O Brasil real nos diários de Carolina Maria de Jesus

Por Aloísio Andrade Oliveira
Ilustrações: Rubens Lima


“NÃO SEI DORMIR SEM LER. GOSTO DE MANUSEAR UM LIVRO. O LIVRO
É A MELHOR INVENÇÃO DO HOMEM”.

Carolina Maria de Jesus nasceu em 1914, no interior de Minas Gerais. De seu pai, pouco se sabe, pois a autora apenas se referiu a ele como um boêmio desinteressado pelo trabalho. Já a mãe lutou para que Carolina de Jesus tivesse instrução escolar: conseguiu que a filha estudasse ao menos dois anos no Colégio Allan Kardec, provavelmente em 1923 e 1924, na cidade de Sacramento, Minas Gerais. O estudo até o segundo ano do Ensino Fundamental I foi toda a instrução escolar formal que a escritora teve durante a vida, o que não a impediu de se interessar pela leitura de livros e revistas que encontrava descartados, provocando-lhe o desejo de escrever. Sobre a mãe e a própria noção de maternidade, ela registra:

Após passar a infância em Sacramento, trabalhando como lavradora e empregada doméstica, Carolina Maria de Jesus muda-se com a mãe para Franca, interior de São Paulo, trabalhando também como auxiliar de cozinha. Após a morte da mãe, a escritora, já com 23 anos, migra para a cidade de São Paulo em busca de melhores condições de vida. Ela continua a trabalhar como empregada doméstica e habita vários cortiços na região central da grande metrópole, até ser obrigada a morar num barracão precário na favela do Canindé, às margens do Rio Tietê. Lá, Carolina de Jesus reside entre os anos de 1948 e 1961. A atividade exercida por ela, e que lhe garante o mínimo de sustento na cidade grande, é catar materiais recicláveis pelas ruas para revendê-los. É também no lixo que encontra os cadernos com folhas ainda em branco que se tornam as páginas de seus diários, nos quais, a partir de 1955, inicia a escrita do seu cotidiano, revelando um olhar sensível e contundente, de quem consegue enxergar, como ninguém, as várias facetas da exclusão social no Brasil:

Moradora de favela, mulher negra, mãe solteira, pobre e marginalizada: é dessas múltiplas facetas que Carolina Maria de Jesus constrói seus relatos biográficos em seu diário. As agruras do dia a dia vêm acompanhadas de reflexões sobre o sofrimento; a fome que acomete a escritora e os três filhos; a denúncia contra a demagogia e a falta de escrúpulos dos políticos; a falta de perspectivas e a vida mesquinha no ambiente da favela; a obsessão em escrever para transformar sua vida; e, sobretudo, o desejo de obter reconhecimento como escritora. Esses elementos são expostos nos trechos a seguir:

Em 1958, já com 44 anos, Carolina Maria de Jesus encontra-se casualmente com um jornalista chamado Audálio Dantas, que estava fazendo uma reportagem sobre a expansão das favelas nas margens do Rio Tietê. Chama a atenção dele aquela mulher que dizia aos demais que os colocaria em seu livro. Ele se interessa pelos cadernos de Carolina de Jesus e, impressionado com a originalidade, estilo e valor literário dos diários da catadora de papel, publica uma reportagem sobre a escritora, no jornal Folha da Noite: “O drama da favela escrito por uma favelada”.

Pouco tempo depois, em 1960, trabalhando na revista O Cruzeiro, de grande sucesso e circulação na época, o jornalista edita fragmentos do diário de Carolina de Jesus, empenhando-se posteriormente na organização dos escritos, os quais recebem o título Quarto de despejo: diário de uma favelada. A edição mantém o registro de acordo com a realidade de Carolina Maria de Jesus, com os mesmos desvios gramaticais e ortográficos praticados por ela em seus registros, respeitando, assim, a veracidade linguística de seu contexto.

