Romanceiro da Inconfidência

Um estudo da obra de Cecília Meireles

Por Duda Salabert


Os retratos da escritora


E agora fecho grandes portas
sobre a canção que chegou tarde.
E sofro sem saber de que Arte
se ocupam as pessoas mortas.1

Cecília Meireles nasceu em 1901, no Rio de Janeiro, onde também veio a falecer no ano de 1964. Desde nova, a escritora foi cercada por trágicos acontecimentos familiares: três meses antes de seu nascimento, morre seu pai, e, três anos depois, sua mãe. Por consequência, teve de ser criada pela avó, que veio a falecer pouco tempo depois. Na vida adulta, sofreu também com o suicídio de seu primeiro marido. Essas duras perdas, somadas a outras, tiveram decisivo valor na formação humana da autora, em sua visão de mundo e, inclusive, na construção de seus versos. A própria Cecília salienta isso em entrevista concedida à revista Manchete:

Em seus livros, Cecília Meireles elaborou uma poesia que se debruçou sobre a precariedade da existência humana, sobre a brevidade da vida física e sobre a inexorabilidade do tempo. Suas obras, contudo, não carregam uma visão pessimista da vida nem um negativismo exacerbado; a autora, ao contrário, retrata em seus versos as perdas e a morte como um processo natural, inerente a todos os seres. A morte, a espiritualidade e a esfera metafísica são apresentadas com uma linguagem rica em musicalidade e com forte apelo sensorial. Tais características presentes em seus poemas, assim como de outros escritores da segunda fase do Modernismo (1930-1945), fizeram com que a crítica caracterizasse tais tendências como neossimbolistas. Essa dicção existencialista e neossimbolista atravessou toda produção poética ceciliana, a qual teve início em Espectros (1919) e ganhou destaque nas obras Viagem (1939), Vaga música (1942), Mar absoluto e outros poemas (1945), Retrato natural (1949), entre outros livros publicados.

Em Romanceiro da Inconfidência, de 1953, Cecília Meireles não abandona seu estilo: o uso de símbolos, o emprego de sinestesias, a espiritualidade, o caráter misterioso e as esferas imaterial e transcendental perpassam todos os poemas do livro. No entanto, é possível perceber na obra não apenas a Cecília neossimbolista, mas também a Cecília jornalista, a Cecília pesquisadora, a Cecília professora, a Cecília cidadã, todas defensoras de ideais libertários. A intensa atividade profissional e intelectual exercida pela escritora em sua vida ecoa nos versos de seu romanceiro, livro que, ao recriar os episódios que marcaram a História do Período Colonial brasileiro, deixa transparecer as múltiplas facetas da autora.

1MEIRELES, 1998, p. 70.
2MEIRELES, 1977, p. 58-59

Vozes veladas, veludosas vozes


O pássaro é livre
na prisão do ar.
O espírito é livre
na prisão do corpo.
Mas livre, bem livre,
é mesmo estar morto.3

O Romanceiro da Inconfidência começou a ser escrito na década de 1940, quando Cecília Meireles, na posição de jornalista e pesquisadora, visitou Ouro Preto com o objetivo de documentar eventos da Semana Santa. Nessa viagem, a escritora, encantada com a riqueza histórica que emana do lugar, questionou-se por que nenhum dos escritores do Período Colonial escreveu sobre a conjuração que ocorrera na cidade. Ciente de que o silêncio dos escritores da época muito se deveu às perseguições políticas exercidas pela Coroa, a poetisa confessou que, nessa viagem, foi envolvida pela “irreprimível voz dos fantasmas”. A partir de então, ela dedicou-se a reescrever, de maneira poética, as cenas que marcaram a Conjuração Mineira e a dar voz lírica às personagens que dela participaram.

Após dez anos de inúmeras pesquisas, sendo os quatro últimos de dedicação exclusiva, a obra é então publicada, no ano de 1953, trazendo o canto poético de muitos “fantasmas” que o poder totalitário instaurado na Colônia tentou silenciar. Desse modo, ecoam, a cada página, vozes de inúmeras personagens alijados pela História tida como oficial. Ouvem-se falas e questionamentos de homens, mulheres, negros, brancos, velhos e jovens que ocupam as mais diversas posições, sejam elas as de delatores anônimos, ciganos, sapateiros, tropeiros, etc. Essas vozes somam-se às de personagens mais conhecidas na História colonial brasileira, tais como a da negra Chica da Silva e a de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, figura mais emblemática da Conjuração e uma das principais personagens do Romanceiro.

Para reconstruir a atmosfera que pairou sobre Vila Rica (atual Ouro Preto) no século XVIII, a obra transita entre recriação factual e elaboração poética, arquitetando uma ponte entre o real e o imaginário. É nessa ponte que transitam os “fantasmas” anteriormente citados. Transitam também os “fantasmas literários de Ouro Preto”: poetas árcades envolvidos na Conjuração, os quais, ao flertar com a liberdade, tiveram também que enfrentar a morte. Suas sombras, no entanto, como as dos outros envolvidos no movimento, manifestam-se nas palavras do Romanceiro, que, fundindo poesia e história, recria o cenário político-cultural do Brasil Colônia.

3ANDRADE, 2002, p. 70.

A palavra “inconfidente”


O passado traz consigo um índice misterioso que o impele à redenção.
Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes?
Não existe, na voz que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? [...]
Se é assim, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa.4

O título da obra já convida o leitor a viajar pela História nacional e estacionar na segunda metade do século XVIII, quando ocorreu a chamada Conjuração Mineira, movimento de protesto organizado por um grupo de intelectuais que questionavam as cobranças abusivas da Coroa portuguesa na então capitania de Minas Gerais. O movimento, liderado pelo alferes Joaquim José da Silva Xavier, foi abortado pela Coroa em 1789, quando um dos participantes, Joaquim Silvério dos Reis, para obter perdão de suas dívidas, traiu o movimento, denunciando-o ao governo português. Tal denúncia teve como consequência inicial os “Autos da devassa”, processo judicial movido pela Coroa contra os participantes do movimento rebelde.

Após três anos de julgamento, os rebeldes receberam penas severas: para a maioria, prisão e confisco dos bens; para outros, a pena de morte, depois transmutada em degredo na África; e para Joaquim José da Silva Xavier, especificamente, forca em praça pública e esquartejamento do corpo.

