Sobrevivendo no inferno é um álbum lançado pelo grupo de rap paulista Racionais MC’s, em 1997, que vendeu oficialmente 1,5 milhões de cópias, mas com uma margem de vendagem via pirataria que pode ter alcançado 4 milhões de unidades a mais, segundo a revista Rolling Stone. Esse grande feito comercial deve ser pensado no contexto socioeconômico dos anos 1990, em que a pirataria dos CDs era uma atividade comercial paralela que atingia e desbancava a indústria musical, além de não haver redes sociais generalizadas para facilitar o compartilhamento de arquivos, como ocorreria no início dos anos 2000. Sendo assim, o contato direto entre os artistas e seu público era consideravelmente mais limitado. Deve-se pensar também no impacto desse sucesso na medida em que os integrantes dos Racionais MC’s – Mano Brown (Pedro Paulo Soares Pereira), Ice Blue (Paulo Eduardo Salvador), Edi Rock (Edivaldo Pereira Alves) e o DJ KL Jay (Kleber Geraldo Lelis Simões) – não concediam entrevistas a grandes veículos de imprensa tradicional, tampouco apareciam em programas de destaque na televisão, naquele momento a grande mídia de massas no Brasil.
Reforce-se que os integrantes dos Racionais MC’s não só recusavam o status de celebridades do rap, como criticavam pesadamente os artistas negros que se rendiam às supostas benesses trazidas pela indústria musical, fomentada pelos programas de rádio e TV que construíam carreiras comercialmente rentáveis. O modo de atuação do grupo foi criado de maneira alternativa, do ponto de vista artístico e comercial, já que, aproximadamente, desde 1988, faziam shows nas periferias e em eventos culturais voltados para as comunidades pobres da Grande São Paulo, tendo posteriormente alcançado o Brasil inteiro. Lançaram dois EP’s, mas foi com o disco Raio-X do Brasil, no final de 1993, que continha músicas como “Fim de semana no parque” e “Homem na estrada”, que o grupo alcançou uma repercussão que extrapolou o cenário do hip hop paulistano.
É importante também pensar o movimento do rap nacional não apenas como uma continuidade da cultura hip hop, que surge nos anos 1960-1970 nos bairros pobres de Nova Iorque, mas, principalmente, como uma releitura recriadora de uma musicalidade calcada no discurso potente dos excluídos, sobretudo dos afrodescendentes, que até então ou eram silenciados pela cultura considerada adequada ou eram sumariamente ignorados e esquecidos pela sociedade. O rap brasileiro assimilou as características do gênero musical, com as batidas fortes e ritmadas, poderosas e dançantes, elaboradas pelos DJ’s, a partir de samples da black music, em especial o soul e o funk dos anos 1970, juntamente à figura imponente do MC, o mestre de cerimônia, que criava rimas em cima da base musical compassada, transformando o discurso em canção: ritmo e poesia (Rhythm And Poetry).
Os MC’s daqui trouxeram para o rap as narrativas das periferias brasileiras, o olhar do marginalizado que nunca falou por si, a perspectiva de quem se considerava ignorado pela “alta” cultura, traduzindo poeticamente os relatos vindos diretamente das ruas. Junto à urbanidade sonora do rap, vieram os samples extraídos de músicas brasileiras, principalmente da música negra, a mistura com ritmos regionais, as referências à religiosidade afro, as gírias e jargões urbanos: mais do que originalidade, o rap nacional ganhou autenticidade.
Ressalte-se que a UNICAMP indicou como referência para o vestibular o conjunto das músicas existentes no álbum Sobrevivendo no inferno, não exclusivamente as letras dos raps cantadas no disco. Para viabilizar a análise textual do disco, optou-se pela utilização da versão em livro, lançada pela Companhia das Letras, em virtude da indicação do álbum musical como obrigatório para o exame de seleção. No entanto, o texto verbal impresso dos raps jamais poderá alcançar a dinâmica da experiência sonora, artística e social de se escutar o disco em sua totalidade, levando-se em conta a interação entre o ritmo e as letras rimadas, as sonoridades que permeiam as ideias, os graves e agudos de batidas e efeitos sonoros, a continuidade e dinâmica da música relacionada à prosódia dos rappers, ou seja, o próprio exercício estético de se escutar a obra musical em si.
Ainda assim, as letras, como texto verbal, mantêm a potência criativa de narrativas poéticas, verdadeiras crônicas sociais em forma de ritmo e poesia que o grupo criou. Tratam-se de poemas urbanos, narrativas em versos que articulam as experiências de personagens cujo cotidiano é regulado pela violência e pela desigualdade. O impacto das letras de Sobrevivendo no inferno advém de como os processos sociais que separam as periferias violentas de metrópoles, como São Paulo, as ditas quebradas, dos centros de poder financeiro, conforto e saúde, luxo e benesses consumistas, são explicados e reportados. Quase sempre calcados na violência sofrida ou no revide, os poemas, narrativas, testemunhos ou relatos – entenda-se como quiser os raps – revelam o inevitável: após anos da Abolição, a população negra, parda e periférica não possui nenhum tipo de benefício estrutural ou social que lhes permita ascender economicamente; após seguidos programas econômicos governamentais, as favelas continuam sendo o espaço onde a criminalidade torna-se uma escolha daqueles que não têm escolha:
MANO BROWN
Para os mano da Baixada Fluminense à Ceilândia
Eu sei, as ruas não são como a Disneylândia
De Guaianases ao extremo sul de Santo Amaro
Ser um preto tipo A custa caro
É foda
Foda é assistir à propaganda e ver
Não dá pra ter aquilo pra você
Playboy forgado, de brinco, cu, trouxa
Roubado dentro do carro na avenida Rebouças
Correntinha das moça, as madame de bolsa
Dinheiro... Não tive pai, não sou herdeiro
Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal
Por menos de um real minha chance era pouca
Mas se eu fosse aquele moleque de touca
Que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca
De quebrada, sem roupa, você e sua mina
Um, dois, nem me viu, já sumi na neblina
Mas não…
Permaneço vivo, prossigo a mística
Vinte e sete ano contrariando a estatística
Seu comercial de TV não me engana
Eu não preciso de status nem fama
Seu carro e sua grana já não me seduz
E nem a sua puta de olhos azuis
Eu sou apenas um rapaz latino-americano
Apoiado por mais de cinquenta mil manos
Efeito colateral que o seu sistema fez
Racionais, capítulo 4, versículo 3
Nessa, que é uma das mais poderosas músicas do grupo, a terceira faixa (o terceiro versículo) do quarto disco (quarto capítulo) do grupo, em poucos versos, Mano Brown relativiza a sedução exercida pelo crime, coloca-se no lugar do criminoso para imaginar sua motivação, arregimenta o abandono paterno como justificativa de muitas ações de grande parte de crianças criadas apenas por figuras maternas no Brasil, que sentem, no sofrido cotidiano, tal ausência, além de conclamar a comunidade à qual pertence como legitimadora e protetora de seu ponto de vista e ações.
Sem perder o fôlego, o testemunho do rapper revela os cordões manipulatórios de um sistema econômico que hipnotiza os indivíduos por meio da indução ao consumo alienante, ressalta as origens mestiças e latinas comuns a ele e aos que o escutam, desabafa a partir de uma metaforização do discurso bíblico por meio da intertextualidade com os textos sagrados, na inscrição dos capítulos e versículos como lições aprendidas na lida urbana, recriando uma nova catequese para aqueles que sofrem dos mesmos problemas que ele, sem deixar de lado as estatísticas de violência que evidenciam um genocídio contra os afro-brasileiros. O músico, como “efeito colateral”, é a exceção, o sobrevivente no inferno. Tamanho poder de síntese narrativa, elaborada com base em uma linguagem criativa e estética, produzida com a concisão de pensamento manifesto a partir da expressividade metafórica da linguagem, só é encontrável em textos considerados verdadeiramente poéticos.
Nos anos 1990, vários acontecimentos violentos chocaram os brasileiros e repercutiram internacionalmente. Em 2 de outubro de 1992, a Polícia Militar do Estado de São Paulo reagiu brutalmente contra uma rebelião no presídio do Carandiru, mais precisamente no Pavilhão 9, matando 111 presos. A intervenção ainda é considerada por grande parte dos críticos dessa ação violenta como um verdadeiro massacre. A maioria dos 111 detentos mortos era composta por réus primários, assassinados desarmados nos corredores da carceragem ou dentro das próprias celas. Poucos meses depois, em 23 de julho de 1993, quatro policiais militares dispararam contra cerca de cinquenta crianças e adolescentes que dormiam nas escadarias da igreja da Candelária, no Rio de Janeiro. Aparentemente, era uma represália contra pequenos furtos que jovens em situação de rua praticavam. Houve oito mortos e dezenas de feridos nesse episódio que ficou conhecido como a chacina da Candelária.
