A escritora Lygia Fagundes Telles nasceu em 1923; viveu no interior e na capital de São Paulo, onde ainda reside. Formou-se em Direito e Educação Física, tendo exercido a advocacia por pouco tempo, tornando-se Procuradora do Estado de São Paulo. Paralelamente à carreira de Procuradora, dedicou-se a escrever romances, novelas e contos e o amadurecimento dessa atividade se dá principalmente com o romance Ciranda de Pedra (1954), aclamado por críticos como Antonio Candido. Amiga de autores como Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector e Erico Verissimo, Lygia Fagundes Telles teve nos anos 1970 uma prolífica e reconhecida produção, confirmada por obras que até hoje reverberam nos meios acadêmicos e escolares, como a coletânea de contos Antes do baile verde (1970), o romance As meninas (1973), Seminário dos ratos (1977) e Filhos pródigos (1978), conjunto de contos republicado sob o título A estrutura da bolha de sabão. Todas essas obras foram premiadas nacionalmente e internacionalmente, algumas delas adaptadas para cinema, telenovelas ou teatro, ganhando repercussão tanto entre a crítica especializada quanto entre o público leitor, principalmente os jovens.
É particularmente importante ressaltar a produção da autora nos anos 1970, não somente porque nesse contexto se encontra o conto ”Seminário dos ratos”, obra analisada neste estudo, publicada no livro de mesmo título em 1978, mas devido à fragilidade social e política que marcava a realidade brasileira durante o período da ditadura civil-militar no Brasil. Os contos reunidos nessa coletânea apresentam a complexa relação entre os homens e o lugar de poder que ocupam. Não por acaso, foram escritos e publicados durante os anos de governo do general Ernesto Geisel, quando o regime de exceção militar passava por uma distensão política, abrindo-se caminho para a redemocratização.
Circunstancialmente, os textos apresentam metáforas e alegorias que ilustram os temores diante do autoritarismo, os abusos contra os direitos civis e, mesmo, a arrogância dos poderosos e o descaso ante as necessidades populares. Não se deve limitar a interpretação das narrativas ao período ditatorial brasileiro, pois se trata de um referencial histórico diluído, principalmente no conto ”Seminário dos ratos”.
A despeito dos problemas educacionais existentes ainda hoje, Lygia sempre se declarou uma escritora comprometida com o leitor e com a arte, por isso é importante associar o conto à postura engajada da autora, não exclusivamente no sentido de somente defender posicionamentos políticos, mas, também, de abordar, com olhar nunca imparcial, as nuances sociopolíticas nacionais. Cabe relembrar um acontecimento evocado pela autora em entrevista ao Roda Viva, quando, em 1976, já bastante incomodados com a censura imposta pela ditadura, Lygia Fagundes Telles, amigos e historiadores voaram até Brasília, para entregar às autoridades um manifesto com mais de mil assinaturas de artistas, escritores e intelectuais defendendo a liberdade de expressão e pedindo o fim do cerceamento às artes e à cultura. Ela diz que não foram recebidos, o que já era esperado, mas por isso mesmo os jornalistas acabaram inevitavelmente noticiando a atitude e divulgando a demanda explicitada no manifesto.
No podcast do Jornal Nexo “Como começar a ler... Lygia Fagundes Telles”, pode-se encontrar o seguinte depoimento da autora, que confirma o engajamento que ela transpõe para suas obras:
“A compaixão com que escrevo é a compaixão pelo outro (...). A minha palavra é a única forma de atingir o meu próximo (...). Então, eu procuro fazer como que essa palavra seja uma espécie de ponte que se estende para o próximo. E eu, através dessa ponte, digo ‘Vem, até onde estou’. Se eu puder ajudar o meu próximo no seu sofrimento, no seu medo, na sua luta; que é a minha luta também, o meu medo e, também, meu sofrimento. Se eu puder ajudar o outro com a minha palavra, missão cumprida. Quando a morte olhar nos meus olhos e disser ‘Vamos’, eu estou pronta. Fiz o que pude.” (Programa apresentado no dia 16 de setembro de 2019.)
Tal fato dá mostras do comprometimento da autora com o real imediato, com o apelo social do momento. Mas o realismo que envolve as narrativas de Telles esbarra frequentemente no imaginário e no fantástico. Tal caráter alucinatório e fantasioso, quando inserido no real, ocorre precisamente para escancará-lo. O engajamento da autora, portanto, se dá no nível principalmente humano: é com a condição existencial que a autora se preocupa e, sem a contrapartida social, ela não pode ser plena.
