a influência da cultura francesa no comportamento, nos modismos e costumes da Corte brasileira. Rubião sofre por não dominar esse código cultural, a começar por não saber falar francês. Gradativamente, o protagonista vai sofrendo com a carência amorosa e com o paulatino empobrecimento financeiro, resultado de uma vida social perdulária e ociosa, bem como da ação corrupta de sócios e aproveitadores.
Por fim, Rubião enlouquece, assumindo a identidade de Napoleão III, imperador francês. Nada mais significativo para aquele que foi massacrado pela Corte, justamente por ser um “estrangeiro" diante de uma sociedade francófila. Em seu desejo megalomaníaco, Rubião assume a identidade daquele que governa os franceses, sua política, seus costumes e sua cultura.
Nesse breve resumo fica claro o caráter crítico de um romance que traz a periferia para o centro, como disse o crítico Roberto Schwarz. Disposto a subverter a moral nacionalista burguesa – que relevava questões centrais de nossa realidade sociopolítica –, Machado de Assis enfoca um universo carioca misto e incoerente, cujas ideias – que estão “fora do lugar" – invertem a lógica dos valores humanos, fazendo da mediocridade, o sucesso; do casamento, a corrupção; da loucura, um ideário.
No capítulo IV do romance, encontramos o seguinte comentário intratextual do narrador do livro:
Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as Memórias Póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência, que ali aparece, mendigo, herdeiro inopinado, e inventor de uma filosofia. Aqui o tens agora em Barbacena. Logo que chegou, enamorou-se de uma viúva, senhora de condição mediana e parcos meios de vida, mas, tão acanhada que os suspiros do namorado ficavam sem eco. Chamava-se Maria da Piedade. Um irmão dela, que é o presente Rubião, fez todo o possível para casá-los. Piedade resistiu, um pleuris a levou. (ASSIS, 2004, p. 15).
Em um parágrafo que se destaca pelo poder de síntese do narrador, estabelece-se o vínculo entre as narrativas Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba. Essa digressão é fundamental, pois nos situa frente a temas cruciais de ambas as obras, como o cientificismo, a loucura e a morte. Quincas Borba é o elo entre as narrativas. Foi amigo de infância de Brás Cubas e é assim apresentado nos primeiros capítulos de suas memórias:
Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha infância, nunca em toda a minha vida, achei um menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era a flor, e não já da escola, senão de toda a cidade. [...] Era um gosto ver o Quincas Borba fazer-se de imperador nas festas do Espírito Santo. De resto, nos nossos jogos pueris, ele escolhia sempre um papel de rei, ministro, general, uma supremacia, qualquer que fosse. Tinha garbo o traquinas, e gravidade, certa magnificência nas atitudes, nos meneios. (ASSIS, 1992, p. 532).
Nota-se na passagem o apelo imaginativo que já se insinua no caráter de Quincas Borba. Há que se pensar que seu devaneio no fim da vida – quando assumiu a identidade de Santo Agostinho – já se inscreve nos gestos e brincadeiras do inventivo menino. Quando, anos mais tarde, reencontra Quincas Borba como um mendigo, vagando pelo passeio público, Brás Cubas não esconde o pasmo diante da decadência do amigo de infância:
– Sou o Borba, o Quincas Borba.
Recuei espantado. [...] Era o Quincas Borba, o gracioso menino de outro tempo, o meu companheiro de colégio, tão inteligente e agastado. Quincas Borba! Não; impossível; não pode ser. Não podia acabar de crer que essa figura esquálida, essa barba pintada de branco, esse maltrapilho avelhentado, que toda essa ruína fosse o Quincas Borba. Mas era. Os olhos tinham um resto da expressão de outro tempo, e o sorriso não perdera certo ar escarninho, que lhe era peculiar. Entretanto, ele suportava com firmeza o meu espanto. No fim de algum tempo arredei os olhos; se a figura repelia, a comparação acabrunhava. (ASSIS, 1992, p. 573).
Após trocar algumas palavras, as personagens se despedem com um abraço e, para surpresa de Brás Cubas, Quincas Borba rouba-lhe o relógio. Tempos mais tarde, Cubas recebe um relógio novo e uma carta do amigo pedindo-lhe desculpas e propondo um encontro para que pudesse colocá-lo a par de sua doutrina filosófica, o Humanitismo. Novamente, não é sem espanto que Brás Cubas recebe-o em casa.
[...] se a principal característica do homem não são as feições, mas os vestuários, ele não era o Quincas Borba; era um desembargador sem beca, um general sem farda, um negociante sem déficit. [...] Mas eu não quero descrevê-lo. Se falasse, por exemplo, no botão de ouro que trazia ao peito, e na qualidade do couro das botas, iniciaria uma descrição, que omito por brevidade. Contentem-se de saber que as botas eram de verniz. Saibam mais que ele herdara alguns pares de contos de réis de um velho tio de Barbacena. (ASSIS, 1992, p. 609).