Um mês depois, em 29 de agosto de 1993, mais de trinta policiais militares, encapuzados e sem farda, assassinaram vinte e uma pessoas em Vigário Geral, Rio de Janeiro, com a justificativa de que os mortos possuíam ligação com o tráfico de drogas, o que não foi provado.
Em 1997, o governo Fernando Henrique Cardoso seguia com sua pauta neoliberal buscando controlar a inflação, orientando a economia brasileira para as privatizações. Com isso, FHC conseguiu se reeleger para um segundo mandato em 1998, derrotando o candidato Lula, seu principal adversário. A despeito de ações na área da educação, a extrema desigualdade social, provocada pela concentração de renda nas mãos de uma pequena parcela populacional, ainda era uma das marcas brasileiras que o governo não deu conta de alterar, motivando grandes críticas ao sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Sendo assim, a insegurança social é um dos fatores mais relevantes desse período. É importante narrar a pobreza do contexto do final dos anos 1990, pois ela é a propulsora de várias atrocidades cometidas, principalmente, contra os afro-brasileiros, habitantes das regiões periféricas urbanas, as grandes vítimas do sistema social excludente do Brasil. Os dados do período, inclusive, são levantados no início do disco dos Racionais MC’s – oferecendo um importante retrato social do momento:
PRIMO PRETO
60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras
Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros
A cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente
O número de universitários declarados pretos e pardos aumentou após 1997, quando o disco foi lançado, devido ao sistema de cotas, decretado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal em 2012, que permitiu o ingresso na universidade de parcela considerável de jovens de baixa renda oriundos de regiões marginalizadas, mas a violência policial ainda atinge principalmente os negros. Segundo dados do Atlas da Violência, lançado pelo IPEA e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2017, homens, jovens, negros e de baixa escolaridade são as principais vítimas de mortes violentas no Brasil.
A população negra equivale, segundo dados do estudo, a 78,9% dos 10% das pessoas com mais chances de se tornarem vítimas de homicídios. Os negros, conforme demonstrado pelo Atlas e já descontados os efeitos da idade, do sexo, da escolaridade, do estado civil e do bairro onde moram, possuem chances 23,5% mais altas de serem assassinados em comparação aos brasileiros pertencentes a outras etnias. Concomitante a isso, no Brasil, a cada 100 pessoas assassinadas, 71 são negras. Se as estatísticas assustam, é de se considerar que o rap dos Racionais MC’s não só abordasse tal problema escancarado em sua realidade, como também alertasse os seus principais interlocutores, os jovens da periferia, acerca da violência a que estariam inevitavelmente submetidos.
Não por acaso, também, o disco se inicia com uma oração a São Jorge, sincretizado com Ogum no candomblé, resgatando uma música de Jorge Ben. “Ogunhê” é pronunciado abertamente numa saudação e pedido de proteção àquele que é o orixá ferreiro, segundo a cultura iorubá, o senhor da guerra, pois é a luta diária no inferno urbano que se vai relatar:
Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge
Para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem
Para que meus inimigos tenham mãos e não me toquem
Para que meus inimigos tenham olhos e não me vejam
E nem mesmo um pensamento eles possam ter
Para me fazerem mal
Armas de fogo meu corpo não alcançarão
Facas e espadas se quebrem sem o meu corpo tocar
Cordas e correntes arrebentem sem o meu corpo amarrar
Pois eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge
O clima bélico e de combate se mantém até o final do álbum, quando no “Salve”, faixa de dedicatórias e homenagens às comunidades, às periferias e à população carcerária, Mano Brown profere, após saudar os DJ’s e MC’s que fazem do rap a trilha sonora dos habitantes do gueto:
E pros filha da puta que querem jogar minha cabeça pros porco:
Aí, tenta a sorte, mano
Eu acredito na palavra de um homem de pele escura, de cabelo crespo
Que andava entre mendigos e leprosos pregando a igualdade
Um homem chamado Jesus
Só ele sabe a minha hora
Aí, ladrão, tô saindo fora
Sobrevivendo no inferno é um álbum que deve ser pensado não somente como uma agregação coesa de músicas, mas também como um conjunto de canções com signos que se repetem e se reproduzem poeticamente. A capa à semelhança de uma Bíblia preta, com uma cruz dourada evocando o maior signo cristão, a referência nas letras à imagem de Jesus como um indivíduo pardo e as evocações religiosas afro-brasileiras compõem, junto à inscrição do Salmo 23 na capa e contracapa do disco, a qual possui uma foto de um indivíduo empunhando uma arma nas costas, uma profunda reverência ao divino e à busca por proteção do sagrado contra a imprevisibilidade do inferno da vida real:
Refrigere minha alma e guia-me pelo caminho da justiça. (Salmo 23, 3)
E mesmo que eu ande no vale da sombra e da morte não temerei mal algum porque tu estás comigo. (Salmo 23, 4)
O salmo refere-se à justiça, mas ela não existe ou não é a mesma para os pretos pobres das periferias, conforme ditam as leis, o que leva o ouvinte à introdução, com a faixa denominada “Gênesis”, na qual Mano Brown sentencia:
Deus fez o mar, as árvore, as criança, o amor
O homem me deu a favela, o crack, a trairagem
As arma, as bebida, as puta
Eu?
Eu tenho uma Bíblia velha, uma pistola automática
Um sentimento de revolta
E tô tentando sobreviver no inferno
No começo de tudo, a revolta. No princípio dos tempos, o homem destruindo a criação divina. Junto à Bíblia, a arma como elemento de defesa e ataque; junto à natureza, o subproduto da miséria na favela: a criminalidade e o tráfico de drogas. Essas são as principais motivações desse álbum: narrar a violência gerada por um sistema social injusto que pune os mais pobres, alienando-os e incitando-os à vida no crime; a impossibilidade de manter qualquer tipo de idealização em meio às desgraças cotidianas;
o dever e a obrigação de mostrar aos jovens novas perspectivas que os forcem a refletir sobre a desigualdade que se abate sobre eles; a provocação do gueto contra aqueles que querem manter a população preta escondida e alienada nas periferias.
O rap é um discurso armado, potente e informado sobre o que acontece nos guetos brasileiros. Mais do que uma simples voz da periferia, articula-se como poesia que traduz a responsabilidade em se expressar por todos os marginalizados, buscando ao mesmo tempo entender a si enquanto sujeito, que sofre pela falta de acesso à escolaridade adequada, bens de consumo e conforto familiar, mas também aos outros pretos e pobres, que talvez nunca tenham parado para refletir sobre seu lugar no mundo. Assim diz a letra de “Capítulo 4, Versículo 3”:
MANO BROWN
Minha intenção é ruim, esvazia o lugar
Eu tô em cima, eu tô a fim, um, dois pra atirar
Eu sou bem pior do que você tá vendo
O preto aqui não tem dó, é 100% veneno
A primeira faz bum, a segunda faz tá
Eu tenho uma missão e não vou parar
Meu estilo é pesado e faz tremer o chão
Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição
Na queda ou na ascensão, minha atitude vai além
E tem disposição pro mal e pro bem
Talvez eu seja um sádico, ou um anjo, um mágico
Ou juiz, ou réu, um bandido do céu
Malandro ou otário, padre sanguinário
Franco-atirador, se for necessário
Revolucionário, insano ou marginal
Antigo e moderno, imortal
Fronteira do céu com o inferno
Astral imprevisível, como um ataque cardíaco
Do verso violentamente pacífico, verídico
Vim pra sabotar seu raciocínio
Vim pra abalar seu sistema nervoso e sanguíneo
Pra mim ainda é pouco, Brown cachorro loko
Número um, guia, terrorista da periferia
Uni-duni-tê, eu tenho pra você
Um rap venenoso ou uma rajada de PT
E a profecia se fez como previsto
KL JAY
Um, nove, nove, sete
MANO BROWN
Depois de Cristo
A fúria negra ressuscita outra vez
Racionais, capítulo 4, versículo 3
O “bandido do céu” com seu “verso violentamente pacífico” configura o conjunto de contradições moldadas pela sociedade que o rapper carrega em si. Ao narrarem-se, as vozes dos rappers realizam o cruzamento das suas trajetórias pessoais às daqueles com os quais compartilham a pobreza e a escassez. Longe de ser moralista, o discurso dos manos é relativista e contundente. Eles entendem que muitas pessoas não têm escolha, não conseguem recusar o mundo de seduções capitalistas exercidas pelo desejo de consumo incutido pela mídia, sequer entendem que são manipulados por um sistema que tenta anulá-los, inviabilizando suas vidas:
MANO BROWN
Colou dois mano, um acenou pra mim
De jaco de cetim, de tênis, calça jeans
ICE BLUE
Ei, Brown, sai fora, nem vai, nem cola
Não vale a pena dar ideia nesses tipo aí
Ontem à noite eu vi na beira do asfalto
Tragando a morte, soprando a vida pro alto
Ó os cara, só o pó, pele e osso
No fundo do poço, uma pá de flagrante no bolso
MANO BROWN
Veja bem, ninguém é mais que ninguém
Veja bem, veja bem, e eles são nossos irmãos também
ICE BLUE
Mas de cocaína e crack, uísque e conhaque
Os mano morre rapidinho, sem lugar de destaque
MANO BROWN
Mas quem sou eu pra falar de quem cheira ou quem fuma?