Em prefácio à obra, na edição de 1993, Audálio Dantas escreve sobre o alcance das tiragens de Quarto de despejo, acentuando como os cerca de vinte cadernos encardidos que Carolina de Jesus guardava em seu barraco acabaram rompendo paradigmas:

Dantas faz uma reflexão que retoma a metáfora usada por Carolina ao longo de seus diários:

Nas próprias páginas do diário, Carolina de Jesus registra os encontros com Audálio Dantas e a ansiedade pela possibilidade de edição de seus escritos:

A notoriedade conquistada por Carolina Maria de Jesus promove o livro; dez mil exemplares são vendidos na primeira semana e a obra ganha diversas tiragens pela Editora Livraria Francisco Alves, chegando a cem mil exemplares em seis meses. A escritora até ganha algum dinheiro com as edições de Quarto de despejo, o que lhe possibilita comprar uma casa de alvenaria num bairro de classe média em São Paulo.

Quarto de despejo é traduzido em treze línguas e comercializado em mais de quarenta países, ampliando a popularidade da escritora. Porém, esse sucesso editorial é abalado por causa do golpe militar de 1964, que institucionaliza a censura a obras consideradas subversivas, e também dos sucessivos desentendimentos de Carolina de Jesus com as editoras, pois ela garante que não havia ganhado dinheiro suficiente com as publicações de seus escritos, ao passo que os editores enriqueciam. A seguinte passagem do diário destaca uma dessas contradições que marcariam toda a trajetória de Carolina:

Após gastar o dinheiro que havia conquistado, Carolina de Jesus é fotografada novamente desempenhando a tarefa de catadora, para garantir o sustento da família. Ela não chega a obter o mesmo destaque com o novo livro, Casa de alvenaria (Diário de uma ex-favelada), no qual descreve as mudanças sociais que enfrentou e expõe o sentimento de amargura pelo ostracismo e pelas discrepâncias entre o anonimato de ex-moradora de favela e a fama que havia conquistado como escritora.

Carolina decide vender a casa na cidade e comprar um sítio em Parelheiros, nos arredores de São Paulo, atualmente região de periferia da capital paulista. Em seu terreno, passa a viver como na sua infância, numa pequena roça. Depois de Quarto de despejo (1961) e Casa de alvenaria (1963), ela publica Pedaços da Fome, seu único romance, obra que não alcança repercussão.

Aos 62 anos, Carolina Maria de Jesus falece. Diário de Bitita, obra escrita em forma de recordações de sua infância em Minas Gerais, é lançado postumamente. Ao longo das décadas, os escritos biográficos e a visão de mundo de Carolina de Jesus inspiraram a parcela intelectual que enxergava a autenticidade da autora, além do poder emocional e social dos escritos de quem possuía a experiência da pobreza, da fome e do preconceito racial inscritos no cotidiano. Para além de diários e romances, a autora também escreveu peças de radionovela, poesias, provérbios e até gravou um disco de sambas pela RCA Victor, em 1961, também intitulado Quarto de despejo, com suas próprias composições. Todavia, é nas palavras registradas ao longo dos pesados dias entre 1955 e 1960 que a autora consegue arrebatar leitores e denunciar a realidade miserável de um país injusto e corrompido como o Brasil:

“EU CATO PAPEL MAS NÃO GOSTO. ENTÃO EU PENSO: FAZ DE CONTA QUE EU ESTOU SONHANDO.”