Os acontecimentos insólitos da realidade sociopolítica observada pela autora acabam por promover a criação de narrativas que se embrenham no absurdo, como maneira de refletir sobre o presente. O mágico e o maravilhoso aparecem com frequência nas obras de Lygia Fagundes Telles, por isso muitos tentam aprisioná-la sob o rótulo de literatura fantástica, que, de todo modo, se não é propriamente um erro, talvez seja um reduto literário limitante. A autora gosta de abordar, sobretudo, o absurdo das relações humanas marcadas por crueldade, egoísmo e ausência de solidariedade, temas preponderantes no conto “Seminário dos ratos”.
O fantástico no conto “Seminário dos ratos” ocorre principalmente a partir da inversão da ordem racional ao final da narrativa, após se construírem alegorias que criam analogias com a situação no Brasil, ao longo do período do governo militar dos anos 1960-70. Há diversos pontos de contato com a realidade empírica brasileira, apesar de não haver uma determinação espacial nesse conto. A voz narrativa onisciente em terceira pessoa delineia eventos e detalhes que permitem ao leitor inferir que se trata do nosso país, situado no contexto político da América Latina tomada por regimes políticos ditatoriais.
Antecede a narrativa uma epígrafe extraída do poema “Edifício Esplendor”, de Carlos Drummond de Andrade, cuja parte final transcrevemos com negrito nos versos usados no conto:
Percebe-se que o desfecho do poema de Drummond assinala tanto as consequências da passagem do tempo quanto a inevitável decadência do edifício, que de esplendoroso nada mais tem. Dívidas, descoloração, entravamento, escuridão, silêncios: eis o que resta da edificação. Enquanto isso, os ratos deslumbram-se com o passar do século, consumindo todo o edifício, ou seja, toda vida e glamour que um dia nele existiu.
É convencional associar a imagem dos ratos tanto à peçonha quanto à destruição, mas também à doença ou a restos infectos. O rato é um roedor doméstico altamente resistente a diversos ambientes, costumeiramente habitando tocas que ele cava. Os ratos transmitem diversas doenças perigosas, como peste bubônica e leptospirose, a partir das fezes ou de seus parasitas, possui hábitos noturnos, baixa visão, mas profundo olfato e audição. Os ratos são pragas que devoram plantações, atacam silos de armazenamento de grãos, roem e danificam fiações, além de provocar danos estruturais em habitações. Por isso mesmo, o rato é um símbolo geralmente relacionado a pessoas ou atitudes negativas: chama-se de rato um traidor ou indivíduo falso, um ladrão ou malandro.
Todas essas conotações e elementos associados aos ratos vão aparecendo ao longo do conto de Lygia Fagundes, tendo em vista a própria ambiguidade explicitada no título. Por “seminário”, entende-se uma reunião de indivíduos que irá semear ideias ou propostas, ou seja, uma convenção destinada à resolução de problemas ou ao debate de determinado assunto. Acontece que o seminário, na narrativa, presta-se a debater como exterminar os ratos que tomaram conta de toda a sociedade. É um encontro de diversos políticos e burocratas pertencentes a um regime político ditatorial com a finalidade de exterminar uma praga. Mas o seminário é “dos ratos”, criando-se a intencional polissemia com a figuração pejorativa dos políticos que lá se encontram. Tal ambivalência do título vai se ampliar também no desfecho quando, por fim, haverá uma enorme invasão de ratos, que também vão se reunir naquele espaço.
Aludir a coordenadas históricas durante a narrativa é outra estratégia textual utilizada por Telles para desenvolver a significação alegórica do conto, pois diversas ironias e simbologias permeiam o enredo, de modo a promoverem a análise crítica do momento histórico da ditadura. No início, há duas personagens cujos diálogos revelarão o conflito central do enredo, o Chefe das Relações Públicas, sujeito jovem, baixo e atarracado, sorriso e olhos claros brilhantes, e o Secretário do Bem-Estar Público e Privado, homem flácido avançado em anos, calvo e suado, cujo pé esquerdo repousa descalço em um chinelo, enquanto o outro está metido em calçado formal. Desenham-se as primeiras ironias, já que, em vez dos nomes dos personagens, seus cargos burocráticos recebem maior importância. Além disso, justamente o Secretário do “Bem-Estar” sente-se profundamente incomodado por causa da dor que sente no pé, que o obriga a descalçar-se e pousar o membro dolorido numa almofada.