Nem dá, nunca te dei porra nenhuma
Você fuma o que vem, entope o nariz
Bebe tudo que vê, faça o diabo feliz
Você vai terminar tipo o outro mano lá
Que era um preto tipo A, ninguém entrava numa
Mó estilo, de calça Calvin Klein, tênis Puma
Um jeito humilde de ser, no trampo e no rolê
Curtia um funk, jogava uma bola
Buscava a preta dele no portão da escola
Exemplo pra nós, mó moral, mó ibope
Mas começou a colar com os branquinho do shopping
EDI ROCK
Aí já era
MANO BROWN
Ih, mano, outra vida, outro pique
Só mina de elite, balada, vários drinque
Puta de butique, toda aquela porra
Sexo sem limite, Sodoma e Gomorra
Faz uns nove anos
Tem uns quinze dias atrás eu vi o mano
Cê tem que ver, pedindo cigarro pros tiozinho no ponto
Dente tudo zuado, bolso sem nenhum conto
O cara cheira mal, as tia sente medo
Muito louco de sei lá o quê… logo cedo
Agora não oferece mais perigo
Viciado, doente, fudido, inofensivo
Para ampliar o sentido dessa letra, vale resgatar uma rara entrevista concedida por Mano Brown ao jornal Notícias Populares em 1997, em que o rapper responde acerca do medo da morte:
Medo de morrer eu não tenho, não. Só Deus sabe a minha hora. A gente fala da estatística porque na zona sul de São Paulo a maioria dos caras não chega aos 23 ou 24 anos. A maioria dos caras na nossa picada, que vive da mesma maneira que a gente, da nossa cor, não chega a essa idade. Quando você passa dos 25, já começa a falar: “Tô no lucro”. A maioria morre ou vai preso antes. A gente não passou nesses venenos, tipo pegar uma cana. Na época que estava todo mundo “desandando”, entrando pro crime, a gente achou o rap. O rap nos salvou. Da nossa época, só nós estamos vivos (Brown e Blue). O resto tá tudo morto.
A contundência da resposta de Mano Brown alia-se ao próprio relato consciente sobre o poder da manipulação do sistema capitalista sobre os pobres, pois os raps entoados pelos Racionais MC’s contrariam as estatísticas de criminalidade, de morte prematura e de alienação comuns aos seus iguais. A despeito de Sobrevivendo no inferno ter ultrapassado as fronteiras da periferia, das pontes das quebradas e dos becos das favelas, é para a população negra que as letras bradam.
“Periferia é periferia (Em qualquer lugar)”, cujo título explicita um irônico lugar-comum trabalhado na letra, traz uma duplicidade de sentidos alcançada a partir da expressividade crítica de se apontarem os problemas, mas também as peculiaridades das comunidades periféricas. A periferia passa não só a ser o espaço da miséria violenta, mas um lugar de onde emana cultura e poder de denúncia. Isso se deve ao surgimento do rap, em grande medida, como forma de confronto ao discurso do senso comum. Assim sendo, outros modos de dizer são autorizados por meio da poesia urbana do rap, outros pontos de vista, dessa maneira, devem ser levados em consideração:
EDI ROCK
Este lugar é um pesadelo periférico
Fica no pico numérico de população
De dia, a pivetada a caminho da escola
À noite vão dormir enquanto os mano decola
Na farinha, na pedra
Usando droga de monte, que merda
Eu sinto pena da família desses cara
Eu sinto pena, ele quer mais, ele não para
Um exemplo muito ruim pros moleque
Pra começar é rapidinho e não tem breque
Herdeiro de mais alguma dona Maria
[OUTRO]
Cuidado, senhora, tome as rédeas da sua cria
EDI ROCK
Porque o chefe da casa trabalha e nunca está
Ninguém vê sair, ninguém escuta chegar
O trabalho ocupa todo o seu tempo
Hora extra é necessário pro alimento
Uns reais a mais no salário
Esmola de patrão, cuzão, milionário
Ser escravo do dinheiro é isso, fulano
Trezentos e sessenta dias por ano sem plano
Se a escravidão acabar pra você
Vai viver de quem, vai viver de quê?
O sistema manipula sem ninguém saber
A lavagem cerebral te fez esquecer
Que andar com as próprias pernas não é difícil
Mais fácil se entregar, se omitir
Nas ruas áridas da selva
Eu já vi lágrimas demais
O bastante pra um filme de guerra
Nessa música, uma sequência de samples utilizados durante os refrãos dá uma ideia das várias vozes que compõem esse espaço de riqueza cultural, mas também de tragédias e contradições, que a sociedade uniformiza sob o nome
de periferia:
[VÁRIOS]
Aqui a visão já não é tão bela
Não existe outro lugar
Periferia, gente pobre
Aqui a visão já não é tão bela
Não existe outro lugar
Milhares de casas amontoadas
Periferia é periferia
Vacilou, ficou pequeno, pode acreditar
Periferia é periferia (em qualquer lugar)
Muita pobreza, estoura a violência
Nossa raça está morrendo mais cedo
Não me diga que está tudo bem
Muita pobreza, estoura a violência
Nossa raça está morrendo mais cedo
A verdade seja dita
Gente pobre
Periferia é periferia
Vários botecos abertos, várias escolas vazias
Periferia é periferia
E a maioria por aqui se parece comigo
Periferia é periferia
Mães chorando, irmãos se matando, até quando?
Periferia é periferia (em qualquer lugar)
Gente pobre
Periferia é periferia
Aqui, meu irmão, é cada um por si
Periferia é periferia
Molecada sem futuro, eu já consigo ver
Periferia é periferia
Aliados drogados
Periferia é periferia (em qualquer lugar)
Gente pobre
Periferia é periferia
Deixe o crack de lado, escute o meu recado
Trata-se de um vórtice de informações que comprovam a marginalização a que os moradores, principalmente os afro-brasileiros, estão submetidos, mas igualmente um ataque verbal àqueles que consideram que se trata apenas de um lugar de pessoas esquecidas, sem cultura, sem olhar crítico, sem espírito combativo. A prioridade das letras imponentes dos Racionais MC’s é lutar pelos pretos, contra o que se evidencia como um genocídio, afinal morrem sempre mais negros do que brancos. Conclama-se, dessa maneira, a união das quebradas, fazendo-se a menção a vários bairros onde os cantores vivem e se sociabilizam, evocando a comunhão, o partilhamento de olhares, sem deixar de lado a sensação de pertencimento àquele lugar.
Sempre é importante destacar que tal partilha é comprometida com o modo de vida das periferias urbanas, o que é dito nas letras por quatro músicos negros e jovens, imersos em um ambiente de violência e falta de perspectiva. Portanto, relaciona-se com uma verdade subjetiva que pode ser tomada por qualquer um. Quando as letras abordam a penetração da droga, do crack mais especificamente, nas favelas, não se trata de mera apologia à criminalidade e, sim, um aviso contundente aos ouvintes. Do crack só sairá a desgraça e desagregação familiar; todos aqueles que se envolvem com a criminalidade, nas letras, acabam mortos. A droga só traz a humilhação e a submissão aos negros. O tráfico oferece a remuneração instantânea, mas também o fim trágico. A criminalidade fatalmente levará o sujeito ao presídio. São essas as chamadas orelhadas que as letras buscam concretizar, os conselhos dados: o rap deve ajudar os manos a se manterem vivos.