É nesse ponto que as narrativas de Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba começam a se entrelaçar. Esses pares de contos de réis serão o motivo da ascendência e da derrocada de Rubião em sua aventura pelo Rio de Janeiro.
A doutrina do Humanitismo exposta pelo então filósofo é, na verdade, um misto de várias correntes filosófico-científicas que povoavam o discurso racionalista do século XIX. Darwinismo, determinismo, positivismo, evolucionismo, tudo se encontra misturado e confuso na explicação sobre o princípio de Humanitas. A seguir estão alguns fragmentos da filosofia de Quincas Borba:
– Humanitas, dizia ele, o princípio das cousas, não é outro senão o mesmo homem repartido por todos os homens. Conta três fases Humanitas: a estática, anterior a toda a criação; a expansiva, começo das cousas; a dispersiva, aparecimento do homem; e contará mais uma, a contrativa, absorção do homem e das cousas. A expansão, iniciando o universo, sugeriu a Humanitas o desejo de o gozar, e daí a dispersão, que não é mais do que a multiplicação personificada da substância original.
[...] verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.
Nota que eu não faço do homem um simples veículo de Humanitas; não, ele é ao mesmo tempo veículo, cocheiro e passageiro; ele é o próprio Humanitas reduzido; daí a necessidade de adorar-se a si próprio. Queres uma prova da superioridade do meu sistema? Contempla a inveja. Não há moralista grego ou turco, cristão ou muçulmano, que não troveje contra o sentimento da inveja. O acordo é universal, desde os campos da Iduméia até o alto da Tijuca. Ora bem; abre mão dos velhos preconceitos, esquece as retóricas rafadas, e estuda a inveja, esse sentimento tão subtil e tão nobre.
[...] o algoz que executa o condenado pode excitar o vão clamor dos poetas; mas substancialmente é Humanitas que corrige em Humanitas uma infração da lei de Humanitas. O mesmo direi do indivíduo que estripa a outro; é uma manifestação da força de Humanitas. Nada obsta (e há exemplos) que ele seja igualmente estripado. Se entendeste bem, facilmente compreenderás que a inveja não é senão uma admiração que luta, e sendo a luta a grande função do gênero humano, todos os sentimentos belicosos são os mais adequados à sua felicidade. Daí vem que a inveja é uma virtude.
– Para entender bem o meu sistema, concluiu ele, importa não esquecer nunca o princípio universal, repartido e resumido em cada homem. Olha: a guerra, que parece uma calamidade, é uma operação conveniente, como se disséssemos o estalar dos dedos de Humanitas; a fome (e ele chupava filosoficamente a asa do frango), a fome é uma prova a que Humanitas submete a própria víscera.
A dor, segundo o Humanitismo, é uma pura ilusão. Quando a criança é ameaçada por um pau, antes mesmo de ter sido espancada, fecha os olhos e treme; essa predisposição é que constitui a base da ilusão humana, herdada e transmitida. Não basta certamente a adoção do sistema para acabar logo com a dor, mas é indispensável, o resto é a natural evolução das coisas. Uma vez que o homem se compenetre bem de que ele é o próprio Humanitas, não tem mais do que remontar o pensamento à substância original para obstar qualquer sensação dolorosa. A evolução, porém, é tão profunda, que mal se lhe podem assinar alguns milhares de anos. (ASSIS, 1992, p. 614-615).
A citação, apesar de longa, é indispensável, se não para a compreensão da doutrina, ao menos para a observação do poder persuasivo do discurso de Quincas Borba a respeito de uma filosofia que é, na verdade, uma contundente paródia de Machado de Assis sobre os modismos científicos que contaminavam o pensamento, os costumes e até mesmo a estética literária de seu tempo. Segundo o crítico Gilberto Pinheiro Passos, a filosofia do Humanitismo “seria um arremedo dos filósofos ligados às tendências mais gerais e marcantes do cientificismo do século XIX". (PASSOS, 2000, p. 97-104). Na colcha de retalhos do Humanitismo cabe um pouco de tudo e, no conjunto, chega a fazer sentido. Porém, se minimamente questionada em seus princípios, a doutrina cai por terra, como irá se observar nos diálogos entre Rubião e Quincas Borba no livro seguinte.
A prova maior da inconsistência desse sistema de pensamento, no entanto, está no fato de as quatrocentas páginas escritas por Quincas Borba terem sido destruídas pelo próprio autor quando, já louco, afirma que,
para o fim de aperfeiçoar o Humanitismo queimara o manuscrito todo e ia recomeçá-lo. A parte dogmática ficava completa, embora não escrita; era a verdadeira religião do futuro. (ASSIS, 1992. p. 675).
Misto de ciência, filosofia e religião, a doutrina do filósofo demente merecerá, portanto, uma sobrevida na narrativa de Quincas Borba. Espécie de palco para a comprovação dessa teoria, a vida de Rubião, protagonista do livro, servirá de exemplo para os princípios fundamentais desse sistema.