É informado ao Secretário, tratado como Vossa Excelência pelo Chefe das Relações Públicas, que o coquetel entre a cúpula dos burocratas reunidos naquele lugar transcorrera bem, tendo todos já se dispersado. O Assessor da RATESP, segundo informa o jovem, estaria instalado na ala norte, vizinho ao Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas, que ocupa a suíte cinzenta, diz. Enquanto isso, a Delegação Americana estava instalada no extremo oposto, na ala sul. Segue-se esse diálogo:
A menção a RATESP indica uma repartição pública possivelmente ligada a uma Secretaria do Estado de São Paulo designada para combater os ratos. Tal praga, conforme enfatiza o Secretário, é o rattus alexandrinus, que se refere ao chamado “rato preto”, bastante comum no Brasil. A despeito do nome, esse roedor pode ter várias tonalidades escuras ou acinzentadas de pelo. Os ratos pretos chegaram ao continente após o período das grandes navegações no século XVI, possuem hábitos noturnos, são onívoros, podem nadar, esconder-se em tocas e roer instintivamente madeira, tijolos, sementes ou qualquer material a todo instante, já que seus dentes incisivos nunca param de crescer. Tais roedores são verdadeiras pragas urbanas e, no conto, essa espécie comum de rato, cuja cauda pode ser maior que o próprio corpo, está assolando a nação.
O jovem que trata das Relações Públicas associa inconscientemente a cor cinza ao conservadorismo do governo e do Diretor encarregado por essa pasta do governo, o que permite ao leitor traçar paralelos com a seriedade arrogante e com a ausência de vitalidade dos tradicionalistas que comandavam o país, segundo sugerem as ironias. Em antagonismo ao tom azul pastel do Secretário, ganham aposentos rosa e vívidos os americanos, cujo propósito de frequentarem tal seminário nacional só se justifica, percebe-se, pela subserviência dos brasileiros aos norte-americanos e ao seu poder imperialista. Há um delegado de Massachusetts acompanhado de uma secretária e um ruivo de terno xadrez, supostamente um guarda-costas, e todos só se comunicam em inglês, o que parece não ser um problema ao pedante Relações Públicas, que gosta de exibir seus dons linguísticos, relembrando os países onde trabalhou. O Secretário explicita seu posicionamento ante a ajuda americana para combater os ratos, fortalecendo para o leitor a ironia que já vem sendo construída na narrativa:
“– Fui contra a indicação. Desse americano – atalhou o Secretário num tom suave mas infeliz. – Os ratos são nossos, as soluções têm que ser nossas. Por que botar todo mundo a par das nossas mazelas? Das nossas deficiências? Devíamos só mostrar o lado positivo não apenas da sociedade mas da nossa família. De nós mesmos – acrescentou apontando para o pé em cima da almofada. – Por que não apareci ainda, por quê? Porque simplesmente não quero que me vejam indisposto, de pé inchado, mancando. Amanhã calço o sapato para a instalação, de bom grado faço esse sacrifício. O senhor, que é um candidato em potencial, desde cedo precisa ir aprendendo essas coisas, moço. Mostrar só o lado positivo, só o que pode nos enaltecer. Esconder nossos chinelos.” (TELLES, ANO, p.3)
A frase “esconder nossos chinelos” torna-se bastante relevante, pois vai-se perceber, ao longo da leitura, que a pobreza dos cidadãos e a peste dos ratos vêm sendo negligenciadas pelas autoridades, encasteladas em cômodas instalações, aparentemente imunes à praga irrefreável dos roedores. A ajuda americana é vista como intromissão, mas ao mesmo tempo como necessidade, porém se devem manter as aparências. Por isso é necessário esconder a simplicidade e a humildade dos chinelos, calçado bastante usado por pessoas mais pobres, em contraste com calçados elegantes ou formais dos ricos. Formaliza-se e ensina-se a hipocrisia como estratégia política, pois o Secretário transmite ao Relações Públicas as indicações de como se deve proceder nesses casos, dizendo que ele, um dia, poderá ocupar o cargo de secretário.