A despeito das letras falarem sobre como resistir à vida do crime, principalmente aos jovens tentados nessa direção, se engana quem esperar discursos moralistas. Ao contrário, as canções buscam discutir o lugar do usuário, do traficante e dos trabalhadores que moram nas favelas e se tornam vítimas diretas e indiretas do tráfico, da polícia e da violência urbana. Tal multiplicidade de pontos de vista traduz um concerto de opiniões e perspectivas que alertam para como os jovens negros se escravizam novamente, repetindo o passado de dominação violenta imposta barbaramente aos africanos e seus descendentes no período escravista, assim como brada Edi Rock ao final de “Periferia é periferia”:
EDI ROCK
Vi só alguns anos pra cá, pode acreditar
Já foi bastante pra me preocupar com meus filhos
Periferia é tudo igual
Todo mundo sente medo de sair de madrugada e tal
Ultimamente andam os doido pela rua
Louco na fissura, te estranham na loucura
Pedir dinheiro é mais fácil que roubar, mano
Roubar é mais fácil que trampar, mano
É complicado, o vício tem dois lado
Depende disso ou daquilo, ou não, tá tudo errado
Eu não vou ficar do lado de ninguém porque:
Quem vende a droga pra quem?
Vem pra cá de avião ou pelo porto, cais
Não conheço pobre dono de aeroporto e mais
Fico triste por saber e ver
Que quem morre no dia a dia é igual a eu e a você
Na entrevista ao Notícias Populares, Mano Brown comenta faixa a faixa as músicas de Sobrevivendo no inferno. Tal síntese é importante tendo em vista a obra em sua totalidade, porque assim se tem a perspectiva do conjunto poderoso das canções:
Jorge da Capadócia
É uma homenagem a Ogum, que é um orixá que abre os caminhos, e a Jorge Ben. Quando abrimos o selo, abrimos uma guerra. Ogum vai abrir uma frente pra gente.
Capítulo 4, Versículo 3
Para quem achou que o Racionais tava morto, estamos voltando. É o capítulo quarto.
Tô Ouvindo Alguém me Chamar
Faltam dez minutos pra um cara morrer. Acabou de tomar uns tiros, tá deitado no chão recebendo socorro, e começa a lembrar de todas as pilantragens que fez. É a morte chamando ele.
Rapaz Comum
Conta a história de um rapaz comum. É o que acontece todo dia: o cara tá assistindo a um jogo, aí toca a campainha... quando ele vai atender, o cara senta o dedo (atira).
Diário de um Detento
É uma letra que conta um dia antes, durante e depois do massacre no Carandiru. Eu catei depoimentos de vários presos. Uma parte foi composta por um cara de lá. Fomos jogar bola lá dentro e recebi a letra. Um primo que tava lá contou os detalhes.
Periferia é Periferia
É do Edi Rock. É a história de um trabalhador que compra um revólver pra se defender e acaba matando um moleque. O viciado em drogas vai roubar o trabalhador que mata ele.
Mágico de Oz
Conta a história dos moleques do centro da cidade, do crack.
Fórmula Mágica da Paz
Fala da zona sul e de como você pode fazer o inferno dentro da sua própria cabeça. Se você já sai preparado pra receber violência, vai cometer mais atos de violência.
Salve
Falamos dos lugares que já visitamos. Os manos que conhecemos lá. Fala de bairro que ninguém nem fala, como o Colônia. Lá tem até índio. É um lugar esquecido. Se os Racionais não falam desses lugares, ninguém vai falar. Nem samba, nem porra nenhuma.
No artigo introdutório à edição da Companhia das Letras, Acauam Silvério de Oliveira faz uma interessante analogia da organicidade do disco com os cultos neopentecostais, tendo em vista os símbolos sacros presentes na obra bem como o contexto de ascensão das diversas denominações cristãs no Brasil, no fim dos anos 1990, em especial nas periferias:
De forma bastante livre, e aproveitando-se das sugestões teológicas do disco, podemos esquematizar as várias partes desse “culto” onde se exploram as diversas contradições entre os modelos éticos (crime, neopentecostal e rap) presentes na periferia. Teríamos assim a seguinte divisão: cântico de louvor e proteção direcionado ao santo guerreiro (“Jorge da Capadócia”); leitura do evangelho marginal (“Gênesis”); entrada em cena do pregador do proceder, explicando (ou confundindo,
a depender da necessidade) os sentidos da palavra divina (“Capítulo 4, versículo 3”); o momento dos testemunhos das almas que se perderam para o diabo, com resultados trágicos (“Tô ouvindo alguém me chamar” e “Rapaz comum”); intermezzo musical para velar aquelas mortes, interrompido por tiros que fazem recomeçar o ciclo; a pregação ou mensagem central (massacre do Carandiru) que liga o destino daqueles sujeitos ao de toda a comunidade (“Diário de um detento”), chave de compreensão do destino de todos e descrição do próprio inferno; exemplos do modo de atuação do diabo no interior da comunidade (“Periferia é periferia”); exemplos do modo de atuação do diabo fora da comunidade (“Qual mentira vou acreditar”). Ao final, um momento de autorreflexão sobre os limites da própria palavra enunciada (“Mágico de Oz” e “Fórmula mágica da paz”) e os agradecimentos a todos os presentes, verdadeiros portadores da centelha divina (“Salve”).
A presença do diabo como elemento de tentações e desvios de conduta decorre principalmente da presença massiva dos signos do cristianismo nas periferias e, por conseguinte, nos raps dos Racionais MC’s. O engajamento cultural e estético das letras do grupo transforma-se em militância e profetização, e o discurso poético, na munição contra o sistema capitalista opressor, o próprio demônio. Adverte, por exemplo, Mano Brown:
Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor
Pelo rádio, jornal, revista e outdoor
Te oferece dinheiro, conversa com calma
Contamina seu caráter, rouba sua alma
Depois te joga na merda, sozinho
Transforma um preto tipo A num neguinho
Minha palavra alivia sua dor, ilumina minha alma
Louvado seja o meu Senhor
Que não deixa o mano aqui desandar
E nem sentar o dedo em nenhum pilantra
Mas que nenhum filha da puta ignore a minha lei
Racionais, capítulo 4, versículo 3
A presença do divino como proteção, no entanto, não garante a sobrevivência nesse inferno periférico, visto que o sistema capitalista é encarado como verdadeiro culpado por tamanhas tentações. As provocações consumistas do mundo materialista mostram aos negros que o capitalismo é branco: há controle e poder sobre os moradores de periferia, visto que eles não podem consumir como os demais. Os órgãos repressivos como a polícia, o governo, as prisões e a mídia estão todos sob controle dos brancos, consequentemente dos ricos. Aos indivíduos pretos da periferia não é permitido sair dali, livrar-se da marginalização à qual parecem fadados. A força de trabalho dos negros também é mal remunerada, perpetuando os laços de dependência. Para as cadeias, devem ir aqueles que transgridem as leis criadas por brancos que ignoram o modo de vida cruel e bárbaro de periferias violentas.
Assim sendo, percebe-se evidentemente como o rap dos Racionais MC’s é um revide contra uma situação de desamparo e carência material, afetiva e educacional entre a população da periferia. As letras revelam uma memória coletiva da população negra, uma voz conjunta que, apesar dos lamentos, também celebra a vida – afinal, estão sobrevivendo a esse inferno. Trata-se de uma memória de testemunho: os eventos que marcam as vivências dos cantores transformam-se na essência dos raps. A vida dos personagens que os músicos conheceram com riqueza de detalhes transmuta-se em narrativas poéticas.
A denúncia contra o racismo, mais do que uma missão, torna-se também uma possibilidade para se entender e reconhecer suas raízes, celebrando-se a existência negra em um país tão injusto com os afro-brasileiros.
A forma de revide violento é, frequentemente, substituída nas letras pela autoconsciência e a autovalorização. O valor do estudo, a distância do universo do tráfico e do consumo de drogas, a sabedoria pragmática das ruas: trata-se da aplicação de uma malandragem que só o ambiente da periferia chancela aos sobreviventes desse inferno. Para os de fora da periferia, ali é exclusivamente o ambiente de violência. Mas ela, na verdade, vem de fora e ali, na escassez, encontra terreno fértil, tomando conta da vida dos negros, cujas condições precárias os tornam mais vulneráveis. Assim, a maior reação violenta contra o sistema seria sobreviver a ele, intimidá-lo com a sabedoria das ruas, mantendo distância de tudo aquilo que perpetuaria a escravidão ou submissão aos brancos ricos:
EDI ROCK
Queria atrasar o meu relógio
Pra mim vale muito um minuto a mais de ódio
Mas me sinto fraco, indefeso, desprotegido
Eu vou mais alto, cuzão, pra te levar comigo
Vou ser um encosto na sua vida
Você criou um monstro sem cura, sem alternativa
Me enganar pra quê?