Por muitos anos, esses episódios que compuseram a Conjuração Mineira foram assunto silenciado na História nacional. No entanto, suas sombras sempre se mantiveram vivas no imaginário popular. Se, de um lado, a História oficial insistia em não fazer referências à Conjura, do outro, o acontecimento permanecia na memória coletiva como castigo exemplar para aqueles que se rebelam contra o poder instaurado. É interessante observar também que a Conjuração foi, por um longo tempo na historiografia nacional, pejorativamente denominada “Inconfidência Mineira”. Os participantes, nesse viés, eram considerados inconfidentes, ou seja: traidores, não confiáveis. Aos poucos, no entanto, à medida que novos estudos surgiam sobre o assunto, a palavra “conjuração” (“conspiração contra autoridade estabelecida”) foi substituindo o termo “inconfidência”, e o movimento, de pejorativo, começa a receber contornos positivos. Mesmo que estivesse distante de propor profundas mudanças sociais, a Conjuração merece ser lembrada como um fato importante na História local, pois foi o primeiro movimento de relevância, em solos nacionais, com o objetivo claro de romper politicamente com Portugal e buscar a independência brasileira.

Esses episódios importantes da História nacional funcionaram como substrato poético para Cecília Meireles compor seu Romanceiro. Na obra, a escritora carioca lê tais acontecimentos empregando uma lente lírico-filosófica e os narra poeticamente, destacando os sentimentos, os conflitos, as relações de poder, os dilemas e as sensações que formataram a revolta. Para a poetisa, a preocupação maior não é focalizar e descrever os fatos históricos que envolveram a Conjura, mas sim o que está à margem e além dos fatos. Desse modo, os elementos históricos vão assumir roupagem simbólica e traços universalizantes: a busca pelo ouro representa a ambição, a cobiça; a conjuração metaforiza a esperança e o fracasso; as prisões encarnam o medo; o degredo é símbolo da saudade. Vila Rica, nessa perspectiva, não é apenas uma antiga cidade colonial, mas também um espaço simbólico – palco de sentimentos, paixões e sonhos humanos. Sobre o diálogo entre História e Literatura, entre factual e simbólico, entre local e global, Cecília Meireles declarou:

A autora trouxe para sua narrativa a dimensão sensível e inefável que perpassaram tal época. As nuanças do passado, imensuráveis em um discurso factual, são sugeridas pela narrativa poético-ficcional. Os sentimentos não registrados pela História oficial – denotativa e referencial – são encarnados no verbo poético ceciliano. O Romanceiro, então, apresenta-se como um grande “inconfidente”, que, ao casar Literatura e História, revela tanto os mistérios que rodearam os acontecimentos de um importante momento histórico brasileiro, como também os sentimentos e utopias que sempre impulsionaram e continuam movendo a condição humana.

4BENJAMIN, 1987, p. 223.
5MEIRELES, 2011, p. 24.

Carlos Oswald

A estrutura da obra: caleidoscópio histórico-literário


O Romanceiro da Inconfidência é uma narrativa em versos que recria os episódios da Conjuração Mineira. Sua organização se dá em 85 romances, cinco falas e quatro cenários. O termo “romanceiro” significa “coleção, conjunto, coletânea de romances”. Sobre tal termo e a estrutura de romances, a pesquisadora Norma Goldstein explica:

A escolha de Cecília por uma forma literária medieval – verso narrativo de caráter popular – está adequada ao seu objetivo de retratar a popularidade de Tiradentes. Ainda sobre esse resgate à tradição medievalesca, a poetisa comentou:

A obra, no ponto de vista temático, abarca o surto do ouro e a Conjuração, bem como sua delação e punição. Há ainda inúmeras alusões ao Arcadismo e a histórias lendárias da antiga Vila Rica. Todos esses núcleos temáticos surgem permeados pela concepção de que a vida é fugaz e de que o tempo é fugidio. Além disso, os romances são marcados pelo sofrimento / violência, temática desenvolvida em várias partes da obra, a qual é ordenada da seguinte maneira:


• Fala Inicial
• Cenário
• Romances I ao XIX
• Cenário
• Fala à Antiga Vila Rica
• Romances XX ao XLVII
• Fala aos Pusilânimes
• Romances XLVIII a LXIV
• Cenário
• Romances LXV a LXXI
• Imaginária Serenata
• Romances LXXII a LXXIV
• Fala à Comarca do Rio das Mortes
• Romance LXXV a LXXX
• Retrato de Marília em Antônio Dias
• Cenário
• Romances LXXXI a LXXXV
• Fala aos Inconfidentes Mortos

De maneira simplificada, é possível afirmar que os romances flertam com o gênero narrativo, pois buscam reconstruir alguns fatos que marcaram o Período Colonial brasileiro. Já os cenários recriam poeticamente a atmosfera dos locais em que os fatos são encenados. As falas, por sua vez, desnudam o ponto de vista do sujeito lírico envolvido no acontecimento narrado. No entanto, é importante destacar que o romanceiro de Cecília possui uma estrutura complexa, na qual, de maneira híbrida, os versos mesclam narrativa, poesia e cenas dramáticas.

Ainda sobre essa complexidade composicional do Romanceiro, Goldstein acrescenta:

O que se pode verificar é que a obra, numa estrutura complexa, mistura os gêneros lírico, épico e dramático, colocando em diálogo tradição e modernidade, Literatura e História, memória e imaginário. Esses recursos somam-se para reconstruir artisticamente diferentes cenários (Vila Rica, Rio de Janeiro e locais onde os conjurados foram exilados), diferentes personalidades e diferentes situações que formataram a Conjuração Mineira.

6GOLDSTEIN, 1998, p. 40.
7MEIRELES, 2011, p. 25.
8GOLDSTEIN, 1998, p. 40.

As falas


No Romanceiro, há cinco falas, as quais se somam às demais vozes dos romances para reconstruir o passado colonial brasileiro. Percebe-se, então, que Cecília Meireles, nesta obra, vale-se da polifonia, ou seja: a narrativa poética é arquitetada a partir de uma teia de vozes que emanam seus sentimentos, desejos e visões políticas.

Desde a “Fala Inicial”, o Romanceiro da Inconfidência já se mostra subjetivo, metafórico e intimista. Isso revela que, embora a obra tenha sido construída sobre o solo da matéria histórica, a objetividade, a imparcialidade e a neutralidade exigidas em um relato historiográfico não têm espaço no livro. O eu lírico, nessa fala, espécie de prólogo do Romanceiro, imerso numa atmosfera de mistério, apresenta uma síntese, de caráter reflexivo, do que será abordado no palco da obra:


Não posso mover meus passos
por esse atroz labirinto
de esquecimento e cegueira
em que amores e ódios vão:
– pois sinto bater os sinos,
percebo o roçar das rezas,
vejo o arrepio da morte,
à voz da condenação;
– avisto a negra masmorra
e a sombra do carcereiro
que transita sobre angústias,
com chaves no coração;
– descubro as altas madeiras
do excessivo cadafalso
e, por muros e janelas,
o pasmo da multidão.
Batem patas de cavalo.
Suam soldados imóveis.
Na frente dos oratórios,
que vale mais a oração?
Vale a voz do Brigadeiro
sobre o povo e sobre a tropa,
louvando a augusta Rainha,
– já louca e fora do trono –
na sua proclamação.
9

O sujeito lírico sente-se perplexo diante do cenário mineiro. Tudo o que vê o remete aos fatos ocorridos nesse espaço.