Percebe-se, desde o título, que Quincas Borba é um romance que nos oferece pistas falsas. Ao contrário do que parece, o enredo não contará a história do amigo de Brás Cubas, e sim a vida de seu cunhado, Rubião. Quincas Borba será, no livro, um cão a quem o filósofo batizou com seu próprio nome, numa tentativa de demonstrar a abrangência de seu princípio filosófico:
– Desde que Humanitas, segundo a minha doutrina, é o princípio da vida e reside em toda a parte, existe também no cão, e este pode assim receber um nome de gente, seja cristão ou muçulmano... (ASSIS, 2004, p. 16).
Após a morte do filósofo, o cão leva adiante o nome, comprovando assim a lógica do Humanitismo, segundo a qual “nada se perde, tudo é ganho." Há ainda uma interessante alegoria para confirmar as motivações da migração do nome do filósofo para o cão. Numa das explicações mais esclarecedoras a respeito de sua teoria, Quincas Borba afirma que em uma água que ferve, os indivíduos são as bolhas que surgem e desaparecem: “Nunca viste ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas se fazem e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias". (ASSIS, 2004, p. 20). A bolha que se desfaz com a morte do filósofo, se refaz no nome do cachorro. No entanto, ao fim do romance, após a morte de Rubião e do animal, o próprio narrador mantém indefinidas as razões do título:
[...] vendo a morte do cão narrada em capítulo especial, é provável que me perguntes se ele, se o seu defunto homônimo é que dá o título ao livro, e por que antes um que outro, – questão prenhe de questões, que nos levariam longe... (ASSIS, 2004, p. 214).
Esse suspense em torno das motivações do título é a primeira e mais explícita cilada do romance. O texto machadiano exige uma leitura participativa, já que o leitor é constantemente convidado a inferir sentidos, preencher lacunas, colaborar com um narrador que o instiga e provoca ao longo de todo o enredo, como se verá no tópico seguinte deste estudo.
A presença física de Quincas Borba na obra se restringirá aos capítulos iniciais (de IV a XIX), quando se remonta à origem da fortuna que levou Rubião ao Rio de Janeiro. O pequeno flashback é importante não apenas para situar o leitor acerca do início da amizade entre Borba e Rubião, mas também para esclarecer a presença do princípio de Humanitas como um dos elementos fundamentais do entrecho do romance. Em uma tentativa inócua de esclarecer ao cunhado do que se trata sua teoria, Quincas Borba afirma:
– Humanitas é o princípio. Há nas cousas todas certa substância recôndita e idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível, – ou, para usar a linguagem do grande Camões: “Uma verdade que nas cousas anda / Que mora no visível e invisível." Pois essa substância ou verdade, esse princípio indestrutível é que é Humanitas. Assim lhe chamo, porque resume o universo, e o universo é o homem. Vais entendendo? (ASSIS, 2004, p. 612).
É claro que Rubião não entende. Apesar de ser professor e ter regido uma escola de meninos, o protagonista é intelectualmente simplório e ingênuo, incapaz de aprofundar-se e compreender as palavras de Quincas Borba. A explicação que se segue, porém, traz uma alegoria cujo fundamento será de grande importância para o destino de Rubião na obra:
Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas. (ASSIS, 2004, p. 19).
A expressão final, que acabou entrando para o acervo de máximas da cultura popular brasileira, servirá como um refrão, uma senha para os desdobramentos do enredo. Mais tarde, quando recebe a herança, Rubião faz uma leitura rasteira e ingênua da frase, julgando ter sido o vencedor da batalha entre as tribos e decidindo, por isso, avançar para um campo com “batatas em abundância", o Rio de Janeiro. O que ele não sabe é que essa guerra entre tribos famintas se perpetuará nesse outro espaço, onde será derrotado por sua fraqueza e precariedade psicológica.
A herança se afigura, portanto, como um termo de abrangência polissêmica na obra. Quincas Borba permanece no livro não apenas no nome do cachorro. O filósofo perpetua-se também – e fundamentalmente – nas leis que regem o princípio de compensação entre eventos da vida das personagens de uma sociedade focalizada. Do mesmo modo que a desgraça de uma tribo é a felicidade da outra, os pares de contos de réis que motivam a ascensão social de Rubião são também sua decadência; o tema do casamento, motivo de tristeza para Dona Tonica, constitui a felicidade maior para Maria Benedita; o menino Deolindo, de quem Rubião salva a vida no episódio da carruagem, retornará mais tarde zombando de sua loucura; essa mesma loucura que levará Rubião à morte será motivo de alívio e alegria para Cristiano Palha, que poderá se ver livre daquele que ele explorou durante anos. São, portanto, muitos ecos da doutrina do Humanitismo para acreditarmos que Quincas Borba é uma personagem secundária no enredo. Aliás, é o próprio Quincas Borba que afirma:
[...] a imortalidade é o meu lote ou o meu dote, ou como melhor nome haja. Viverei perpetuamente no meu grande livro. Os que, porém, não souberem ler, chamarão Quincas Borba ao cachorro, e... (ASSIS, 2004, p. 16).