Se o fim é virar pó
Fiquei muito pior
Segura o seu B.O.
O preto aqui não tem dó
Mais uma vida desperdiçada e é só
Uma bala vale por uma vida do meu povo
No pente tem quinze, sempre há menos no morro
E então?
Quantos manos iguais a mim se foram?
Preto, preto, pobre, cuidado, socorro!
Que que pega aqui? Que que acontece ali?
Vejo isso frequentemente, desde moleque
Quinze de idade já era o bastante, então
Treta no baile, então, tiros de monte
Morte nem se fala
Eu vejo um cara agonizando
ICE BLUE
Chame a ambulância! Alguém chame a ambulância!
EDI ROCK
Depois ficava sabendo na semana
Que dois já era
Os preto sempre teve fama
No jornal, revista, TV se vê
Morte aqui é natural, é comum de se ver
Caralho! Não quero ter que achar normal
Ver um mano meu coberto com jornal
É mal, cotidiano suicida
Quem entra tem passagem só pra ida
Me diga, me diga
ICE BLUE
Que adianto isso faz?
EDI ROCK
Me diga, me diga
Que vantagem isso traz?
Então, a fronteira entre o céu e o inferno tá na sua mão
Nove milímetros de ferro
Cuzão! Otário! Que porra é você?
Olha no espelho e tenta entender
A arma é uma isca pra fisgar
Você não é polícia pra matar
É como uma bola de neve
Morre um, dois, três, quatro
Morre mais um em breve
Sinto na pele, me vejo entrando em cena
Tomando tiro igual filme de cinema
Já que as ruas não são ficcionais, e já que as balas e a crueldade da realidade violenta não são nada cinematográficas, os Racionais MC’s polemizam exatamente sobre esse círculo de violência que estrutura o cotidiano da periferia e da cidade como um todo. No entanto, ao invés de fazer condenações sumárias, as canções buscam entender as causas complexas e os pontos de vista que permeiam esse organismo alimentado pela miséria: a criminalidade e o tráfico de drogas são estimulados pela pobreza, que por sua vez decorre do desemprego e das baixas remunerações, os quais se relacionam com a permanência dos indivíduos em locais pobres como as favelas. Dessa maneira, as favelas começam a concentrar uma grande parcela da população insatisfeita e excluída, composta majoritariamente por indivíduos pretos e pardos, impossibilitados de ascender socialmente, esquecidos pelo poder público, desconsiderados pela sociedade. Duas canções em especial aludem à perspectiva do criminoso sobre as vivências nesse submundo violento, “Tô ouvindo alguém me chamar” e “Diário de um detento”, a última partindo, como explicado pelo próprio Mano Brown, da escrita e das vivências de um presidiário no Carandiru em São Paulo.
Na letra de “Tô ouvindo alguém me chamar”, a voz de um bandido iniciado no crime por um personagem apelidado de Guina enuncia seus delírios antes de morrer, após ser baleado. Guina foi o “professor no crime” que tinha “só moto nervosa, só mina da hora, só roupa da moda”, e para o narrador foi aquele sujeito sangue-frio que lhe mostrou como colocar o sistema a seus pés, usando o cano de uma arma. A violência praticada por ele e Guina é manifestada como uma forma vingativa de se livrar das mazelas passadas na infância e do preconceito sofrido na vida adulta. Caso alguém reagisse aos assaltos, era baleado sem piedade, pois esse modo de ação de Guina rendia dinheiro e lhes possibilitava a fuga. Ao final, será essa mesma intemperança que fará Guina, já preso, mandar assassinar o ex-parceiro, acusando-o de tê-lo delatado. A arma usada pelos assassinos é a mesma que o narrador deu ao Guina. Entre as promessas de que vai sair da vida do crime, de que vai mudar, vêm os relatos de um cotidiano marcado pela imposição a partir da arbitrariedade violenta: se não tenho, tomo para mim; se recusam, atiro. Enquanto seu irmão se forma em Direito e compõe uma família, o narrador dá desgosto aos pais, sai de casa e tenta se virar assaltando vários estabelecimentos.
MANO BROWN
Lembro que um dia o Guina me falou
Que não sabia bem o que era amor
Falava quando era criança
Uma mistura de ódio, frustração e dor
De como era humilhante ir pra escola
Usando a roupa dada de esmola
E ter um pai inútil, digno de dó
Mais um bêbado, filha da puta e só
Sempre a mesma merda, todo dia igual
Sem feliz aniversário, Páscoa ou Natal
Longe dos cadernos, bem depois
A primeira mulher e o vinte e dois
Prestou vestibular no assalto do busão
Numa agência bancária se formou ladrão
Não, não se sente mais inferior
Aí, neguinho, agora eu tenho o meu valor
Guina, eu tinha mó admiração, ó
Considerava mais do que meu próprio irmão, ó
Ele tinha um certo dom pra comandar
Tipo linha de frente em qualquer lugar
Tipo condição de ocupar um cargo bom e tal
Talvez em uma multinacional
É foda
Pensando bem, que desperdício
Aqui na área acontece muito disso
Inteligência e personalidade
Mofando atrás da porra de uma grade
Eu só queria ter moral e mais nada
Mostrar pro meu irmão
Pros cara da quebrada
Uma caranga e uma mina de esquema
Algum dinheiro resolvia o meu problema
Que que eu tô fazendo aqui?
Meu tênis sujo de sangue, aquele cara no chão
Uma criança chorando, eu com um revólver na mão
Ou era um quadro do terror, e eu que fui o autor
Agora é tarde, eu já não podia mais
Parar com tudo, nem tentar voltar atrás
Mas no fundo, mano, eu sabia
Que essa porra ia zoar a minha vida um dia
Ao invés de utilizar uma estratégia simplista de condenar o criminoso, porque fatalmente ele morrerá ou será preso, as letras dos Racionais MC’s tentam debater as causas e consequências que levam os indivíduos a praticarem furtos e a matarem. Talentos desperdiçados em meio à falta de oportunidades, humilhação decorrente da pobreza e racismo por causa da cor da pele negra são motivações recorrentes nas letras. Ao invés da enumeração de ações violentas, o que se encontra nas canções são narrativas testemunhais contundentes que exploram as adversidades enfrentadas por homens e mulheres de baixa instrução escolar à mercê de um sistema racista que jamais lhes dará uma oportunidade. A articulação crítica desses fatos parte de análises que envolvem a ausência de afetividade na infância, a prática da violência por parte das camadas altas em relação às baixas, a dificuldade de conviver com as demandas materialistas geradas por um sistema capitalista que segrega ao invés de integrar, a partir do elitismo do consumo.
É importante ressaltar que nos anos 1990, paralelamente ao reconhecimento social do poder de conscientização e potencial político do rap que emanava das periferias, ocorria um encarceramento em massa da população negra no Brasil. As letras de Sobrevivendo no inferno vão explorar essa trágica destinação social dos afro-brasileiros e pardos no país.
O ambiente da criminalidade é um dos maiores redutos daqueles indivíduos mercantilizados, coisificados pelo sistema de consumo que os aliena. A sedução exercida pelo tráfico e a ausência de expectativas de melhora econômica tornam-se fatais. Nota-se como o rap narra a criminalidade não de modo imparcial, mas de forma complexa. Os Racionais MC’s sabem
bem que o rap transforma vidas, possibilitando novas perspectivas que dão voz àqueles cujos discursos não aparecem ou são desconsiderados.