Com sua sensibilidade, capta, sente os “amores e ódios” que nesse “atroz labirinto” coexistiram. Ao transitar pelo espaço, percebe o bater dos sinos, o “roçar das rezas”, imagens que aludem à condenação, à morte, ao enforcamento de Tiradentes.

Ao continuar sua fala, questiona a maneira como os fatos ocorreram e critica a injustiça ali exercida:


[...]
Quem ordena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?
Na mesma cova do tempo
cai o castigo e o perdão.
Morre a tinta das sentenças
e o sangue dos enforcados...
– liras, espadas e cruzes
pura cinza agora são.
Na mesma cova, as palavras,
o secreto pensamento,
as coroas e os machados,
mentira e verdade estão.
10

O poder da ação do tempo é metaforizado na “cova do tempo”, local onde castigo e perdão caem juntos. O tempo, simbolicamente, devora “liras, espadas e cruzes” – imagens simbólicas que afiguram, respectivamente, poetas árcades, militares e religiosos injustiçados nesse cenário. O eu lírico, com sua visão do alto, busca ao longe respostas, daí as interrogações que atravessam sua fala.

Magoado, lamenta-se pela ignorância e pela injustiça que no passado ali se instauraram:


Não choraremos o que houve,
nem os que chorar queremos:
contra rocas de ignorância
rebenta nossa aflição.
11

Sua fala termina, destacando o caráter falível, precário e limitado dos seres humanos, que não conseguem barrar a ação do tempo, limpar as injustiças do mundo nem decifrar os mistérios da vida e da morte:


Choramos esse mistério,
esse esquema sobre-humano,
a força, o jogo, o acidente
da indizível conjunção
que ordena vidas e mundos
em polos inexoráveis
de ruína e de exaltação.
Ó silenciosas vertentes
por onde se precipitam
inexplicáveis torrentes,
por eterna escuridão!
12

Construída em redondilha maior – versos heptassílabos –, a “Fala inicial”, além de apresentar a dicção reflexiva e intimista que permeará o Romanceiro, encena também, por meio de uma linguagem metafórica e antitética, dualidades intrínsecas à condição humana: culpa x inocência, mentira x verdade, ruína x exaltação, castigo x perdão, amor x ódio. A voz do sujeito lírico, marcada no texto pela grafia em itálico, é a mesma que se reproduzirá nos cenários e em alguns outros poemas da obra, nos quais a voz aparece assinalada da mesma maneira.

Aurélio de Figueiredo / Domínio Público

Na “Fala à Antiga Vila Rica”, a voz poética dirige suas palavras ao cenário que foi palco da Conjuração:


[...]
Ou fala? E apenas
o nosso ouvido
na terra surda
que os homens pisam,
já nada entende
do vosso longo,
triste discurso,
– amáveis sombras
que aqui jogastes
vosso destino,
na obrigatória,
total aposta
que às vezes fazem
secretas vidas,
por sobre-humanas
fatalidades?
13

Com uma linguagem metafórica e sinestésica, os versos personificam a antiga cidade de Vila Rica e questionam sua imobilidade perante a violência e a injustiça aplicadas.

A “Fala aos Pusilânimes” é agressiva, e nela predominam os versos alexandrinos – composto por 12 sílabas poéticas. A voz lírica condena os covardes e traidores que denunciaram os conjurados:


Em céus eternos palpita o luto
por tudo quanto desperdiçastes...
“Os pusilânimes!” – suspira
Deus. E vós, no fundo da morte,
sabeis que sois – os pusilânimes.
E fogo nenhum vos extingue,
para sempre vos recordardes!

Ó vós, que não sabeis do Inferno,
olhai, vinde vê-lo, o seu nome
é só – PUSILANIMIDADE.
14

Tais denúncias vitimaram inúmeras pessoas, inclusive os próprios traidores, uma vez que, mesmo após a morte, eles serão lembrados como pusilânimes, covardes. De forma cromática, a fala associa a imagem dos pusilânimes, por meio do luto, à cor preta, a qual, de maneira simbólica e metafórica, representa a covardia, a culpa e a traição.

Assim como as falas anteriores, a “Fala à Comarca do Rio das Mortes”, também de caráter reflexivo e questionador, relata liricamente um cenário caótico, trágico e em ruínas:


Onde, o gado que pascia
e onde, os campos e onde, as searas?
Onde a maçã reluzente,
ao claro sol que a dourava?
Onde, as crespas águas finas,
cheias de antigas palavras?
Onde, o trigo? Onde, o centeio,
na planície devastada?
Onde, o girassol redondo
que nas cercas se inclinava?
Mesmo as pedras das montanhas
parecem podres e gastas.
As casas estão caindo,
muito tristes, abraçadas.
As cores estão chorando
suas paredes tão fracas
e as portas sem dobradiças,
e as janelas sem vidraças.
15

A voz poética mergulha nos sentimentos de Bárbara Heliodora, esposa de Alvarenga Peixoto, poeta árcade que foi obrigado a exilar-se em Angola. O casal, antes da Conjuração, morava na Comarca do Rio das Mortes, hoje São João del-Rei, cujo cenário, assim como o de Vila Rica, é de tristeza, abandono e decadência na voz do eu lírico.

A “Fala aos Inconfidentes Mortos”, a última no romanceiro, arquitetada em cinco estrofes de versos tetrassílabos, apresenta-se como uma homenagem às vítimas da conjuração:


E aqui ficamos
todos contritos,
a ouvir na névoa
o desconforme,
submerso curso
dessa torrente
do purgatório...
Quais os que tombam,
em crime exaustos,
quais os que sobem,
purificados?
16

Com linguagem sinestésica, a voz lírica reflete sobre os poetas e as personagens que fizeram parte do movimento rebelde. Nessa reflexão, é retomada a imagem, desenvolvida nas outras falas, do poder implacável do tempo.