O processo narrativo de Quincas Borba estrutura-se a partir da focalização total – onisciente e onipresente – de um narrador que apresenta as cenas e os pensamentos, sem, no entanto, condicionar o leitor a um juízo unívoco e restrito. Nesse processo narrativo reside o grande salto da literatura machadiana em relação a seus contemporâneos. A observação da realidade e a descrição das ações não se limitam a uma ideologia, muito menos buscam doutrinar o leitor na cartilha de um projeto estético. Em Senhora, por exemplo, o narrador de José de Alencar quer fazer valer um modelo de casamento – que se opõe ao interesse e à venalidade da sociedade focalizada – mesmo que para isso comprometa a verossimilhança da obra. Machado de Assis apresenta um universo social tão ou mais interesseiro e venal, sem conduzir explicitamente o juízo e a opinião do leitor, mesmo porque, diante de personagens tão instáveis e ambíguas, não há como optar – como quer o romantismo alencariano – por este ou aquele desfecho, esta ou aquela moral. Aí reside a virtude e o incômodo do texto de Machado de Assis. Diante da impossibilidade de “tomar partido", o leitor frustra uma expectativa – e uma prática de leitura – alimentada amplamente pelas narrativas de tradição romântica. Não há uma saída para as questões existenciais, filosóficas ou morais que o homem enfrenta em seu convívio social. As conclusões a que chegam seus romances demonstram que a experiência humana nem sempre vale a pena, pois há um “legado da miséria" que se transmite a cada geração.
Como foi dito anteriormente, o narrador de Quincas Borba nos oferece pistas que nem sempre se confirmam no desfecho dos acontecimentos. Esse procedimento se funda na crítica a um modelo de leitor que persegue obsessivamente os fatos narrativos, buscando antecipar-se às personagens e ao próprio narrador. O que nem sempre se percebe, através desse modo de leitura, é o papel do narrador, verdadeiro condutor de fatos e suspeitas que, se confirmadas, darão ao leitor essa falsa sensação de controle.
Um exemplo significativo da crítica a esse modo de leitura, em Quincas Borba, é o “episódio do cocheiro", descrito quando Rubião visita o amigo Freitas, que “estava gravemente enfermo". No retorno da visita, Rubião ouve de um cocheiro uma história de adultério que envolve um “rapaz bonito, [...] de bigodes e olhos grandes, muito grandes" e uma mulher “de boa altura, bonito corpo, a cara meia coberta por um véu, coisa papa-fina." (ASSIS, 2004, p. 107-108). Todas as evidências do episódio levam o protagonista a desconfiar de um romance entre Carlos Maria e Sofia e, apesar de a suspeita de Rubião se fundar apenas em coincidências e deduções primárias, o leitor é levado a compartilhar desse estado psicológico da personagem, suspeitando também e, por que não dizer, torcendo pelo adultério. Ao fim do episódio, quando se conclui que tudo não passou de um blefe, o narrador acusa Rubião e o leitor de caluniadores. É o que se lê no capítulo CVI,
[...] ou, mais propriamente, capítulo em que o leitor, desorientado, não pode combinar as tristezas de Sofia com a anedota do cocheiro. E pergunta confuso – Então a entrevista da Rua da Harmonia Sofia, Carlos Maria, esse chocalho de rimas sonoras e delinquentes é tudo calúnia? Calúnia do leitor e do Rubião, não do pobre cocheiro que não proferiu nomes, não chegou sequer a contar uma anedota verdadeira. É o que terias visto, se lesses com pausa. Sim, desgraçado adverte bem que era inverossímil que um homem, indo a uma aventura daquelas, fizesse parar o tílburi diante da casa pactuada. Seria pôr uma testemunha ao crime. Há entre o céu e a terra muitas mais ruas do que sonha a tua filosofia, – ruas transversais, onde o tílburi podia ficar esperando. (ASSIS, 2004, p. 124).
Diante da evidência do engano, o leitor necessariamente reflete sobre as causas que o levaram a seguir a suspeita de Rubião e se depara com o absurdo de um enredo composto por coincidências e desconfianças infundadas ou não comprováveis. Para Ivo Barbieri, nesse episódio,
Machado está expressamente revirando o romance pelo avesso e plantando falsas pistas que induzem o leitor a descaminhos de leitura. Na verdade, o narrador se diverte às custas da ingenuidade de Rubião e da credulidade do leitor, acusando a ambos de calúnia; pois, apressados, tomaram a anedota ao pé da letra ao invés de lê-la na pauta aberta da ficcionalidade. (BARBIERI, 2003, p. 129).
Tal procedimento evidencia a complexidade da narração de Quincas Borba, o que exige do leitor uma atenção redobrada na leitura ou pode torná-lo vítima das estratégias de um narrador crítico, questionador do estatuto de poder de leitores que julgavam dominar os fatos e a sequência do entrecho de um romance.