Isso ocorre exemplarmente na música “Diário de um detento”, uma parceria entre Mano Brown e Jocenir, um detento que narra o dia que antecede a chacina praticada por policiais contra os presos no episódio que ficou conhecido como Massacre do Carandiru, em 02 de outubro de 1992. Mano Brown menciona também muitas cartas recebidas dos detentos como base para a criação da letra, mas a autoria é atribuída aos dois. A letra constrói-se a partir da ansiedade que toma conta dos pavilhões momentos antes da polícia reprimir uma rebelião entre os presos, seguindo-se o clímax com o assassinato dos detentos e o dia posterior, com o sangue, os cadáveres e as imagens de terror. A narrativa presente em “Diário de um detento” relata a angústia de quem se considera um sobrevivente, mais um em meio ao inferno na terra:
MANO BROWN
Aqui estou mais um dia
Sob o olhar sanguinário do vigia
Você não sabe como é caminhar
Com a cabeça na mira de uma HK
Metralhadora alemã ou de Israel
Estraçalha ladrão que nem papel
Na muralha, em pé, mais um cidadão José
Servindo um Estado, um PM bom
Passa fome, metido a Charles Bronson
Ele sabe o que eu desejo
Sabe o que eu penso
O dia tá chuvoso, o clima tá tenso
Vários tentaram fugir, eu também quero
Mas de um a cem, a minha chance é zero
As irônicas referências a HK e a Charles Bronson ajudam a satirizar a oposição que há entre detentos e o policial,
o “cidadão José”, já que, de acordo com a perspectiva do preso, trata-se de mais um igual aos detentos, todos enjaulados e uniformizados. A diferença está na posição que ocupam: o condenado é constantemente um alvo a ser vigiado até o momento certo de ser abatido. A voz poética prossegue:
MANO BROWN
Tirei um dia a menos, ou um dia a mais, sei lá
Tanto faz, os dias são iguais
Acendo um cigarro e vejo o dia passar
Mato o tempo pra ele não me matar
A rotina repetitiva do presídio envolve de tal maneira o cotidiano do detento que passa a não fazer mais diferença quanto mais cumprirá de pena. No íntimo, ele sabe que será exterminado pelo sistema, mais cedo ou mais tarde. Aqui é importante ressaltar que não há glorificação da criminalidade na letra, tampouco amenização de culpabilidades em relação aos presos. Trata-se, sim, de um relato que expõe a crueza e abandono daqueles que estão em situação carcerária:
MANO BROWN
Cada detento, uma mãe, uma crença
Cada crime, uma sentença
Cada sentença, um motivo, uma história
De lágrima, sangue, vidas e glórias
Abandono, miséria, ódio, sofrimento
Desprezo, desilusão, ação do tempo
Misture bem essa química
Pronto: eis um novo detento
Lamentos no corredor, na cela, no pátio
Ao redor do campo, em todos os cantos
Mas eu conheço o sistema, meu irmão
Aqui não tem santo
Ratatatá, preciso evitar
Que um safado faça minha mãe chorar
Minha palavra de honra me protege
Pra viver no país das calças bege
Enquanto os códigos de conduta e honra protegem aqueles que seguem o proceder no “país das calças bege” – uma alusão ao uniforme penitenciário –, os criminosos, principalmente os estupradores, dentro do próprio sistema carcerário, recebem punições, relata o detento. Ecoando o barulho dos trilhos do metrô que passa defronte ao presídio e as rajadas de armas que permeiam o imaginário dos detentos, a voz poética reflete sobre as desigualdades que fortalecem a marginalização dos presos:
MANO BROWN
Ratatatá, mais um metrô vai passar
Com gente de bem, apressada, católica
Lendo jornal, satisfeita, hipócrita
Com raiva por dentro, a caminho do centro
Olhando pra cá, curiosos, é lógico
Não, não é, não, não é o zoológico
Minha vida não tem tanto valor
Quanto seu celular, seu computador
O mundo da criminalidade não é apenas circunstancial nas letras dos Racionais MC’s, mas de fato representa uma intensa vivência que cobrará seu preço por toda a vida. Os narradores das músicas frequentemente posicionam-se ao lado dos protagonistas nas histórias descritas. Há um comprometimento de lealdade com a visão de mundo daquele indivíduo que é descrito e dramatizado pelos rappers. Porém, há também certo distanciamento crítico, para que a mensagem social que se pretende traduzir poeticamente se mantenha. Legitima-se, assim, a experiência do narrador – voz dominante – sem desgastar, por meio da inverossimilhança, os personagens descritos. Há, portanto, a busca de uma verdade documental, mesmo quando permeada pela subjetividade do enunciador:
MANO BROWN
Aí, moleque, me diz, então: cê quer o quê?
A vaga tá lá esperando você
Pega todos seus artigo importado
Seu currículo no crime e limpa o rabo
A vida bandida é sem futuro
Sua cara fica branca desse lado do muro
Já ouviu falar de Lúcifer?
Que veio do inferno com moral?
Um dia no Carandiru, não ele é só mais um
Comendo rango azedo com pneumonia
Enfim, quando o relato chega ao dia dois de outubro, o clímax se inicia com a descrição de calafrios, barulhos e fumaça nas celas, balbúrdia por causa de presos revoltosos que não teriam nada a perder. As metáforas utilizadas são fortes como a experiência de passar pelo massacre no Carandiru. Não há eufemismos nem meias palavras, mas terror instaurado em um discurso que mescla sarcásticas alusões ao governador de São Paulo na época, Luiz Antonio Fleury Filho, aos meios de comunicação de massa e, novamente, ao “ratatatá” como onomatopeia agora relacionada à rajada das metralhadoras que ceifaram a vida dos presos, muitos réus primários:
MANO BROWN
Era a brecha que o sistema queria
Avise o IML, chegou o grande dia
Depende do sim ou não de um só homem
Que prefere ser neutro pelo telefone
Ratatatá, caviar e champanhe
Fleury foi almoçar, que se foda a minha mãe
Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo
Quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio
O ser humano é descartável no Brasil
Como modess usado ou bombril
Cadeia guarda o que o sistema não quis
Esconde o que a novela não diz
Ratatatá, sangue jorra como água
Do ouvido, da boca e nariz
O Senhor é meu pastor, perdoe o que seu filho fez
Morreu de bruços no Salmo 23
Sem padre, sem repórter
Sem arma, sem socorro
Vai pegar HIV na boca do cachorro
Cadáveres no poço, no pátio interno
Adolf Hitler sorri no inferno
O Robocop do governo é frio, não sente pena
Só ódio, e ri como a hiena
Ratatatá, Fleury e sua gangue
Vão nadar numa piscina de sangue
Mas quem vai acreditar no meu depoimento?
Dia três de outubro, diário de um detento
A antecipação da contestação em relação à veracidade do relato denota a descrença da sociedade na recuperação dos marginalizados – quem vai acreditar no depoimento de um detento que odeia policiais e pretende fugir da cadeia? –,
trazendo à tona também a trágica destinação dos presos reincidirem na criminalidade. O Massacre do Carandiru, ocorrido no Pavilhão 9, entra para a história brasileira, segundo a canção, como um conveniente extermínio de pessoas que o sistema social se nega a aceitar de volta. O robocop implacável do governo, programado para matar, o nazista Hitler gargalhando com o sangue derramado, o HIV na boca do cachorro são imagens tão alucinantes e agressivas quanto poderia ser estar presente na penitenciária nesse dia. Se a “cadeia guarda o que o sistema não quis” e “esconde o que a novela não diz”, mortes de presos são comemoradas pelo governo, não lamentadas. Morrer de bruços no Salmo 23 demonstra que não há redenção para o presidiário, já que o pastor – o protetor, o salvador –, que deveria guardar o detento, está ausente.
Esse rap faz uma fotografia do desprezo que a classe média e a elite brasileira nutrem pelos marginalizados, sem perceber que alimentam a continuidade da criminalidade. Ao denunciar o Massacre do Carandiru, recorrendo ao olhar testemunhal de um detento, os Racionais MC’s almejam propor uma nova narrativa que se contrapõe ao discurso oficial de controle da lei e manutenção da ordem, que autorizou o batalhão militar a entrar no presídio para conter o motim – a chacina foi bem-sucedida. O “ratatatá” das linhas de metrô continuaria ainda durante algum tempo, até que o presídio fosse desativado e demolido, mas essa canção deixou marcada na história recente do país as rajadas de balas que ceifaram vidas de indivíduos que a “gente de bem” com “raiva por dentro” invisibiliza e prefere eliminada “numa piscina de sangue”.
O teor de violência presente em outra canção, “Mágico de Oz”, também visa ao incômodo do interlocutor, mas dessa vez voltando-se para o universo infantil, narrando o cotidiano das crianças que vivem nas ruas e se viciam em crack. A voz de uma criança enuncia como começou a usar a droga para se esquecer dos problemas, além de querer um mundo onde não houvesse droga, fome ou policiais. Com seu instinto de sobrevivência, envolve-se com prostitutas, traficantes e prossegue a jornada de habitar as ruas de grandes centros urbanos, observando os exemplos que tem diante de si:
EDI ROCK
Moleque novo que não passa dos doze
Já viu, viveu, mais que muito homem de hoje
Vira a esquina e para em frente a uma vitrine
Se vê, se imagina na vida do crime
Dizem que quem quer segue o caminho certo
Ele se espelha em quem tá mais perto
Pelo reflexo do vidro ele vê
Seu sonho no chão se retorcer
Ninguém liga pro moleque tendo um ataque
Foda-se quem morrer dessa porra de crack
Relaciona os fatos com seu sonho
Poderia ser eu no seu lugar?