O Relações Públicas diz que o americano é especialista em ratos e jornalismo eletrônico, o que deixa o Secretário ainda mais receoso. Além disso, enfatiza que há uma indagação geral devido aos gastos exagerados com a reforma do casarão escolhido para o “Seminário dos Roedores”. Foram gastos milhões para as reformas enquanto há muitos locais disponíveis – subentende-se que devido à peste dos ratos. Os jornais já noticiam tal esbanjamento, corroborando a atitude negligente e inconsequente do governo. Como sempre, o Secretário esboça repúdio a qualquer crítica:
“– Gastando milhões? Bilhões estão consumindo esses demônios, por acaso ele ignora as estatísticas? Estou apostando como é da esquerda, estou apostando. Ou então, amigo dos ratos. Enfim, não tem importância, prossiga por favor.
– Mas são essas as críticas mais severas, Excelência. Bisonhices. Ah, e aquela eterna tecla que não cansam de bater, que já estamos no VII Seminário e até agora, nada de objetivo, que a população ratal já se multiplicou sete mil vezes depois do I Seminário, que temos agora cem ratos para cada habitante, que nas favelas não são as Marias mas as ratazanas que andam de lata d’gua na cabeça – acrescentou contendo uma risadinha. –O de sempre... Não se conformam é de nos reunirmos em local retirado, que devíamos estar lá no Centro, dentro do problema. Nosso Assessor de Imprensa já esclareceu o óbvio, que este Seminário é o Quartel-General de uma verdadeira batalha! E que traçar as coordenadas de uma ação conjunta deste porte exige meditação. Lucidez. Onde poderiam os senhores trabalhar senão aqui, respirando um ar que só o campo pode oferecer? Nesta bendita solidão, em contato íntimo com a natureza... O Delegado de Massachusetts achou genial essa ideia do encontro em pleno campo. Um moço muito gentil, tão simples. Achou excelente nossa piscina térmica, Vossa Excelência sabia? Foi campeão de nado de peito, está lá se divertindo, adorou nossa água de coco! Contou-me uma coisa curiosa, que os ratos do Polo Norte têm pelos deste tamanho para aguentar o frio de trinta abaixo de zero, se guarnecem de peliças, os marotos. Podiam viver em Marte, uma saúde de ferro!” (TELLES, ANO, p.4)
Várias sugestões chamam a atenção nesse excerto. Primeiramente, a ideia de que se trata de um governo de extrema-direita, que persegue e calunia os oponentes, acusando-os principalmente de serem inimigos e, portanto, esquerdistas – note-se a comparação dos esquerdistas com os próprios ratos. Corrobora-se se tratar de uma ditadura governada por fascistas. Além disso, já é o sétimo seminário e ainda não encontraram solução para a multiplicação desenfreada dos ratos, ou seja, delineia-se a extrema incompetência ou ingerência de um governo autoritário cujo único propósito parece ser manter as regalias de seus integrantes. Há a citação à marchinha de carnaval de Candeias Junior, “Lata D‘Água”:
A marchinha assinala a dura rotina de uma mulher humilde, uma simples “Maria”, cuja rotina estafante jamais acabará, tendo em vista que o sonho da vida melhor no asfalto, na cidade, encerra-se quando o morro, a favela, começa e sua rotina de levar as latas d’água prossegue –assim tem sido a rotina dos cidadãos à mercê da “população ratal”. A risadinha do Relações Públicas também pode ser interpretada como um desprezo cínico aos atingidos pela invasão dos roedores. O isolamento do casarão não só asseguraria uma defesa ante os ratos, como também o próprio afastamento do povo das decisões importantes; logo, o autoritarismo do governo. A partir de uma associação mais abrangente, pode-se inclusive fazer uma conexão com as críticas que Brasília recebeu após a sua construção, por se tornar um centro do poder afastado das grandes cidades densamente povoadas, onde os políticos poderiam agir contra o povo, sem prejuízo de sua imagem, mantendo-se seguros.
Enquanto os burocratas desfrutam do ar do campo, a população carente sofre com a peste dos ratos. O Relações Públicas chega inclusive a dar mostras de mais uma subserviência ao imperialismo norte-americano, ao mencionar como até os ratos de lá, que vivem no frio, são mais resistentes. O casarão é reformado para camuflar a decadência do governo, por isso acaba por se tornar abrigo da hostilidade dos cidadãos revoltados. Trata-se de um reduto aconchegante e luxuoso, que protege o próprio poder: lá se pode tudo.