De fato, se nenhuma leitura é passiva, em Machado de Assis, o leitor é constantemente convidado a preencher lacunas do enredo, seja quando é instigado a adentrar as camadas da ironia do plano narrativo, seja por meio das necessárias inferências que lhe exigem os diálogos – e o silêncio – das personagens. É o que se nota, por exemplo, em cenas como a que Cristiano Palha encontra Camacho na casa de Rubião. Apesar de não se conhecerem, os dois aproveitadores se identificam nas intenções e, por uma troca de olhares, agem conjuntamente para demover Rubião da ideia de retornar a Barbacena:
– [...] eu preciso ir a Minas, teimou Rubião.
– Para quê? perguntou Camacho.
Palha fez-lhe igual pergunta. Para que iria a Minas, salvo se era negócio de pouco tempo. Ou já estava aborrecido da Corte?
– Não, aborrecido não estou; ao contrário...
[...]
Palha e Camacho olharam um para o outro... Oh! esse olhar foi como um bilhete de visita trocado entre as duas consciências. Nenhuma disse o seu segredo, mas viram os nomes no cartão, e cumprimentaram-se. (ASSIS, 2004, p. 81).
Outro procedimento comum ao processo narrativo de Quincas Borba é o uso do discurso indireto livre, por meio do qual o narrador deixa transparecer em sua fala os pensamentos, sentimentos ou impressões das personagens. O efeito desse procedimento intensifica o caráter da onisciência na narração, pois explicita o elo psíquico entre narrador e personagem. Segundo o linguista Mattoso Câmara, o procedimento tem a função de “traduzir estados mentais dos personagens" e “comunicar pensamentos inconsistentes e difusos". (CÂMARA apud BARBIERI, 2003).
É o que se percebe, por exemplo, na cena em que Sofia, convidada por Rubião a fazer um passeio a cavalo – que naquela circunstância era o ensejo para o adultério – vacila entre o aceite e a recusa:
– Está assentado, vamos, disse ele.
– Não.
– Como não?
E repetiu a pergunta, porque Sofia não lhe quis explicar a negativa, aliás, tão óbvia. Obrigada a fazê-lo, ponderou que o marido ficaria com inveja, era capaz de adiar o negócio, só para ir também. Não queria atrapalhar os negócios dele, e podiam esperar oito dias. O olhar de Sofia acompanhava essa explicação, como um clarim acompanharia um padre-nosso. Vontade tinha, oh! se tinha vontade de ir na manhã seguinte, com Rubião, estrada acima, bem posta ao cavalo, não cismando à toa, nem poética, mas valente, fogo na cara, toda deste mundo, galopando, trotando, parando. Lá no alto, desmontaria algum tempo; tudo só, a cidade ao longe e o céu por cima. Encostada ao cavalo, penteando-lhe as crinas com os dedos, ouviria Rubião louvar-lhe a afoiteza e o garbo... Chegou a sentir um beijo na nuca... (ASSIS, 2004, p. 159).
Note-se que o conflito psicológico vivido por Sofia vem à tona ao texto sem que o narrador interrompa o fluxo narrativo. No artigo “Um romance de muitas leituras", Ivo Barbieri ressalta que, em Quincas Borba, o discurso indireto livre é “empregado em momentos de crise moral, psicológica ou existencial de suas criaturas, como meio de criar simbiose entre personagem e narrador [...]". (BARBIERI, 2003, p. 29).
Desse modo, fica evidente o caráter crítico de um narrador que não se contenta em expor os fatos, mas, ao contrário, insere-se na matéria narrada, reflete metalinguisticamente acerca de sua prática, dirige-se ao leitor de forma provocativa e insinua-se com sagacidade e astúcia nos episódios fundamentais do enredo.
A interpretação da alegoria das tribos que lutam pelas batatas de um campo, exposta por Quincas Borba a Rubião, foi um fator fundamental para a mudança de Rubião de Barbacena ao Rio de Janeiro. Como dito anteriormente, assim que nomeado herdeiro universal do cunhado, Rubião julgou, ingenuamente, pertencer à tribo vencedora e partiu rumo ao Rio, campo de “batatas abundantes", onde viveria da fartura e do luxo. No entanto, o conflito entre a vida de capitalista na Corte e a memória de uma origem humilde e anônima na província será um motivo fundamental da desestruturação psicológica que levará Rubião à morte.