Das duas, uma: eu não quero desandar
Por aqueles mano que trouxeram essa porra pra cá
Matando os outros em troca de dinheiro e fama
Grana suja, como vem, vai, não me engana
Queria que Deus ouvisse a minha voz
E transformasse aqui no mundo mágico de Oz
A polícia torna-se a antítese da segurança, pois, além de ser corrompida pelo dinheiro gerado pelo tráfico de drogas, estimula a violência mostrando-se agressiva e arbitrária, tornando-se a materialização de uma lei punitiva contra negros e fracos, mas tolerante com aqueles que lhes suborna:
EDI ROCK
Rezei pra um moleque que pediu:
“Qualquer trocado, qualquer moeda. Me ajuda, tio”
Pra mim não faz falta, uma moeda não neguei
E não quero saber… O que que pega se eu errei?
Independente, a minha parte eu fiz
Tirei um sorriso ingênuo, fiquei um terço feliz
Se diz que moleque de rua rouba
O governo, a polícia no Brasil, quem não rouba?
Ele só não tem diploma pra roubar
Ele não se esconde atrás de uma farda suja
É tudo uma questão de reflexão, irmão
É uma questão de pensar
A polícia sempre dá o mau exemplo
Lava minha rua de sangue, leva o ódio pra dentro
Pra dentro de cada canto da cidade
Pra cima dos quatro extremos da simplicidade
A minha liberdade foi roubada
Minha dignidade, violentada
Que nada
Os manos se ligar
Parar de se matar, amaldiçoar
Levar pra longe daqui essa porra
Não quero que um filho meu um dia (Deus me livre!) morra
Ou um parente meu acabe com um tiro na boca
É preciso eu morrer pra Deus ouvir minha voz
Ou transformar aqui no mundo mágico de Oz
As instituições de poder, como o governo e a polícia, ao invés de darem o exemplo de cordialidade e justiça, de proteção aos mais necessitados, perpetuam-se, na visão do rap, como a força que oprime os fracos. Assim, o poder das letras dos Racionais MC’s emana da concretização do imaginário coletivo da periferia, a partir de uma construção poética que privilegia a perspectiva daqueles que, ao invés de se autossabotarem e se destruírem, conforme determina o sistema excludente no qual sobrevivem, procuram fortalecer-se pela consciência crítica. O “mundo mágico de Oz”, inalcançável para a criança a quem a voz narrativa ajuda com alguns trocados, contrariando a ordem social de que não se deve dar dinheiro aos pedintes, não seria destituído apenas de violência, mas principalmente daqueles que a perpetuam, pois lucram com ela. O rapper adverte que os manos devem parar de se matar, pois é esse o objetivo do sistema construído por ricos que têm diploma para roubar – eles, sim, os verdadeiros genocidas.
A polícia não é vista como apenas uma inimiga, mas como um obstáculo ao engrandecimento do movimento negro, aos conjuntos ativos de moradores das favelas que desenvolvem um olhar crítico sobre seu lugar na sociedade, assim como o rap faz nas periferias. No mundo “mágico de Oz”, não haveria desigualdade, portanto, excluem-se as drogas e a força policial, o tráfico e o suborno, a injustiça que se prolifera pela ação corrupta e abusiva daqueles que exterminam os pobres, seres descartáveis em um mundo no qual a pobreza é sujeira, e as crianças de rua cujos reflexos distorcidos nas vitrines de lojas caras são apenas um breve incômodo – se o crack levá-las embora, economiza-se o trabalho e
o desconforto.
Em suas canções, os Racionais MC’s deixam manifesto o profundo orgulho das suas origens afrodescendentes, além de enaltecer, sempre que possível, a lealdade com os irmãos da quebrada, cuja etnia e histórico de pobreza compartilham. Os manos são assim denominados não ao acaso: indica-se com tal identificação uma explícita intenção de igualdade.
A psicanalista Maria Rita Kehl atenta para um sentimento de fratria, de irmandade por assim dizer, que visa a construir um campo de identificações horizontais, que se contrapõe de imediato aos modos de identificação verticais, bem comuns em estruturas sociais marcadas pela proeminência de líderes e ídolos. Inversamente, o discurso dos Racionais MC’s promove um apelo ao semelhante, ao irmão, ao parceiro da quebrada, aos 50 mil manos, pois juntos tornam-se mais fortes. A esperteza e consciência de todos evita que o pobre siga o caminho de submissão determinado aos negros e pobres. Ironizando a inveja e a pilantragem dos bandidos, o grupo de rap enfatiza o poder de inclusão, pois são todos vítimas da mesma discriminação e da mesma falta de oportunidades:
O real é a matéria bruta do dia a dia da periferia, é a matéria a ser simbolizada nas letras do rap. Uma tarefa que, como todo trabalho de simbolização, depende de um trabalho de criação de linguagem que só pode ser coletivo. É como se os poetas do rap fossem as caixas de ressonância, para o mundo, de uma língua que se reinventa diariamente para enfrentar o real da morte e da miséria; por isso eles não deixam a favela, não negam a origem.
Em “Qual mentira vou acreditar”, por exemplo, Edi Rock vai narrando as expectativas sobre a noite de curtição enquanto descreve a típica abordagem policial que os negros da periferia têm que enfrentar diariamente, provando que os manos já devem saber como agir, uma vez que todos participam do mesmo contexto:
EDI ROCK
Tô devagar, tô a cinquenta por hora
Ouvindo funk do bom, minha trilha sonora
A polícia cresce o olho, eu quero que se foda
Zona Norte, a bandidagem curte a noite toda
Eu me formei suspeito profissional
Bacharel, pós-graduado em tomar geral
Eu tenho um manual com os lugares, horários
De como dar perdido
(sirene de polícia)
[OUTRO]
Ai, carai
(voz de policial)
Prefixo da placa é eme ípsilon
Sentido Jaçanã, Jardim Hebrom
EDI ROCK
Quem é preto como eu já tá ligado qual é
Nota fiscal, RG, polícia no pé
(voz de policial)
Escuta aqui…
O primo do cunhado do meu genro é mestiço
Racismo não existe, comigo não tem disso
É pra sua segurança…
EDI ROCK
Falô, falô, deixa pra lá
Vou escolher em qual mentira vou acreditar
As letras dos Racionais MC’s convocam os ouvintes a não se acostumarem com o cotidiano violento em que estão imersos, pregando a insatisfação como atitude de vida. O revide a partir de um discurso que transforma o ódio em força de conscientização é resultado da internalização da violência, a qual alicerça todo um sistema social que transforma os humanos em mercadoria descartável. Ao invés da conciliação de classes e da cordialidade, os Racionais MC’s propõem o desmonte desse sistema e provocam a reflexão acerca do senso de justiça. Se o sistema capitalista oferece conforto material, por que ele não pode oferecer isso aos negros da periferia? Se a justiça visa ao benefício do cidadão, por que os pobres são tratados de maneira desigual? Se o Brasil é um país mestiço, por que morrem mais negros e os afro-brasileiros são tão desprezados? Assim canta Mano Brown em “Fórmula mágica da paz”:
Essa porra é um campo minado
Quantas vezes eu pensei em me jogar daqui?
Mas, aí, minha área é tudo o que eu tenho
A minha vida é aqui e eu não consigo sair
É muito fácil fugir, mas eu não vou
Não vou trair quem eu fui, quem eu sou
Eu gosto de onde eu tô e de onde eu vim
O ensinamento da favela foi muito bom pra mim
[…]
Então, como eu tava dizendo, sangue bom
Isso não é sermão, ouve aí, tem o dom?
Eu sei como é que é
É foda, parceiro
É... a maldade na cabeça o dia inteiro
Nada de roupa, nada de carro, sem emprego
Não tem ibope, não tem rolê, sem dinheiro
Sendo assim, sem chance, sem mulher
Você sabe muito bem o que ela quer
Encontre uma de caráter se você puder
O registro da enunciação de uma testemunha nesse rap ampara o relato biográfico e poético de quem nunca desfrutou de lazer e conforto material em seu cotidiano, sendo tentado pela criminalidade para alcançar status e algum tipo de posses materiais. Em meio à precariedade da vida na periferia, as diversas vozes que executam as músicas dos Racionais MC’s parecem buscar continuamente a realização de um projeto de vida que parece estar sempre distante. Superar a violência parece impossível, mas se tenta ao menos observá-la a partir de um ponto de vista particular e social, testemunhal, chamando a atenção para a destinação dos pobres massacrados pela exclusão social. Segue-se um dos trechos mais líricos de Sobrevivendo no inferno, dada a força de síntese de um desabafo transmutado em poesia urbana, com alusões metafóricas profundas acerca da própria noção da existência nos infernos periféricos da sociedade:
MANO BROWN
Ninguém é mais que ninguém, absolutamente
Aqui quem fala é mais um sobrevivente
Eu era só um moleque, só pensava em dançar
Cabelo black e tênis All Star
Na roda da função mó zoeira
Tomando vinho seco em volta da fogueira
A noite inteira, só contando história
Sobre o crime, sobre as treta na escola
Eu não tava nem aí, nem levava nada a sério
Admirava os ladrão e os malandro mais velho
Mas se liga, olhe ao seu redor e me diga
O que melhorou? Da função, quem sobrou?