Repentinamente, o Secretário paralisa-se assustado diante do outro e diz ter escutado um barulho, que parece vir da terra e subir ao teto. Mostra-se preocupado em estarem sendo gravados — sua paranoia também justificaria uma contínua sensação de perseguição, o que por sua vez demandaria atitudes enérgicas diante dos oponentes, algo também comum aos governos autoritários. Ao prestar contas sobre o atraso do Assessor de Imprensa, o Relações Públicas justifica: “Nosso Assessor vai pingando o noticiário por telefone, criando suspense até o encerramento, quando virão todos num jato especial, fotógrafos, canais de televisão, correspondentes estrangeiros, uma apoteose. Finis coronat opus, o fim coroa a obra!”
A manipulação das notícias ajudaria a conter a sanha do povo revoltado com os ratos e o descaso governamental. A tática adotada abertamente pelo governo, seguindo instruções do Assessor da Presidência, é manter a imprensa o mais afastada possível, para depois influenciar na manipulação da opinião pública. Completa o Secretário: “– Boa tática, meu jovem, é influenciar no começo e no fim todos os meios de comunicação do país. Esse é o objetivo. Que já está prejudicado com esse assessor de perna quebrada.”
Depois pede ao subordinado para telefonar e plantar a falsa notícia de que os ratos já estavam sob controle. Mas sua audição apurada o faz ouvir novamente o grande barulho: “Aumenta e diminui. Olha aí, em ondas, como um mar... Agora parece um vulcão respirando, aqui perto e ao mesmo tempo tão longe! Está fugindo, olha aí... Tombou para o espaldar da poltrona exausto. Enxugou o queixo úmido. Quer dizer que o senhor não ouviu nada?”
O Chefe das Relações Públicas não consegue ouvir, apenas percebe certa agitação dos empregados no gramado. O Secretário enfatiza:
“– Pois eu escuto demais, devo ter um ouvido suplementar. Tão fino. Quando fiz a Revolução de 32 e depois, no Golpe de 64, era sempre o primeiro do grupo a pressentir qualquer anormalidade. O primeiro! Lembro que uma noite avisei meus companheiros, O inimigo está aqui com a gente, e eles riram, Bobagem, você bebeu demais, tínhamos tomado no jantar um vinho delicioso. Pois quando saímos para dormir, estávamos cercados.
O Chefe das Relações Públicas teve um olhar de suspeita para a estatueta de bronze em cima da lareira, uma opulenta mulher de olhos vendados, empunhando a espada e a balança. Estendeu a mão até a balança. Passou o dedo num dos pratos empoeirados. Olhou o dedo e limpou-o com um gesto furtivo no espaldar da poltrona.” (TELLES, ANO, p.5)
As menções históricas a 1932 e 1964, anos de tomada de poder por figuras políticas autoritárias e da instauração posterior de regimes ditatoriais, fortalecem a identificação do espaço narrativo como o Brasil, ainda que isso não seja definido. O gesto de limpar os pratos empoeirados da deusa da justiça, logo após esse comentário do Secretário, amplifica a noção de que a corrupção financeira e moral se esconde sob a capa do moralismo vazio e da opressão de um governo prepotente: há sujeira por todos os lados sempre que estão envolvidas figuras políticas autoritárias, moralistas e hipócritas. Enfatize-se que, durante todo o colóquio, o Secretário do Bem-Estar é assaltado pelas dores terríveis vindas de sua perna apoiada na almofada logo à frente, dizendo ser a doença denominada gota, ao que o Chefe das Relações Públicas cantarola: “Pode ser a gota d’água! Pode ser a gota d’água!”, música de Chico Buarque, compositor notoriamente perseguido pelos censores durante a ditadura:
Contextualizada no enredo da obra de Lygia Fagundes Telles, essa música amplia o viés interpretativo a respeito do contexto político ditatorial, sugestionando a revolta do povo, e também dos ratos, diante dos desmandos e da ostentação dos responsáveis pelo governo. Há uma tensão constante e a iminência de uma revolta – qualquer atitude ou falta de ação governamental pode ser a “gota d’água”, ambos pressentem. Qualquer vacilo e pode ser o fim do governo, ou de seus privilégios. O Relações Públicas diz se tratar de uma música cantada pelo povo, tentando se desculpar:
Ao tratar o povo como uma “abstração”, o Secretário consolida a visão de desprezo manifestada pelo governo em relação aos anseios dos cidadãos. De acordo com os representantes do poder, o povo só atrapalha o governo quando a imprensa, evidentemente acusada de esquerdista, denuncia o desmazelo político e o elitismo dos burocratas. Tais palavras na fala do Secretário do Bem-Estar Público e Privado apenas consolidam a contundente alegorização que a autora pretende fazer do período de autoritarismo da Ditadura Militar no Brasil. Não há realmente uma solução para a invasão dos ratos, eles só incomodam porque os pobres aparecem nas notícias como os atacados; caso contrário, se seguiria o curso do governo sem nenhum incômodo, já que estão assegurados os luxos e benesses aos burocratas e governantes. E se não há mais gatos, tendo todos sido devorados, o leitor imagina que a situação de escassez e penúria somente irá reforçar a necessidade de uma rebelião contra o governo instaurado.