Os relatos de Carolina de Jesus adquirem feitio de crônicas sobre a vida nas favelas brasileiras, denunciando a miséria com base nas peculiaridades do cotidiano dos marginalizados. A autora percebe que pode ser influente justamente por meio do lhe foi negado: a distinção intelectual. Impossibilitada de estudar, sem recursos para adquirir educação formal, vivendo de esmolas, doações e da venda de materiais recicláveis para depósitos, ela nunca perde o foco literário e a perspicácia, entrevendo no detalhe o que há de substancial nas desigualdades sociais:

Vale a pena ler o registro integral de um domingo de 1955, no qual se percebe a rotina da favela, as estratégias de sobrevivência da narradora, a distinta perspectiva que ela tem sobre política ao opinar sobre o episódio do atentado a Carlos Lacerda, conhecido opositor de Getúlio Vargas. No trecho, ela explicita o preconceito diário que enfrenta por ser mulher, negra e catadora, sem perder o viés lírico sobre sua existência, pela contemplação do mundo, possivelmente influenciada pelas leituras românticas que formaram seu arsenal literário:

O método de escrita de Carolina é pungente. Dados os fatores precários de produção de seus diários, além da pouca instrução a que teve acesso, preconceituosamente, se esperaria de uma catadora de papel um vocabulário limitado e uma exígua visão de mundo, restrita ao relato mesquinho sobre a vida na miséria. Carolina de Jesus, porém, supera tal preconceito e as expectativas negativas que sobre ela se abatem, revelando de modo intencional um estilo próprio, peculiarmente irônico em seu contexto,
sem deixar de lado uma vivacidade perspicaz na análise de seu cotidiano e das condições materiais dos pobres:

A favela é descrita por Carolina de Jesus com base no desânimo causado pelas adversidades financeiras e pela alegria de poder escrever para criar um refúgio intelectual, no qual a autora tenta se entender e se autoafirmar. Ao falar de si, ela tem consciência de que seus estados emocionais refletem todo um conjunto social e familiar condicionado à miséria e à precariedade extrema, porém sabe reconhecer que a escrita é seu refúgio poderoso, como comprovam os seguintes excertos de alta intensidade reflexiva:

“10 DE AGOSTO – DIA DO PAPAI. UM DIA SEM GRAÇA.ˮ

A carência de condições materiais, no entanto, não é desculpa para Carolina de Jesus não tentar manter seus filhos dignamente. Ao contrário, ela ressalta seu amor e desvelo pelos três filhos, tentando protegê-los do ambiente hostil da favela, das constantes agressões das vizinhas (sobre o filho menor), das maledicências de que sempre é alvo. Os moradores da favela chegam a ser documentados com um tom de denúncia ou mesmo de moralismo, quando, por exemplo, ela aborda a perda da dignidade e a violência doméstica sofrida pelas mulheres; o alcoolismo que suga o dinheiro e a perseverança dos pobres trabalhadores;
a promiscuidade sexual; e o machismo da sociedade, devido ao fato de ela própria não ter um marido e ser criticada por isso. Pode-se perceber como essas reflexões são bastante elaboradas na mente de Carolina de Jesus nos trechos a seguir:

As décadas de 1950-1960 representam anos de modernização para o país, sobretudo para uma cidade como São Paulo, mas o que se lê em Quarto de despejo é o avesso: o sistema político e social engendra uma profunda desigualdade que impossibilita uma catadora de materiais recicláveis, uma mãe solteira negra, uma moradora de favela de ascender financeiramente.
À lustrosa faceta moderna desse Brasil, sobrepõe-se a sujeira dos becos, os barracos da favela, as doenças que já deveriam ter sido controladas, mas que vitimizam os pobres, a preocupação imediata com o dinheiro para comprar o mínimo de comida que alimentará o máximo de pessoas:

Carolina de Jesus é, portanto, singular em vários aspectos. Seus depoimentos alcançam dimensão estética, antropológica e política, na medida em que uma catadora de material reciclável utiliza os papéis dos quais tira sua subsistência – o próprio “lixo”, no caso, os cadernos descartados que ela vai encontrando – para fazer denúncias por meio da escrita, revelando as infinitas contradições existentes no país. Nada poderia ser mais contraditório e revelador:

A potência discursiva dos cadernos de Carolina de Jesus não reside somente na reprodução de falas ou acontecimentos da favela, mas na vazão dada a uma realidade interior que evoca desejos e sonhos, recriando o universo social dos marginalizados por meio de sua subjetividade:

Em meio ao seu discurso social, a autora consegue fazer brotar de sua escrita lirismo e independência de ideias. As condições precárias de vida promovidas pelo crescimento desordenado de grandes cidades como São Paulo contrastavam com a euforia desenvolvimentista dos “anos dourados” de Juscelino Kubitschek. As favelas se destacavam pela miséria explícita. A realidade urbana brasileira, sendo narrada por alguém que padece diariamente de fome e luta para conseguir a subsistência do dia para si e pros filhos, sem a mínima ideia de como será o dia seguinte, é retratada não somente com base na problemática da miséria, mas também no descaso governamental com a população marginalizada. As injustiças solidificadas após séculos de dominação colonialista descambam num registro das injustiças contemporâneas:

Ao exercer a atividade da escrita, Carolina de Jesus tenta transformar a própria vida em depoimento literário, e o narrado se transmuta em páginas biográficas e sociais. A apreensão do sofrimento, da indigência causada pela fome, só é possível porque a autora a manifesta por escrito, distanciando-se para se olhar e, assim, revoltar-se. Seu drama, ela percebe, é maior que os dramas que escuta na rádio – as radionovelas, no caso –, por isso recusa a humilhação e sonha com uma vida mais plena, longe da favela:

"3 DE SETEMBRO – ONTEM COMEMOS MAL. E HOJE PIOR".

O exercício diário da escrita, para Carolina de Jesus, assinala uma luta para se opor às condições sociais de existência na favela, pois ela não se identifica com os que lá estão, seja pelo seu nível intelectual, que causa antipatia nos moradores, seja pela não aceitação da pobreza e da fome. Ao inscrever a favela Canindé, o “quarto de despejo” da sociedade, no ambiente erudito das letras, acaba por “atrapalhar” as configurações artísticas, geográficas e culturais existentes no imaginário brasileiro, afinal é uma mulher negra, moradora de favela, quem reafirma sua potência, vivacidade e resistência. Carolina está plenamente consciente de que o lugar do negro, do pobre, da mulher não é necessariamente na favela:

A fome percorre todo esse itinerário urbano conhecido de perto por Carolina de Jesus, cujos escritos repletos de desvios gramaticais, erros de concordância, pontuação inadequada, mescla de termos coloquiais com outros mais solenes explicitam não só a crueza da ausência de educação escolar formal, a qual é um direito básico do cidadão, mas, principalmente,
a autenticidade de uma mulher que queria sobrepor-se à condição miserável por meio do intelecto:

Se o realismo das descrições feitas por Carolina pode chocar os desavisados que se detiverem sobre seus escritos, os relatos da fome tornam-se ainda mais poderosos. A revolta da autora, junto a sua força e resistência diante das adversidades, impressiona:

Não é de se admirar que Carolina de Jesus tenha dado uma cor para a fome: o amarelo. Mesmo tocada pela maior das desgraças sociais, a escritora, ainda assim, consegue criar diários que esteticamente expõem a crueldade de um sistema social injusto que se abate sobre os miseráveis, com a complacência calada dos ricos:

Carolina de Jesus relata sem autopiedade o que lhe dizem, porque sabe que nas falas e pensamentos dos moradores das favelas se encontra a verdade social. Não há pudor por parte da autora. Ela assume sua condição degradante abertamente, até por ter noção de que, mesmo não sendo a única, é uma das poucas capazes de denunciar a desigualdade social com tamanha veemência:

Os diários de Carolina Maria possuem, portanto, uma dimensão estética e etnográfica, dado o realismo existente na descrição pormenorizada do cotidiano da favela e da exclusão a que os indigentes são submetidos na cidade. Esse caráter realista, associado à pesquisa feita a partir do olhar da autora, descreve não só o modo de viver dos chamados favelados, mas também todo um universo social próprio. E isso pode ser entendido pelos escritos da própria autora:

7 DE OUTUBRO – MORREU UM MENINO AQUI NA FAVELA. TINHA DOIS MESES. SE VIVESSE IA PASSAR FOME.

Despejada do centro urbano, à Carolina de Jesus coube a favela – o quarto de despejo dos indigentes recusados pela sociedade, segundo ela. Sua escrita se torna, então, uma forma de elaborar e redefinir a apreensão do mundo e das relações políticas, pois a autora se encontra num momento histórico fundamental: a eleição de Juscelino Kubitschek para a Presidência da República (tendo em vista que ela começa a escrever seus diários em 1955). A Era JK, como ficou conhecido esse momento da história do Brasil, apoiava-se num discurso desenvolvimentista devido ao processo de industrialização, com a promessa de solução para todas as injustiças sociais:

Em seu diário, Carolina contrasta a ideologia desenvolvimentista de JK com sua condição de vida na favela, o que a impede de nutrir simpatias pelo presidente:

Carolina de Jesus jamais perde a oportunidade de rechaçar o populismo político dos candidatos que visitam a favela buscando votos em troca de pequenos presentes ou falsos abraços. O oportunismo daqueles que se valem da vulnerabilidade dos miseráveis é notório e fica ainda mais evidente pelo olhar de quem sofre as consequências da negligência política,
ou seja, os desfavorecidos, a quem se reservam o lixo e o “quarto de despejo”. A sequência de excertos comprova a argúcia da análise política e social de Carolina de Jesus:

Enquanto os políticos se reelegem, alcançando poder, fama e dinheiro, os favelados, sobretudo as crianças, continuam à mercê da violência cotidiana. Carolina sempre registra o afeto pelos três filhos em seus diários. Apreensiva por deixá-los a sós porque precisa sair para catar papel e metais para vender, sabe que eles estão expostos ao que a rua tem a oferecer: a marginalidade. Neste episódio em que vai buscar um dos filhos no Juizado de Menores, na rua Asdrúbal Nascimento,
a reflexão de Carolina é tocante, metaforizando a proposta que a obra da autora pretende alcançar, demonstrando como os moradores das favelas são os enjeitados pela sociedade:

Em outro trecho do diário, Carolina registra o olhar ingênuo sobre as instituições governamentais que deveriam amparar os menores, mas que se tornam verdadeiras escolas de criminalidade, por força da convivência entre vários jovens que precisam de suporte, mas são expostos a todo tipo de violência. Aparecem na favela dois desses menores infratores fugitivos do Juizado de Menores, os quais são levados até o barracão pelo filho de Carolina. Para ela, internar os filhos no Juizado os ajudaria a sobreviver mais dignamente, pensando em como o Estado seria capaz de cuidar das crianças. O relato dos fugitivos comprova justamente o oposto:

ESQUENTEI O ARROZ E OS PEIXES E DEI PARA OS FILHOS. DEPOIS FUI CATAR LENHA. PARECE QUE EU VIM AO MUNDO PREDESTINADA A CATAR. SÓ NÃO CATO A FELICIDADE.

A voz da mulher, o sofrimento dos negros por causa do racismo, a fome dos pobres, a exclusão social dos brasileiros sem emprego formal, a carência de educação de qualidade, o desespero de quem nasceu miserável e não consegue enxergar saídas para ascender e a rotina de uma mãe que luta pela subsistência dos filhos sem a presença ou ajuda de qualquer companhia ainda não haviam aparecido na literatura brasileira de maneira tão verossímil e poderosa:

Carolina Maria de Jesus aparece na literatura brasileira, por assim dizer, como uma espécie de contraponto e, ao mesmo tempo, de continuidade ao que já se havia iniciado no Pré-Modernismo, no começo do século XX, e, principalmente,
na Segunda Fase do Modernismo, entre 1930-1945, através do olhar de escritores burgueses – os quais, quando muito, com um passado de pobreza, foram remediados. Como exemplo, cabe chamar atenção à obra de Lima Barreto, escritor negro e morador da periferia carioca, cujas narrativas só obtiveram reconhecimento anos depois das décadas de
1910-1920, quando a voz combativa do autor apontava as mazelas sociais e o racismo do brasileiro. No caso de Carolina, o preconceito multiplica-se, pois se trata de uma favelada que pretende alcançar o universo das letras para denunciar sua realidade desgraçada pela pobreza:

A própria publicação de Quarto de despejo foi acompanhada de polêmicas que até hoje são levantadas acerca do valor literário da obra. Primeiramente, trata-se das anotações de um diário, ou seja, uma obra legitimamente autobiográfica, isto é, autor, narrador e personagem são coincidentes. Em segundo lugar, cabe ressaltar que a voz de mulher negra favelada da autora representa uma grande parcela de excluídos da sociedade. Em terceiro lugar, os escritos representam as confissões narrativas de uma pessoa que reflete sobre uma dinâmica social urbana sob a ótica dos pobres, ou seja, não são meros registros sobre a marginalização dos miseráveis, mas textos escritos pelo punho dos próprios marginalizados. Sendo assim, Quarto de despejo não se encaixava nos cânones existentes na literatura brasileira até então. Encara-se a obra de Carolina de Jesus, portanto, como precursora da literatura de alteridade no Brasil – isso significa que seu texto, embora pessoal (diário), abre espaço para a voz e o lugar do outro que ele representa – ou de uma literatura marginal, isto é, feita às margens da produção canônica, tanto geográfica quanto socialmente:

Ao seguir a ortografia original dos cadernos de Carolina Maria de Jesus, a publicação de Quarto de despejo amplifica a violência da exclusão social, pois o leitor se pergunta como alguém naquelas condições miseráveis, com tão pouco acesso à educação, impossibilitada de voltar à escola, poderia produzir conteúdo tão verdadeiro e profundamente lírico em alguns momentos, por meio justamente da escrita, essa habilidade cujo domínio pertenceria à elite intelectual do país. Trata-se, obviamente, de um preconceito arraigado nessa parcela da sociedade: o de que indivíduos com pouca instrução não seriam capazes de elaborações mais profundas de pensamento ou reflexão, sobretudo pela escrita. O depoimento de Carolina, a seguir, é tocante e ajuda a pensar sobre tais noções preconcebidas:

Os diários de Carolina de Jesus explicitam como a escritora tinha plena consciência de sua condição marginal, o que a leva a revoltar-se contra as mazelas sociais e hipocrisias que presencia, tornando o exercício da escrita também uma maneira de pedir ajuda:

Para ela, escrever é uma forma de se dar conta de seu próprio cotidiano de exclusão, não se acostumando a ele, mas, sim, revendo-o por outro ângulo, porque se conformar significaria ser derrotada pelas adversidades, atitude avessa ao modo de vida da autora:

Os acontecimentos do passado, os infortúnios de sua vida, os descontentamentos e as frustrações universalizam-se, e sua felicidade materializa-se nas letras marcadas nos cadernos encontrados no lixo. Há, simultaneamente, poesia e desespero nessa situação, provocando no leitor mais sensível um mal-estar, pois sabe-se que ali se encontra o que há de mais cruel na sociedade brasileira: a falta de oportunidades que massacra os cidadãos, a pobreza extrema que tenta anular a vida dos afro-brasileiros, o preconceito que oprime diariamente as mulheres, conforme se observa no excerto:

A escrita de Carolina de Jesus possui um caráter reformista, pois a todo momento ela avalia os novos padrões comportamentais urbanos com base em suas convicções culturais, que estão ancoradas num universo mais tradicional, e até rural, oriundas de suas origens mineiras. A crítica que faz aos aspectos morais da vida social na favela, abordando o alcoolismo, as brigas de casais, as infidelidades conjugais e as intrigas recai bastante sobre as próprias mulheres.
As constantes desavenças entre maridos e esposas e os escândalos protagonizados pelos traídos, além da prostituição de menores, horrorizam a escritora. Entretanto, essas cenas de violência são tão cotidianas para ela que são narradas de maneira crua e, por isso mesmo, causam incômodo:

OS BONS EU ENALTEÇO, OS MAUS EU CRITICO. DEVO RESERVAR AS PALAVRAS SUAVES PARA OS OPERÁRIOS, PARA OS MENDIGOS, QUE SÃO ESCRAVOS DA MISÉRIA.