Sei lá, muito velório rolou de lá pra cá
Qual a próxima mãe que vai chorar?
Há, demorô!
Mas hoje eu posso compreender
Que malandragem de verdade é viver
Agradeço a Deus, aos orixás
Parei no meio do caminho e olhei pra trás
Meus outros manos todos foram longe demais
Cemitério São Luiz, aqui jaz
Os outros que foram “longe demais”, que não entenderam a lição de que a malandragem está na manutenção da sobrevivência, servem de base para a criação dos raps, menos como exemplos e mais como experiências concretas transmutadas em poesia épica, que narra a força da vida de onde tudo parece conspirar para a morte e decadência:
as favelas. Escreve Acauam Silvério de Oliveira sobre a desconstrução desencadeada pelas músicas dos Racionais MC’s no cancioneiro popular brasileiro:
Conscientização e sobrevivência: dois momentos de uma mesma tarefa histórica a que o rap se propõe, posto que a condição da sobrevivência é a conscientização, e a validade desta é medida pelo grau de contribuição efetiva que oferece aos sujeitos em sua luta cotidiana. Só sobrevive no inferno quem conhece seu jogo, as artimanhas do demônio, e não cai em suas garras. Boa parte da força dos Racionais consiste na nomeação precisa das muitas encarnações do demo, assim como na compreensão precisa do alcance de seu poder de persuasão.
A afirmação da liberdade, segundo cantada por Mano Brown, torna-se uma espécie de revide sarcástico contra o sistema genocida que aliena os pobres, extermina os presidiários e mata os negros, condenando-os às periferias precárias. A “fórmula mágica da paz” é sobreviver e manter-se lúcido em meio ao inferno, enquanto os que fraquejam são engolidos pelo crime e pelo sistema judicial, que aprisiona os negros em massa. A “fórmula” é única, mas serve de referendo aos ouvintes porque diz respeito ao testemunho de quem sobrevive a todas as tentações que encurtariam a existência de negros pobres. A força dos aliados, a conduta honesta em meio à trairagem, o respeito às quebradas e ao contexto de cada espaço social são pistas de um código de ética erigido com base no pragmatismo de quem vê diariamente esse inferno de perto:
MANO BROWN
Uma pá de mano preso chora a solidão
Uma pá de mano solto sem disposição
Empenhorando por aí rádio, tênis, calça
Acende no cachimbo, virou fumaça
Não é por nada, não, mas aí, nem me liga, ó
A minha liberdade eu curto bem melhor
Eu não tô nem aí pra o que os outros fala
Quatro, cinco, seis preto num Opala
Pode vim, gambé, paga pau, tô na minha, na moral
Na maior, sem goró, sem pacau, sem pó
Eu tô ligeiro, eu tenho a minha regra
Não sou pedreiro, não fumo pedra
Um rolê com os aliado já me faz feliz
Respeito mútuo é a chave, é o que eu sempre quis
Procure a sua, a minha eu vou atrás
Até mais, da fórmula mágica da paz
Enquanto traficantes e policiais parecem cumprir a função de ceifar vidas e estabelecer um poder paralelo às leis comuns, segundo denunciam as letras, a população carente se vê sem lugar de apoio. As igrejas apinhadas, levando em consideração o contexto religioso da renovação carismática no período histórico do lançamento do álbum, cumprem esse papel. A formação de quadrilhas de aliados também, já que os grupos de rap quase sempre contam com o apoio de diversos manos trutas de batalha. E assim se estabelecem organizações sociais paralelas ao Estado, esse sim incapaz de suportar os indivíduos carentes, inábil que é, segundo apontam as letras, até em esconder o racismo declarado contra os afro-brasileiros. A letra de “Fórmula mágica da paz”, como um fechamento grandiloquente para o álbum dos Racionais MC’s, antes do “Salve” final às comunidades parceiras, é estratégica por causa do desabafo ideológico de uma voz que se confessa confusa e vacilante diante de tamanhas contradições, subjetivas e sociais. A riqueza dessa canção decorre da total relativização da violência e dos pontos de vista que tentam entendê-la, mais do que simplesmente recebê-la passivamente:
MANO BROWN
Porra, eu tô confuso, preciso pensar
Me dá um tempo pra eu raciocinar
Eu já não sei distinguir quem tá errado, sei lá
Minha ideologia enfraqueceu
Preto, branco, polícia, ladrão ou eu?
Quem é mais filha da puta, eu não sei
Aí fudeu, fudeu
Decepção essas hora
A depressão quer me pegar, vou sair fora
Dois de novembro, era Finados
Eu parei em frente ao São Luiz do outro lado
E durante uma meia hora olhei um por um
E o que todas as senhoras tinham em comum?
A roupa humilde, a pele escura
O rosto abatido pela vida dura
Colocando flores sobre a sepultura
Podia ser a minha mãe
ICE BLUE
Aos sujeitos periféricos, sejam eles bandidos ou meninos de rua, habitantes das favelas ou moradores das ruas, o rap oferece novos entendimentos acerca da violência que estrutura uma sociedade desigual como a brasileira, além de propor novas formas de sobrevivência. A voz poética dos Racionais MC’s se posiciona ao lado dos marginais, entendendo tal estratégia como algo pensado justamente para oferecer uma inovadora perspectiva sobre a composição étnica e social do Brasil. Isso não significa se confundir com o marginal, pelo contrário. Desalojado dos espaços de poder, o rapper não se coloca como o bandido, mas como o “terrorista da periferia” que contraria as estatísticas, pois não foi encarcerado ou morto antes dos vinte e sete anos. A favela, as periferias e todo espaço de exclusão devem ser ambientes de união e conscientização: essa é a mensagem das canções.
Os Racionais MC’s se mostram, dessa forma, como pensadores urbanos, pois propõem, ao invés da raiva ostensiva e do ódio desgovernado, a estratégia de traçar metas de sobrevivência inteligentes em meio ao caos e condenação social. Chegando ao poder midiático por vias alternativas, alcançando o sucesso financeiro às custas do esforço e da labuta artística, paralela aos grandes circuitos da chamada “alta” cultura, eles promovem uma exemplar atitude de como as mentes dos marginalizados podem ser potentes e revolucionar a sociedade.
As canções presentes em Sobrevivendo no inferno oferecem ferramentas discursivas e filosóficas tanto para criticar o sistema, acusando-o de genocida contra os negros, como também para ajudar a repensar as estruturas de poder que inferiorizam os pobres no Brasil. As letras traduzem o baixo calão grosseiro das ruas em palavras de poder e conscientização.
Os palavrões se mostram mais como ênfase ao desabafo diante das incertezas e desigualdades que se abatem contra os negros pobres do país do que como mero exercício de agressão linguística gratuita. O desconforto traduzido em poemas narrativos cantados com a revolta de quem vem das ruas e busca entender o funcionamento dos mecanismos sociais pretende isso mesmo: tirar o espectador do comodismo.
Mais do que se sensibilizar com as crianças de rua viciadas em crack, mais do que se revoltar com a chacina dos presos pela força arbitrária do Estado, ou simplesmente mais do que entender como é vivenciar experiências de perda e luto promovidas pela violência do tráfico de drogas, os raps dos Racionais MC’s desestabilizam “seu sistema nervoso e sanguíneo”, oferecendo um quadro poético onde se ouvem vozes que se cruzam em múltiplos sentidos, mas nunca se contradizem, porque todas são válidas. Registro coletivo da violência que permeia o ambiente urbano brasileiro, seguindo o discurso e o olhar daqueles que até então eram sumariamente silenciados e desconsiderados, Sobrevivendo no inferno é capaz de construir testemunhos de força poética e narrativa que, ao invés de simplesmente registrar as mazelas, problematiza-as com o poder criativo que só textos estéticos são capazes. Os raps dos Racionais MC’s provam que a malandragem de verdade é mais do que sobreviver ao inferno, mas tentar transformar a realidade excludente e preconceituosa, a partir do olhar sensível presente na poesia ritmada que surge das periferias e pode alcançar qualquer espaço social do país.