Mais uma vez, o cinismo do Chefe de Relações Públicas aparece na menção ao cozido feito com gatos, o que demonstra que ele também não se importa com a população. Como não há gatos, proliferam os ratos, que mais uma vez são comparados aos indivíduos subversivos, apesar de que, na verdade, poderia ser o oposto, conforme ironiza o título “Seminário dos ratos”. Ao final, se verificará como os burocratas também vão se tornar vítimas de seus próprios atos inescrupulosos, a partir do revés de uma invasão no casarão. Enquanto o Secretário é informado que o jantar será servido dali a pouco, acompanhado de vinho chileno, da safra “Pinochet”, uma alusão ao ditador chileno responsável por mandar executar diversos cidadãos considerados inimigos do governo, o barulho antes ouvido apenas por ele é também pressentido pelo Relações Públicas, que corre para verificar se não seriam bombas.
No corredor, esbarra com o Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas, que sente um cheiro e barulho diferentes, correndo até o corredor, dizendo que o telefone não estava operante e ele precisava falar urgentemente com o Presidente. Esbaforido, atravessando o corredor em direção à cozinha, o Chefe de Relações Públicas encontra o Cozinheiro-Chefe transtornado, avisando que os ratos haviam invadido a cozinha, vindos de todos os lados, devorando toda a comida, de lagostas a batatas, inclusive roendo os panos de prato, só não conseguindo penetrar na geladeira, que estava fechada.
O cozinheiro diz que vai abandonar aquele lugar, pois os ratos haviam destruído tudo por onde passaram. Havia escutado o barulho incessante, que explodiu na invasão dos ratos, fazendo todas as paredes tremerem. Os ratos, afirma, tomaram tudo, assegurando que um deles havia ficado em pé nas patas de trás e o enfrentado, como um homem vestido de rato. Berrando de desespero, diz que não há comida alguma para se fazer o jantar e que os empregados debandaram. O Relações Públicas também berra ordenando que se realize o jantar, sempre preocupado com as aparências que o governo tenta manter, ainda mais diante de visitas estrangeiras. O cozinheiro diz que os ratos não só devoraram toda a comida, como roeram toda a fiação, justificando o telefone mudo, inclusive a fiação dos carros, e que todos fugiram a pé. Começam a chamar o Relações Públicas no andar de cima e o desespero toma conta de todos:
“As vozes no andar superior começaram a se cruzar. Uma porta bateu com força. Encolheu-se mais no canto quando ouviu seu nome: era chamado aos gritos. Com olhar silencioso foi acompanhando um chinelo de debrum de pelúcia que passou a alguns passos do avental embolado no tapete: o chinelo deslizava, a sola voltada para cima, rápido como se tivesse rodinhas ou fosse puxado por algum fio invisível. Foi a última coisa que viu, porque nesse instante a casa foi sacudida nos seus alicerces. As luzes se apagaram. Então, deu-se a invasão, espessa como se um saco de pedras borrachosas tivesse sido despejado em cima do telhado e agora saltasse por todos os lados numa treva dura de músculos, guinchos e centenas de olhos luzindo negríssimos. Quando a primeira dentada lhe arrancou um pedaço da calça, ele correu sobre o chão enovelado, entrou na cozinha com os ratos despencando na sua cabeça e abriu a geladeira. Arrancou as prateleiras que foi encontrando na escuridão, jogou a lataria para o ar, esgrimou com uma garrafa contra dois olhinhos que já corriam no vasilhame de verduras, expulsou-os e num salto, pulou lá dentro. Fechou a porta, mas deixou o dedo na fresta, que a porta não batesse. Quando sentiu a primeira agulhada na ponta do dedo que ficou de fora, substituiu o dedo pela gravata.” (TELLES, ANO, p.7)