9MEIRELES, 2011, p. 39.
10MEIRELES, 2011, p. 39-40.
11MEIRELES, 2011, p. 40.
12MEIRELES, 2011, p. 40.
13MEIRELES, 2011, p. 80.
14MEIRELES, 2011, p. 135.
15MEIRELES, 2011, p. 188.
16MEIRELES, 2011, p. 211.

Os cenários


Nos cenários, são construídos retratos poéticos dos espaços geográfico, arquitetônico e sociocultural dos locais em que se desenrolaram os episódios narrados no Romanceiro. Neles a voz poética, em descrições subjetivas e líricas, externa seus sentimentos, reflexões e opiniões sobre os espaços, fazendo ainda um contraste entre os tempos da enunciação e do enunciado.

No primeiro cenário, o eu lírico descreve, em tercetos, a paisagem e os ambientes que foram palco da Conjuração:


[...]
O passado não abre a sua porta
e não pode entender a nossa pena.
Mas, nos campos sem fim que o sonho corta,

vejo uma forma no ar subir serena:
vaga forma, do tempo desprendida.
É a mão do Alferes, que de longe acena.

Eloquência da simples despedida:
“Adeus! que trabalhar vou para todos!...”

(Esse adeus estremece a minha vida.)
17

Por meio de descrições, retoma-se o passado de Vila Rica e descortinam-se as musas e os poetas que por ali um dia transitaram. Nesse quadro poético, há um cenário bucólico, calmo, idílico. No fim, aparece a figura de Tiradentes, indo trabalhar pela liberdade de todos.

Domínio Público

O segundo cenário, organizado em seis dísticos de versos decassílabos, é atravessado por uma névoa densa que cobre o espaço citadino:


E o lugar da esperança. E a fonte. E a sombra.
E a voz que já não fala, e se prolonga.

E eis a névoa que chega, envolve as ruas,
move a ilusão de tempos e figuras.

– A névoa que se adensa e vai formando
nublados reinos de saudade e pranto.
18

Essa névoa assume valor simbólico e pode metaforizar a atmosfera funesta, tensa e angustiante que configurou o contexto da Conjuração.

No terceiro cenário, a lente poética registra o jardim que pertenceu à maior voz do Arcadismo brasileiro, Tomás Antônio Gonzaga:


No jardim que foi de Gonzaga,
a pedra é triste, a flor é débil,
há na luz uma cor amarga.
Os espinhos selvagens crescem,
única sorte destas árvores
destituídas de primavera,
secas, na seca terra ingrata,
que é uma cinza de inúteis ervas
solta sob os pés de quem passa.
19

Os versos sugerem que o ambiente, outrora belo, agora estava em ruína por causa do infortúnio que acometeu o poeta: o exílio para terras distantes, fato que o separou de sua amada, Maria Doroteia. A terra tornou-se estéril após a separação, como sugerem os versos.

O eu lírico, ainda, encerra esse cenário com uma metáfora do amor do casal:


Apenas um cacho de rosas,
que nascem pálidas e murchas,
habita um desvão solitário,
quer falar, porque veio a custo
de antigas lágrimas guardadas
num chão sem ouro nem diamantes...
Mas inclina-se à tarde, ao vento,
e como um rosto humano morre,
sem dizer nada, inerme e triste,
ao peso do seu pensamento,
– como acontece entre os amantes.
20

A imagem de “um cacho de rosas, que nascem pálidas e murchas” representa o casal, que não chegou à plenitude devido à Conjuração.

O quarto e último cenário apresentado no Romanceiro retrata a Rainha Dona Maria I, que assinou as sentenças de morte e o degredo dos rebeldes:


(Sentada estava a Rainha,
sentada em sua loucura.
Que sombras iam passando,
naquela memória escura?
Vagas espumas incertas
sobre afogada amargura...)
Andaram por estas casas
tristes réus que já morreram...
Longas lágrimas banharam
as pedras desta Cadeia.
Uma ferrugem de insônias
desgastava as fortalezas.
21

Os versos sugerem o estado de loucura, metaforizado na imagem de uma “sombra”, no qual se encontrava a soberana portuguesa.

A voz textual termina suas descrições, em tom reflexivo e melancólico, desnudando a decadência dos tempos áureos:


Naus de nomes venturosos,
navegando entre estas penhas,
buscaram terras de exílios,
com febres nas águas densas.
Homens que dentro levavam,
iam para eterna ausência.

Por detrás daqueles morros,
por essas lavras imensas,
ouro e diamantes houvera...
– e agora só decadência,
e florestas de suspiros,
e campinas de tristeza...

(Sentada estava a Rainha,
sentada, a olhar a cidade.
Quando fora, tudo aquilo?
Em que lugar? Em que idade?
Vassalos, mas de que reino?
Reino de que Majestade?)
22

Ao retratar esse cenário sombrio, fecha-se o poema com a preocupação em relação ao destino dos rebeldes.

17MEIRELES, 2011, p. 44.
18MEIRELES, 2011, p. 79.
19MEIRELES, 2011, p. 165.
20MEIRELES, 2011, p. 166.
21MEIRELES, 2011, p. 201.
22MEIRELES, 2011, p. 202.

São as facetas do homem: Tiradentes, Alferes e Joaquim


Tiradentes não se acabou e nem se acaba. Prossegue em nós, latejando.
Pelos séculos continuará clamando na carne dos netos de nossos netos,
cobrando de cada qual sua dignidade, seu amor à liberdade.23

Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi tropeiro, dentista, minerador, militar, ativista político e um dos participantes mais ativos da Conjuração Mineira. Após ser delatado por Joaquim Silvério dos Reis, Tiradentes foi preso e, três anos depois, enforcado no dia 21 de abril de 1792, na cidade do Rio de Janeiro, ao som de discursos de exaltação à Rainha de Portugal. Seu corpo foi esquartejado, e sua cabeça, exibida na praça principal da cidade de Vila Rica.

Evidentemente, a data da morte de Tiradentes foi considerada por muito tempo, na História nacional, como o dia em que um simples rebelde foi morto. Todavia, após a independência do Brasil e, principalmente, após a proclamação da República (contexto em que o país procurava construir sua identidade nacional), a figura de Tiradentes começou a ser resgatada e glorificada, transformando-o em um dos grandes heróis nacionais que lutaram pela liberdade. Desde então, o governo brasileiro adotou algumas medidas que contribuíram para que a personagem permanecesse simbolicamente viva na memória nacional. Entre elas, destacam-se:


• em 1890, o dia 21 de abril torna-se feriado nacional;
• em 1938, o governo de Getúlio Vargas cria o Museu da Inconfidência, em Ouro Preto;
• em 1946, as polícias civis e militares começam a usar o feriado de Tiradentes para comemorar seu próprio dia;
• em 1952, Juscelino Kubitschek cria a Medalha da Inconfidência, a mais alta condecoração concedida pelo governo de Minas Gerais;
• em 1965, Tiradentes torna-se patrono cívico da nação brasileira.