Machado de Assis imprimiu em Rubião o perfil do “herói problemático", “uma personagem cuja existência e valores a situam perante problemas insolúveis, dos quais ele não é capaz de adquirir uma consciência clara e rigorosa". (CHAVES, 1974). Ao longo de seus infortúnios de ordem amorosa, econômica, social, moral, etc., fica evidente que a personagem não se dá conta da abrangência dos próprios conflitos, recorrendo em erros, aceitando o engano, insistindo em ostentar uma vida de posses e riqueza, que, porém, não se sustenta em nenhuma tradição familiar nem implica um enriquecimento cultural. Por isso a fragilidade do protagonista. Desprovido dessa tradição, “mal acomodado na própria riqueza" (ASSIS, 2004, p. 74), ele é alvo fácil para uma sociedade interesseira, corrupta, cujos códigos burgueses estão sendo precariamente construídos “à moda francesa". Vale ressaltar que a aventura de Rubião na Corte dura por volta de cinco anos – o enredo se passa entre os anos de 1865 e 1871, fora o período em que cuidou do cunhado Quincas Borba. Nesse tempo ele conseguiu consumir uma fortuna de mais trezentos contos de réis, dinheiro que sustentaria algumas gerações de famílias no século XIX.
Há alguns episódios que traduzem de forma alegórica essa dialética conflituosa entre o passado e o presente de Rubião durante seus anos no Rio de Janeiro. O primeiro deles ocorre em uma cena em que a personagem deixa a casa de Cristiano Palha após ter declarado seu amor para Sofia. Ao chegar ao Largo da Constituição, onde pegaria um tílburi que o levaria para casa, Rubião observa um mendigo, que acordara com o ruído dos cavalos:
O rumor das vozes e dos veículos acordou um mendigo que dormia nos degraus da igreja. O pobre-diabo sentou-se, viu o que era, depois, tornou a deitar-se, mas acordado, de barriga para o ar, com os olhos fitos no céu. O céu fitava-o também, impassível como ele, mas sem as rugas do mendigo, nem os sapatos rotos, nem os andrajos, um céu claro, estrelado, sossegado, olímpico, tal qual presidiu às bodas de Jacó e ao suicídio de Lucrécia. Olhavam-se numa espécie de jogo do siso, com certo ar de majestades rivais e tranquilas, sem arrogância nem baixeza, como se o mendigo dissesse ao céu
– Afinal, não me hás de cair em cima.
E o céu:
– Nem tu me hás de escalar. (ASSIS, 2004, p. 142).
No plano metafórico, pode-se pensar que os dois extremos formados pelo céu e pelo mendigo traduzem as realidades do passado e do presente de Rubião. Se seu presente no Rio de Janeiro é “olímpico", “sossegado", seu passado em Barbacena foi precário, “roto". No entanto, embora haja no diálogo final entre o céu e o mendigo um pacto pela manutenção da “ordem social", na vida de Rubião, a todo momento, o céu ameaça cair em cima desse mendigo que insiste em escalá-lo. Esse é o dilema fundamental da trajetória do protagonista de Quincas Borba. Seu passado – motivo simultâneo de nostalgia e humilhação – ressurge como uma ameaça, denunciando sua precariedade cultural, psicológica e moral. Uma cena que traduz perfeitamente esse conflito pessoal ocorre quando Rubião visita Camacho no escritório. Na saída, Rubião cruza com uma senhora:
Rubião despediu-se. No corredor passou por ele uma senhora alta, vestida de preto, com um arruído de seda e vidrilhos. Indo a descer a escada, ouviu a voz do Camacho, mais alta do que até então – Oh! senhora baronesa!
No primeiro degrau parou. A voz argentina da senhora começou a dizer as primeiras palavras; era uma demanda. Baronesa! E o nosso Rubião ia descendo a custo, de manso, para não parecer que ficara ouvindo. O ar metia-lhe pelo nariz acima um aroma fino e raro, cousa de tontear, o aroma deixado por ela. Baronesa! Chegou à porta da rua; viu parado um coupé; o lacaio, em pé, na calçada, o cocheiro na almofada, olhando; fardados ambos... Que novidade podia haver em tudo isso? Nenhuma. Uma senhora titular cheirosa e rica, talvez demandista para matar o tédio. Mas o caso particular é que ele, Rubião, sem saber por que, e apesar do seu próprio luxo, sentia-se o mesmo antigo professor de Barbacena. (ASSIS, 2004, p. 174).
Assim se traduz o dilema entre o capitalista e o “professor", figuras antagônicas que não se conciliam na vida de Rubião. Esse sentimento de desajuste e inadequação diante do mundo burguês leva o “novo rico" a tentar compensar suas “carências de formação" ostentando a fartura e a generosidade. São muitas as cenas em que o protagonista oferece dinheiro ou outras vantagens aos “amigos" da Corte, em troca da aceitação e do elogio público. Com isso ele faz um jogo conveniente e vantajoso para ambas as partes, mas que, em longo prazo, culminará no seu enfraquecimento e na sua derrota. Seu desfecho prova que, na vida em sociedade, o ingênuo e o frágil não têm vez:
Ali os ricos e remediados têm suas mansões e palacetes onde reúnem os amigos para encontros festivos – saraus, bailes, jantares. Ali, nos halos da nobreza, a burguesia então nascente encena o jogo de representação, simulando posições de importância duvidosa e valores postiços. Canteiro onde a hipocrisia floresce, é ali que Sofia exibe seus encantos, negaceia diante dos pretendentes e faz que vai mas não vai, sempre sob o olhar complacente do marido. Espaço de dubiedade moral, da duplicidade de caráter, ali a face que se mostra está quase sempre em desacordo com a verdade íntima de cada um. Palco de interesses, vaidades, ambições, ali o privado mal desponta e já se esquiva do olhar público, temeroso dos riscos da opinião bisbilhoteira, sedenta de falhas e deslizes que possam comprometer a reputação alheia. Ali a dissimulação é virtude e a sinceridade fraqueza. Nessas águas, os ingênuos sucumbem e os espertos se criam. (BARBIERI, 2003, p. 22).