A invasão dos ratos deu-se de modo irrefreável. A imagem do chinelo sendo arrastado pela rataria metaforiza a derrota definitiva do Secretário, personificação da preocupação excessiva com as aparências e da hipocrisia, logo ele, que tanto pressentiu a iminência dos invasores. Ao se esconder na geladeira, o inverso de um útero quente e confortável, o Chefe de Relações Públicas se salvou. Justamente no lugar onde se guarda a comida, ele se livrou de ser devorado: nada mais irônico. No inquérito instaurado para saber o que houve, ele assegurou que nem sabia precisar quanto tempo ficara ali, enrolado em si, contorcido naquele pequenino espaço, com a água fria pingando sobre sua cabeça. No vão da porta, do lado de dentro, pelas frestas da borracha da porta da geladeira, abria a boca para sorver algum ar enquanto os ratos tentavam penetrar naquele improvável abrigo. De repente, fez-se silêncio completo e ele pressentiu a cozinha vazia, então foi embora:
“Foi andando pela casa completamente oca, nem móveis, nem cortinas, nem tapetes. Só as paredes. E a escuridão. Começou então um murmurejo secreto, rascante, que parecia vir da Sala de Debates e teve a intuição de que estavam todos reunidos ali, de portas fechadas. Não se lembrava sequer de como conseguiu chegar até o campo, não poderia jamais reconstituir a corrida, correu quilômetros. Quando olhou para trás, o casarão estava todo iluminado.” (TELLES, ANO, p.8)
O final assustador da narrativa associa-se à ambiguidade explicitada no título, pois finalmente os ratos, efetivamente, parecem reunir-se para consumar sua vitória definitiva. A estratégia dos roedores focaliza-se principalmente em devorar tudo a sua frente, o que conseguirem destruir e comer. Seriam os ratos o povo revoltado com a situação de abandono a que foram relegados pelo governo? Seria a representação simbólica de sua fúria contra aqueles que lhes negam as benesses sociais, a comida, a dignidade? Ou seriam os próprios ratos, isto é, os roedores, os únicos a poderem suplantar as ratazanas da burocracia que se instauraram no governo? Somente ratos, seres asquerosos e irrefreáveis em sua sanha por consumir o que virem à frente, seriam capazes de derrotar outros ratos? Todos esses questionamentos podem ser feitos, e não se deve reduzir um desfecho tão fantástico a uma única resolução ou explicação, apesar de algumas análises apontarem para a fúria popular representada pela invasão dos ratos.
Afinal, esse é um dos propósitos de narrativas com elementos fantásticos: abordar temas que, de outra forma, poderiam ser censurados, ou, se ficassem explícitos demais, perderiam seu poder de sugestão metafórica. A linearidade dos eventos no casarão reformado que iria abrigar o “Seminário dos ratos” ajuda a manter as aparências da verossimilhança; no entanto, a chegada destrutiva dos roedores encaminha o conto para o absurdo. Ao abordar as interdições, as censuras, o autoritarismo, a manipulação da imprensa, a escassez de alimentos para o povo e a negligência cínica de um governo ditatorial diante das desgraças dos cidadãos que sustentam o próprio Estado, o insólito da narrativa permite ao leitor contemplar o próprio absurdo da realidade. Há, dessa maneira, uma nítida função social de denúncia nesse conto de Lygia Fagundes Telles.
Ao subverter o real, a autora denuncia-o, explicita-o, escancara-o. Ao utilizar o insólito de uma invasão programada e arquitetada por roedores para tomar definitivamente o poder, a autora se compromete ainda mais em denunciar as atrocidades existentes na sociedade brasileira. Os ratos são o objeto do Seminário, mas acabam por se tornarem os sujeitos dele, representando um contrapoder que faz ruir a estrutura de um poder autoritário, que faz de tudo para parecer sólido, mas vê o início de sua derrocada com a destruição do casarão. Os ricos burocratas fascistas se imaginam a salvo de tal ameaça, prepotentes e arrogantes que são. Mas os ratos exclamam extasiados e “roem o edifício”, conforme diz a epígrafe de Drummond. Todas as tensões sociais aludidas durante a narrativa encaminham-se para esse desfecho. E o leitor se pergunta se o absurdo da conspiração dos ratos seria tão impossível e distante assim da realidade brasileira.