José Wasth Rodrigues

Ainda sobre a escolha de Tiradentes como herói nacional, o historiador Kenneth Maxwell, no seu livro A Devassa da Devassa, afirma:

Dos 85 Romances que compõem o Romanceiro da Inconfidência, 21 retratam Tiradentes em diferentes momentos de sua vida. Sua imagem poética em muitos versos irá se assemelhar à figura heroica consolidada na História nacional e cristalizada no imaginário popular. No entanto, Cecília Meireles, ao narrar poeticamente a sina da personagem, busca revelar também o lado humano do mito, retratando as facetas digna, simples e exemplar do homem Tiradentes.

No “Romance XXVII ou Do Animoso Alferes”, em tom épico, Tiradentes aparece como uma pessoa popular e, na sua cavalgada até sua sentença de morte, dá adeus “a amigos, mulatos / cativos e chefes / coronéis, doutores / padres e almocreves [condutores de carga ou mercadorias]”:


Pelo monte claro,
pela selva agreste
que março, de roxo,
místico enfloresce,
cavalga, cavalga
o animoso Alferes.

[...]

A bússola mira.
Toma para leste.
Dez dias de marcha
até que atravesse
campinas e montes
que com os olhos mede:
tão verdes... tão longos...
(E ninguém percebe
como é necessário
que terra tão fértil,
tão bela e tão rica
por si se governe!)

Águas de ouro puro
seu cavalo bebe.
Entre sede e espuma,
os diamantes fervem...
(A terra tão rica
e – ó almas inertes! –
o povo tão pobre...
Ninguém que proteste!
Se fossem como ele,
a alto sonho entregue!)
[...]
25

Nos versos, a imagem de Tiradentes sobre o cavalo resgata intertextualmente a personagem Dom Quixote, do escritor espanhol Miguel de Cervantes. Ambos, em suas cavalgadas, se compadeceram e se indignaram com o sofrimento do povo, além de sonharem com a justiça e a liberdade.

Os versos destacam ainda as virtudes de Tiradentes e imprimem à sua imagem contornos míticos:


Não há planta obscura
que por ali medre
de que desconheça
virtude que encerre,
– ele, o curandeiro
de chagas e febres,
o hábil Tiradentes,
o animoso Alferes.

[...]
Deus, no céu revolto,
seu destino escreve.
Embaixo, na terra,
ninguém o protege:
é o talpídeo, o louco,
– o animoso Alferes.

[...]
Cavalga nas nuvens.
Por outros padece.
[...]

(Lá vai para a frente
o que se oferece
para o sacrifício,
na causa que serve.
Lá vai para sempre
o animoso Alferes!)
26

A repetição (paralelismo) da expressão “o animoso Alferes!” nas estrofes tonifica o heroísmo da personagem.

O “Romance LXXXIV ou Dos Cavalos da Inconfidência” recria o cenário da morte de Tiradentes:


Eles eram muitos cavalos:
e uns viram correntes e algemas,
outros, sangue sobre a forca,
outros, o crime e as recompensas.
Eles eram muitos cavalos:
e alguns foram postos à venda,
outros ficaram nos seus pastos,
e houve uns que, depois da sentença,
levaram o Alferes cortado
em braços, pernas e cabeça.
E partiram com sua carga
na mais dolorosa inocência
Eles eram muitos cavalos.
E morreram por esses montes,
esses campos, esses abismos,
tendo servido a tantos homens.
Eles eram muitos cavalos,
mas ninguém mais sabe os seus nomes,
sua pelagem, sua origem...
E iam tão alto, e iam tão longe!
E por eles se suspirava,
consultando o imenso horizonte!
– Morreram seus flancos robustos,
que pareciam de ouro e bronze.
Eles eram muitos cavalos.
E jazem por aí, caídos,
misturados às bravas serras,
misturados ao quartzo e ao xisto,
à frescura aquosa das lapas,
ao verdor do trevo florido.
E nunca pensaram na morte.
E nunca souberam de exílios.
Eles eram muitos cavalos,
cumprindo seu duro serviço.

A cinza de seus cavaleiros
neles aprendeu tempo e ritmo,
e a subir aos picos do mundo...
e a rolar pelos precipícios...
27

Ao compor o fúnebre espaço, a lente poética enfoca os inocentes cavalos que testemunharam a morte do rebelde e que depois tiveram que carregar suas partes desmembradas. Há um espelhamento entre cavalos e soldados na cena, uma vez que ambos, diante da violência dos episódios, mantiveram-se em silêncio, sentiram na pele a barbárie e foram usados como simples instrumento da injustiça.

O sofrimento de Tiradentes, em muitos poemas da obra, assume uma dimensão universalizante e passa a representar o sofrimento de todos aqueles que foram punidos pela instauração de um sistema injusto. O “Romance LX ou Do Caminho da Forca” exemplifica isso, ao aproximar a dor do alferes à dos negros escravizados:


Tudo leva nos seus olhos,
nos seus olhos espantados,
o Alferes que vai passando
para o imenso cadafalso,
onde morrerá sozinho
por todos os condenados.
fim do seu precário corpo

[...]
Tudo leva na memória
o Alferes, que sabe o amargo
diante do povo assombrado.

(Águas, montanhas, florestas,
negros nas minas exaustos...
– Bem podíeis ser, caminhos,
de diamante ladrilhados...)
[...]
28

Transitando pelas ruas de Ouro Preto, a lente poética ceciliana registra os ecos, os cacos da memória associados a Tiradentes, como visto no “Romance LXII ou Do Bêbado Descrente”:


Parecia um santo,
de mãos amarradas,
no meio de cruzes,
bandeiras e espadas.
[...]
29

A voz poética registra, simbolicamente, a perspectiva de um bêbado sobre os últimos momentos do líder da Conjuração Mineira, cuja imagem é associada à de um santo.

Já no “Romance LVIII ou Da Grande Madrugada”, em um tom elegíaco, o eu lírico aproxima a figura de Tiradentes à de Jesus Cristo:


“Ó, permite que te beije
os pés e as mãos... Nem te importe
arrancar-me este vestido...
Pois também na cruz, despido,
morreu quem salva da morte!“
30

Cecília Meireles recria, de forma poética, múltiplas imagens associadas a Tiradentes: do homem ao herói, do político ao mito, do sonhador ao injustiçado. Entretanto, é importante destacar que, na obra, tal personagem assume, sobretudo, uma dimensão simbólica, e alegoriza o espírito de luta contra as injustiças. Sua morte física é metáfora de uma tentativa de assassinar o sonho de uma sociedade justa, digna e humana, de forma que sua imagem é metaforicamente vivificada e ressuscitada com traços heroicos nos versos, pois representa, na esfera político-simbólica, o ideário coletivo de viver a liberdade de maneira plena.