As personagens da Corte em Quincas Borba exercem papéis que se amoldam às conveniências. Essas máscaras se sobrepõem à medida que as situações se alternam e se transformam. É relevante notar, por exemplo, como os temas da solidariedade, do altruísmo e da compaixão aparecem revestidos de interesse, busca por status e vaidade no cenário carioca de Quincas Borba. Há que se ressaltar episódios como o da “Comissão de Alagoas", quando as senhoras daquela sociedade – lideradas por Sofia – se dispuseram a conseguir verbas e doações para o povo alagoano, vítima de uma epidemia. De forma calculada ou não, a desgraça dos alagoanos “trouxe novas relações à família Palha", resultou no vantajoso casamento de Maria Benedita e confirmou o status de Dona Fernanda. Do mesmo modo, a solidariedade desta última para com Rubião, após seus surtos de loucura, leva Sofia a redobrar seus esforços em também ajudá-lo, pois “era de bom-tom não ser menos generosa". (ASSIS, 2003, p. 182). Torna-se, claro, na atitude de Sofia, o caráter conveniente e calculado da solidariedade em um mundo de aparências, de gestos convenientes, onde impera o “bom-tom".
Rubião é um estrangeiro dentro de seu próprio país. Assim como Maria Benedita e Dona Fernanda, ele vem de fora e busca encontrar um modo de convivência com aquela sociedade. A ação (e o desfecho) dessas três personagens em Quincas Borba é fundamental para entendermos os códigos de sobrevivência social nesse universo pré-burguês do Rio de Janeiro do século XIX.
Dona Fernanda vem do sul do Brasil. Não é exatamente uma personagem provinciana, mas pertence a um espaço distante, historicamente associado à rudeza, à brutalidade e ao pragmatismo de suas personagens, de que são prova os romances que tratam de sua formação. Apesar de seu papel secundário no enredo, Dona Fernanda assume um caráter singular como personagem feminina naquele meio social, até porque ela é um contraponto à volubilidade que impera nos comportamentos dos demais atores naquela sociedade.
O caráter empreendedor de Dona Fernanda busca o lado pragmático das coisas, nada romântico; mas seu pragmatismo não significa necessariamente interesse espúrio ou ambição desenfreada. O pragmatismo de Dona Fernanda é, no entanto, simplificador, e ao mesmo tempo visionário e esclarecedor dos códigos sociais da época. (BARBIERI, 2003, p. 138).
Sua atitude objetiva na união entre Maria Benedita e Carlos Maria, por exemplo, traduz bem a diferença de sua ação diante das convenções românticas que ditavam algumas regras do jogo amoroso naquele contexto. Sua participação é decisiva na união do primo com a jovem provinciana:
E quem é esse bárbaro?
– Isso não digo, respondeu Maria Benedita, levantando-se do banco.
– Pois não diga, acudiu Dona Fernanda, pegando-lhe nos pulsos e fazendo-a sentar nos seus joelhos. A questão principal é casar; – não podendo ser com esse será com outro.
– Não, não caso.
– Só com ele?
– Nem sei se com ele, respondeu Maria Benedita, depois de alguns instantes. Gosto dele, como gosto de Deus, que está no céu.
– Virgem Santíssima! Que blasfêmia! Duas blasfêmias, menina; a primeira é que não se deve amar a ninguém como a Deus, – a segunda é que um marido, ainda sendo mau, sempre é melhor que o melhor dos sonhos. (ASSIS, 2004, p. 201).
O caráter prático, o altruísmo, a solidariedade e compaixão diante do sofrimento alheio fazem de Dona Fernanda uma personagem estranha àquele mundo. Sua presença na obra denuncia, portanto, a instabilidade frívola, a honestidade calculada e o interesse espúrio das demais personagens na obra. Machado de Assis buscou no Sul do país um tipo de comportamento para confrontar a realidade carioca daquele período.
O leitor não deve, no entanto, fechar a personagem em torno de um perfil plano e linear, sob o risco de cair no maniqueísmo rasteiro. Isso porque até mesmo os gestos – a princípio desprovidos de intenção – podem esconder a lógica do jogo de trocas e busca de aceitação. Teodoro Koracakis cita um artigo de John Kinnear em que o crítico inglês afirma:
A caridade de Dona Fernanda é limitada ao extremo; ela é a única beneficiária. A despeito de suas declaradas boas intenções, é limitada por suas ações, pelo meio social, pelos seus preconceitos, pela necessidade de satisfazer as exigências de seu próprio caráter mais do que pela vontade de ajudar os outros. (KORACAKIS apud BARBIERI, 2003, p. 140).