23RIBEIRO, 1995, p. 80.
24MAXWELL, 1978, p. 222.
25MEIRELES, 2011, p. 95-96.
26MEIRELES, 2011, p. 95-98.
27MEIRELES, 2011, p. 208-209.
28MEIRELES, 2011, p.155-157.
29MEIRELES, 2011, p.160-161.
30MEIRELES, 2011, p.151.

A liberdade, as corrupções e a delação


Liberdade, liberdade!
Abra as asas sobre nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz31

O “Romance XXIV ou Da Bandeira da Inconfidência” encena os encontros secretos dos conjurados. Nos versos, é plasmada uma atmosfera de mistério que perpassa a conspiração política:


Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
– e há indagações minuciosas
dentro das casas fronteiras:
olhos colados aos vidros,
mulheres e homens à espreita,
caras disformes de insônia,
vigiando as ações alheias.
Pelas gretas das janelas,
pelas frestas das esteiras,
agudas setas atiram
a inveja e a maledicência.
Palavras conjeturadas
oscilam no ar de surpresas,
como peludas aranhas
na gosma das teias densas,
rápidas e envenenadas,
engenhosas, sorrateiras.

[...]
Liberdade – essa palavra
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!)

E a vizinhança não dorme:
murmura, imagina, inventa.
Não fica bandeira escrita,
mas fica escrita a sentença.
32

A cada verso, o leitor entra em contato com os objetivos do movimento, seus propósitos e a dificuldade de se definir o que é liberdade.

Se por um lado havia intelectuais sonhando com a liberdade e melhorias políticas, do outro reinava a corrupção, a desonestidade. No Romanceiro, não são raros os versos que apontam para práticas ilícitas que ocorriam no Brasil Colônia. O “Romance XLV ou Do Padre Rolim”, por exemplo, narra a história do Padre Rolim – personagem prestigiada no Distrito Diamantino, mas que traficava escravos e diamantes, além de praticar agiotagem:


[...] Pulando cercas e muros,
já bem longe o padre andava.
Nos seus colchões remexidos,
não se pôde encontrar nada,
que escondera as coisas todas
– em que mesa? armário? caixa?
teto? parede? alicerce?
com que amigo? com que amada?

[...]
Não há rancho que projeta,
quando é tempo de desgraça.
Ao que mais foge da sorte,
sempre algum soldado o agarra:
lá vai pela estrada afora,
lá vai, pela íngreme estrada,
o padre Rolim, que sempre
tivera vida bizarra.

Sete pecados consigo
sorridente carregava.
Se setenta e sete houvera,
do mesma modo os levara.
Por escândalos de amores,
sacerdote se ordenara.
Só Deus sabia os limites
entre seu corpo e sua alma!
33

No romance, o padre – metonímia da corrupção alojada no país –, apesar da desonestidade e ganância, consegue escapar das autoridades e garantir sua fortuna.

Leopoldino de Faria / Domínio Público

Dentro desse contexto de corrupção, a obra registra a delação que desmonta o sonho dos conjurados e que abafa o sonho de liberdade. Ao delator pusilânime, Joaquim Silvério dos Reis, Cecília Meireles dedica alguns versos. No “Romance XXVIII ou Da Denúncia de Joaquim Silvério”, destacam-se o seguintes:


Vede como está contente,
pelos horrores escritos,
esse impostor caloteiro
que em tremendos labirintos
prende os homens indefesos
e beija os pés dos ministros!
34

No “Romance XXXIV ou De Joaquim Silvério”, devem ser lembrados:


Melhor negócio que Judas
fazes tu, Joaquim Silvério:
que ele traiu Jesus Cristo,
tu trais um simples Alferes.
Recebeu trinta dinheiros...
– e tu muitas coisas pedes:
pensão para toda vida,
perdão para quanto deves,
[...]
35

31Samba enredo, de 1989, da escola Imperatriz Leopoldinense.
32MEIRELES, 2011, p. 89, 91.
33MEIRELES, 2011, p. 128-129.
34MEIRELES, 2011, p. 100.
35MEIRELES, 2011, p. 109.

O feminino conjugado e conjurado


No Romanceiro da Inconfidência, é evidente a preocupação que Cecília Meireles teve em dar voz ao feminino. No corpo da palavra poética, a poetiza imprimiu desejos, sonhos, sentimentos e dores femininos tradicionalmente solapados por uma sociedade falocrática, machista. Por isso, na obra, muitos poemas são cantados e conduzidos por vozes femininas que se mostram sujeito, e não mais objeto do discurso. Essas vozes afinam-se e criam um canto pluralizado que desnuda não apenas as nuanças do feminino, mas também as paredes opressoras de um patriarcado que tentou alijar a mulher da esfera literária, política e social. Algumas dessas vozes – metonímicas e atemporais – serão estudadas nesta parte da análise.

Marília de Dirceu


Tu, Marília, agora vendo
De Amor o lindo retrato,
Contigo estarás dizendo,
Que é este o retrato teu.
Sim, Marília, a cópia é tua,
Que Cupido é Deus suposto:
Se há Cupido, é só teu rosto,
Que ele foi quem me venceu.36

Alberto da Veiga Guignard

Maria Dorotéia Joaquina de Seixas foi imortalizada pelas liras de Tomás Antônio Gonzaga, maior poeta setecentista brasileiro. Nomeada Marília de Dirceu, sua figura possui, graças os versos de Gonzaga, dicção mítica, tornando-se importante retrato do Arcadismo e do Romantismo brasileiros. Na adolescência, apaixona-se pelo poeta. Da paixão, vem o noivado e sonho do casamento. Uma semana antes da cerimônia, no entanto, ocorre a delação de Joaquim Silvério dos Reis. Com a Conjuração, seu noivo foi condenado ao degredo. Segundo lendas e histórias de Ouro Preto, Maria Dorotéia manteve-se virgem até o fim de sua vida, esperando o retorno do poeta amado.

Essa história e o valor literário da figura de Marília são resgatados e cantados nos romances da obra ceciliana. Em “Retrato de Marília em Antônio Dias”, os versos descortinam a vida religiosa da personagem e o seu sofrimento após ser obrigada a se separar de Gonzaga:


Essa, que sobe vagarosa
a ladeira da sua igreja,
embora já não mais o seja,
foi clara, nacarada rosa.
[...]
A que se inclina pensativa,
e sobre a missa os olhos cerra,
já não pertence mais à terra:
é só na morte que está viva.
37

Neste poema, a imagem de Marília aparece em processo de destruição, pois a fraqueza e o cansaço lhe consomem:


Corpo quase sem pensamento,
amortalhado em seda escura,
com lábios de cinza murmura
“memento, memento, memento...”,
ajoelhada no pavimento
que vai ser sua sepultura.
38

Marília, nos versos envelhecida, teve a beleza destruída pela ação do tempo. A imagem idealizada na lira de Gonzaga como signo do amor idílico é destruída no poema, pois as roupas da personagem são metaforicamente uma mortalha de “seda escura”.

Outro romance a ela dedicado, “Romance LXXIII ou Da inconformada Marília”, encena a esperança que a personagem tinha de seu noivo voltar:


Pungia a Marília, a bela,
negro sonho atormentado:
voava seu corpo longe,
longe, por alheio prado.
Procurava o amor perdido,
a antiga fala do amado.
Mas o oráculo dos sonhos
dizia a seu corpo alado:
“Ah, volta, volta, Marília,
tira-te desse cuidado,
que teu pastor não se lembra
de nenhum tempo passado...”
E ela, dormindo, gemia:
“Só se estivesse alienado!”

[...]
“Não chores tanto, Marília,
por esse amor acabado:
que esperavas que fizesse
o teu pastor desgraçado,
tão distante, tão sozinho,
em tão lamentoso estado?”
A bela, porém, gemia:
“Só se estivesse alienado!”
39

Marília, inconformada com o sumiço de Gonzaga, questiona, por não receber notícias, se ele enlouquecera. A imagem da loucura perpassa todo poema.

O tema da loucura, no entanto, não se limita a esse romance. No poema “Imaginária serenata”, transtornada de saudade, Marília deseja tanto encontrar-se com seu amado que, numa espécie de delírio, começa a vê-lo em todos os lugares:


Vejo-te na igreja,
vejo-te na ponte,
vejo-te na sala...
Todo o meu castigo
é que não me veja,
também, no horizonte.
Que ouça a tua fala
sem me ver contigo.
40

O “Romance LXXXV ou Do Testamento de Marília” mantém a figura abatida e triste da musa de Gonzaga:


Triste pena, triste pena... Triste Marília, que escreve.
Tão longa idade sofrida,
para uma vida tão breve.
Muitas missas... Muitas missas...
(Que a terra lhe seja leve.)
41

Em tom de despedida, o sujeito poético apresenta o testamento de Marília e anuncia a morte da personagem.

Desse modo, percebe-se que a imagem de Marília, que povoa o imaginário popular como mito de beleza e pureza, é desconstruída nos poemas que compõem o Romanceiro. O leitor, a cada verso, depara-se com uma personagem em ruínas, destruída pela ação impiedosa do tempo. O casal Marília e Gonzaga, historicamente visto como símbolo do amor eterno, recebe, da palavra ceciliana, contornos decadentes, e suas imagens são associadas à loucura. Marília, solitária, louca e melancólica, corporifica nos versos modernistas o sofrimento, a dor e a velhice de inúmeras mulheres abandonadas pelos seus companheiros, as quais, reféns de uma tradição patriarcal, anulam suas vidas esperando o retorno do homem amado.

36GONZAGA, 1997, p. 30.
37MEIRELES, 2011, p. 200-201.
38MEIRELES, 2011, p. 201.
39MEIRELES, 2011, p.183.
40MEIRELES, 2011, p. 180-181.
41MEIRELES, 2011, p. 210.

Chica da Silva


Entre os anos 1731 e 1732, no Arraial do Tijuco, atual Diamantina, nasceu Chica da Silva – filha de Maria da Costa, escrava negra, e de Antônio Caetano de Sá, homem branco. Ela, na condição de escrava, foi primeiramente propriedade de Domingos da Costa, em seguida serviu ao médico Manuel Pires Sardinha, com quem teve seu primeiro filho. Sua vida muda quando é comprada por João Fernandes de Oliveira, pois com ele se casa. Com o casamento informal (a sociedade da época condenava a união de ex-escravas com seus senhores), conquista a sonhada alforria; como consequência, começa a fazer parte da elite de Vila Rica, e não mais da vida nas senzalas.

Embora não tenha participado da Conjuração Mineira, Chica da Silva foi uma das personagens nacionais mais expressivas do século XVIII. Sua figura é símbolo da mulher negra que conseguiu subverter, mesmo que parcialmente, uma lógica opressora e excludente instalada. No Romanceiro, é retratada como uma mulher bela, vaidosa e inteligente. Entre os versos dedicados à negra, destacam-se os que compõem o “Romance XIV ou da Chica da Silva”, o qual sintetiza sua história e seus encantamentos. Composto por 22 estrofes, o poema inicia-se apontando o poder de sedução que reverberava da ex-escrava:


Que andor se atavia
naquela varanda?
É a Chica da Silva:
é a Chica-que-manda!

Cara cor da noite,
olhos cor de estrela.
Vem gente de longe
para conhecê-la.
42

Cercada de negras, a beleza de Chica da Silva sobressaía. Ela era o centro dos olhos, o “sol” que brilhava e que a todos encantava:


(Doze negras em redor
– como as horas, nos relógios.
Ela, no meio, era o sol!)

Um rio que, altiva,
dirige e comanda
a Chica da Silva,
a Chica-que-manda.

Esplendem as pedras
por todos os lados:
são flechas em selvas
de leões marchetados.
43

O poder e a imponência de Chica da Silva são alegorizados na figura de um relógio. Nele, Chica ocupa a posição central, como a do Sol, enquanto as outras doze negras a rodeiam. Ela é a “negra que manda” e que comanda um “rio” de escravas e mordomos.

Por onde passava, homens se curvavam diante de sua beleza e de sua riqueza:


Mil luzeiros chispam,
à flexão mais branda
da Chica da Silva,
da Chica-que-manda!

E curvam-se, humildes,
fidalgos farfantes,
à luz dessa incrível
festa de diamantes.
44

Chica da Silva, por não conhecer o mar, pediu a João Fernandes que construísse um tanque e um navio para que ela pudesse ter ideia de como era o oceano. O marido, querendo satisfazer a curiosidade e a vaidade da esposa, mandou então construir um vasto tanque e um navio para oito pessoas, o qual emulava as caravelas das grandes embarcações. Esse episódio histórico é resgatado liricamente no poema:


(Dez homens o tripulavam,
para que a negra entendesse
como andam barcos nas águas.)