Sem querer escapar da polêmica, há que se pensar no meio termo. A personagem foi construída exatamente para colocar em discussão a legitimidade dos gestos daquela sociedade. No entanto, ela é também um ser social e, portanto, sujeita ao condicionamento das regras que regem o mundo à sua volta.
Maria Benedita é tão provinciana quanto Rubião. No entanto, por ser mulher – e não ser rica –, teve que se amoldar aos costumes e imposições da Corte. Seu dilema é convencer a mãe, Dona Maria Augusta, protótipo do atraso provinciano, avessa às normas da “educação de sala" a que a filha dispõe-se a se submeter:
No dia seguinte, Maria Benedita declarou à prima que estava pronta a aprender piano e francês, rabeca e até russo, se quisesse. A dificuldade era vencer a mãe. Esta, quando soube da resolução da filha, pôs as mãos na cabeça. Que francês? que piano? Bradou que não, ou então que deixasse de ser sua filha; podia ficar, tocar, cantar, falar cabinda ou a língua do diabo que os levasse a todos. Palha é que a persuadiu finalmente; disse-lhe que, por mais supérfluas que lhe parecessem aquelas prendas, eram o mínimo dos adornos de uma educação de sala.
– Mas eu criei minha filha na roça e para a roça, interrompeu a tia.
– Para a roça? Quem sabe lá para que cria os filhos? Meu pai destinava-me a padre; é por isso que arranho algum latim. A senhora não há de viver sempre; os seus negócios andam atrapalhados. Pode acontecer que Maria Benedita fique ao desamparo... Ao desamparo, não digo; enquanto vivermos somos todos uma só pessoa. Mas não é melhor prevenir? Podia ser até que, se lhe faltássemos todos, ela vivesse à larga, só com ensinar francês e piano. Basta que os saiba para estar em condições melhores. É bonita, como a senhora foi no seu tempo; e possui raras qualidades morais. Pode achar marido rico. (ASSIS, 2004, p. 217).
A questão que se coloca é fundamental para analisarmos um conflito brasileiro – e de muitos outros países colonizados – que se perpetua através dos tempos: o anseio de modernidade – que se traduz em imitar o modelo europeu –, e a evidência do atraso e do provincianismo. A mentalidade de Dona Augusta representa claramente essa tradição arraigada, rasteira, que não aceita sair de dentro de si mesma e experimentar a novidade e a diversidade do mundo moderno. Por outro lado, nota-se que as convenções sociais ditadas pela Corte são apenas normas de comportamento que não se fundam na tradição da cultura estrangeira, e sim no jogo hipócrita de aparências e modismos.
Nas palavras de Cristiano Palha encontram-se as normas de polidez e educação que deviam ter as mulheres de seu tempo. O código francês dita as regras “dos adornos de uma educação de sala" tão necessários em um século em que a mulher só poderia ascender social e culturalmente por meio do casamento. O que se discute numa cena como essa é a condição feminina em um mundo de impostura e hipocrisia. A questão fundamental não era necessariamente estudar e compreender a cultura estrangeira, mas entender minimamente costumes e regras para transparecer o domínio das convenções:
Então Sofia inventava passeios, à toa, para fazê-la descansar. Ora um bairro, ora outro. Em certas ruas, Maria Benedita não perdia tempo, lia as tabuletas francesas, e perguntava pelos substantivos novos que a prima, algumas vezes, não sabia dizer o que eram, tão estritamente adequado era o seu vocabulário às coisas do vestido, da sala e do galanteio. (ASSIS, 2004, p. 179).
Espaço da hipocrisia e da mediocridade, o Rio de Janeiro de Quincas Borba cobra a senha social para aqueles que querem sobreviver em seu meio. Dona Fernanda e Maria Benedita compõem dois tipos distintos de adaptação àquela realidade. Enquanto a primeira se excede na dedicação e na generosidade para fazer valer seu estilo e sua identidade regional, a segunda busca preencher as lacunas de sua criação provinciana para assimilar o estilo da Corte. Duas faces de uma mesma vontade de se adaptar e sobreviver naquele mundo.
É justamente esse código de sobrevivência que Rubião não consegue construir durante os anos em que viveu no Rio de Janeiro. Seu aval é unicamente o dinheiro que ele ostenta para manter-se vivo. À medida que seu conflito interno se intensifica – e, concomitantemente, sua fortuna vai sendo dilapidada – Rubião passa a achar refúgio na loucura, única forma que encontra de se impor àquele meio. Não gratuitamente, Rubião encarna a figura do imperador francês Napoleão III, alter ego que supre a precariedade de sua condição provinciana.