Aonde o leva a brisa
sobre a vela panda?
– À Chica da Silva:
à Chica-que-manda.

A Vênus que afaga,
soberba e risonha,
as luzentes vagas
do Jequitinhonha.
45

Na reconstrução da cena, Chica da Silva aparece como Vênus, a deusa do amor, no Rio Jequitinhonha.

O poema encerra-se comparando Chica da Silva à Santa Ifigênia, padroeira dos negros, e à Rainha de Sabá, importante personagem feminina que habita o imaginário popular de diversos povos da África e do Oriente Médio.


(À Rainha de Sabá,
num vinhedo de diamantes
poder-se-ia comparar.)

Nem Santa Ifigênia,
toda em festa acesa,
brilha mais que a negra,
na sua riqueza.

Contemplai, branquinhas,
na sua varanda,
a Chica da Silva,
a Chica-que-manda!

(Coisa igual nunca se viu.
Dom João Quinto, rei famoso,
não teve mulher assim!)
46

Carlos Julião / Creative Commons

A Rainha de Sabá, citada com nomeações diferentes na Bíblia, na Torá e no Alcorão, ficou conhecida na História e nas narrativas lendárias por sua inteligência, por seu poder político, por sua beleza e também por sua vaidade. Segundo uma das lendas, a Rainha chegou à antiga Jerusalém trajando roupas caras, coberta de joias preciosas e seguida por inúmeros servos. Cecília Meireles, em seu poema, resgata essa lendária imagem feminina numa tentativa de traduzir a beleza e o poder de Chica da Silva.

Ainda sobre as estrofes que encerram o poema, o professor Francis Utéza destacou:

Chica da Silva, não apenas no poema analisado, mas também nos outros a ela destinados, é representada como uma mulher altiva, sedutora e inteligente. Ela simboliza as mulheres negras que resistiram à violência historicamente exercida pela cultura patriarcal, racista e excludente. Com sua força, a “Vênus negra” resistiu e conseguiu subverter a lógica opressora instaurada. Da margem, conseguiu transitar para o centro dos olhares, da sociedade e da História.

42MEIRELES, 2011, p. 69.
43MEIRELES, 2011, p. 70.
44MEIRELES, 2011, p. 70-71.
45MEIRELES, 2011, p. 71.
46MEIRELES, 2011, p. 71-72.
47UTÉZA, 2002, p. 40-55.

Bárbara Heliodora


Nascida em 1759, em São João del-Rei, Bárbara Heliodora48 é considerada por muitos estudiosos a primeira poetisa mineira, sendo de sua autoria as sextilhas “Conselhos aos meus filhos”. Ativista política, mineradora e esposa do poeta árcade Alvarenga Peixoto, participou de algumas reuniões dos conjurados – fato que a torna a primeira mulher no Brasil a participar de um movimento político. Com a delação, seu marido foi preso e exilado em Angola. Sozinha, teve que administrar as propriedades da família, quitar as dívidas do marido, cuidar dos filhos e suportar os preconceitos e as ideias conservadoras do patriarcado mineiro da época. Por sua força e ativismo, ficou conhecida na História como a “Heroína da Inconfidência Mineira”. Na obra, dois romances cantam sua trajetória; um deles é o “Romance LXXV ou de Dona Bárbara Eliodora”:


Há três donzelas sentadas
na verde, imensa campina.
O arroio que passa perto,
com palavra cristalina,
ri-se para Policena,
beija os dedos de Umbelina;
diante da terceira, chora,
porque é Bárbara Eliodora.
[...]

Das três donzelas sentadas
naquela verde campina,
ela era a mais excelente,
a mais delicada e fina.
Era o engaste, era a coroa,
Era a pedra diamantina...
Rolaram sobras na terra,
Como súbita cortina.

Partiu-se a estrela da aurora:
Dona Bárbara Eliodora!
49

Nesse romance, a voz lírica pinta um retrato poético da Bárbara Heliodora. Sua imagem é associada à figura de uma joia – metáfora que aponta não apenas para sua beleza, mas também para o valor que teve seu ativismo político no cenário da Conjuração.

No ”Romance LXXX ou do Enterro de Bárbara Eliodora”, o sujeito lírico desnuda os sofrimentos não da Bárbara política, mas da Bárbara mãe e esposa, que suportou o exílio e a morte do marido e a perda dos quatro filhos jovens:


[...]
Nove padres vão rezando...
(Dizei-me se ainda é preciso!...
Fundos calabouços frios
devoraram-lhe o marido.
Quatro punhais teve n’alma,
na sorte de cada filho.

[...]
Dona Bárbara Eliodora
toma vida noutros mundos.
Grita a amigos e parentes,
quer saber de seus defuntos:
ronda igrejas e presídios,
fala aos santos mais obscuros.
50

A figura forte e triste de Bárbara Heliodora, nos versos cecilianos, representa, metonimicamente, as inúmeras mulheres silenciadas que tentaram intervir politicamente na esfera pública de uma sociedade conservadora e falocêntrica. A força da personagem revela que, mesmo havendo uma estrutura social de exclusão e opressão, muitas mulheres resistiram e conseguiram deixar suas marcas na cultura, na política e na História nacionais.

48A grafia do nome de Bárbara Heliodora aparece diferente de outros registros históricos no Romanceiro da Inconfidência, como consta no Dicionário crítico de escritoras brasileiras: 1711-2001.
49MEIRELES, 2011, p. 191-192.
50MEIRELES, 2011, p. 199-200.

Considerações finais


Envolvida em um projeto histórico-literário, Cecília Meireles, após aspirações provenientes das sombras que ecoam nas íngremes ladeiras de Ouro Preto, teceu em seu romanceiro sua versão sobre a Conjuração Mineira. Nos poemas, brotam histórias, estórias, falas, cenários, amores e traições das Minas setecentistas. Essas sombras do passado são materializadas no corpo de uma palavra poética que possui simultaneamente roupagem neossimbolista e medieval. Além disso, a autora promove, com maestria, uma confluência de gêneros literários que se penetram e se completam: o épico é evidente na dicção narrativa e na temática, a qual se vincula à História do povo brasileiro; o dramático manifesta-se nas falas e nas vozes das personagens; já o lírico materializa-se no caráter subjetivo e reflexivo dos versos. Empregando essa complexa estrutura, a obra constrói pontes poéticas entre História e Literatura, entre presente e passado, entre factual e simbólico. Nessas pontes, é possível perceber valor estético, social e político do texto, o qual – ao recriar o passado histórico – apresenta-se marcadamente moderno e universal.