Os diários de Carolina de Jesus sensibilizam o leitor, uma vez que lá estão as rasuras da sociedade, as falhas que todos procuram ignorar, porque ferem a consciência. Para Carolina, a intenção do exercício da escrita é pensar o seu próprio ato de escrever como uma elaboração ininterrupta de sua condição social e de sua existência sofrida. Ao narrar-se, ela modela sua própria imagem, a de alguém que se constrói e se percebe através do entendimento de seu sofrimento social e, principalmente, de seu lugar de exclusão:

Tratando-se de uma escrita autobiográfica, nela nasce uma aguda consciência de sua marginalização. Carolina de Jesus está fisicamente na favela, representando mesmo o reflexo corpóreo daquele espaço, por causa da fome contra a qual luta diariamente, das agressões que sofre, das dores de cabeça que a acometem quando perambula pela cidade em busca de papelões, garrafas, latas velhas ou qualquer material que lhe renda trocados para comprar comida. Na narrativa do próprio cotidiano, a voz dela recria a si mesma como sujeito marginalizado, engolido pelo abismo social de uma metrópole cruel, que a ignora enquanto mãe que luta pela subsistência dos filhos, violentada também pelos seus pares, que agridem seus filhos e debocham da dedicação pretensamente intelectual de uma reles catadora:

Para Carolina Maria de Jesus, por meio da literatura, dominar a norma culta representaria uma forma de ascensão social, por isso ela faz questão de utilizar, por vezes, vocabulário rebuscado e termos mais formais, que acabam se misturando à escrita oral espontânea – os “erros” gramaticais e ortográficos da escritora são, eles mesmos, materializações da sua condição cultural e da sua pobreza. Nota-se, ao longo dos diários, a busca pelo modelo normativo da língua, tanto nas referências românticas que permeiam algumas de suas divagações, quanto no entendimento que ela tem da cultura letrada como essencial para a ascensão das camadas subalternas da cidade. Dominar os códigos literários, para Carolina, significaria se inserir na sociedade culta e, portanto, rica, distanciando-se do que presencia diariamente na favela e que lhe causa desagrado e repugnância.

Uma semiescolarizada que representa seu cotidiano de forma realista e que não se isenta de não aceitar sua posição social: essa é uma maneira de encarar a autora de depoimentos memorialísticos que carregam as marcas da exclusão social em vários níveis. Carolina de Jesus apresenta ao leitor a favela e seus personagens reais, um espaço no qual ela se insere, ambicionando deter a cultura letrada para se destacar, expressando sua revolta ao não se submeter ao que lhe foi imposto. Essa recusa é transgressora porque se materializa precisamente da forma mais intelectualizada possível: na escrita literária. Em cadernos encontrados no lixo, ela faz o que se acredita ser uma “literatura possível”, caracterizada por não ser consagrada, ter um objetivo maior que o comercial e ser produzida em situações completamente adversas:

Analisando-se atentamente o contexto de produção dos escritos de Carolina de Jesus, acentuam-se o indeterminado e o inesperado como elementos constituintes daquele momento muito particular da vida da autora. O sucesso nacional e internacional de Quarto de despejo no meio intelectual predominantemente branco e rico mostra ao mundo a paradoxal realidade social brasileira. No imaginário social, seria inadmissível uma moradora de favela ascender socialmente por meio de um processo intelectual tão consagrado como o da escrita. Segundo o crivo da sociedade patriarcal brasileira, com heranças coloniais escravistas, uma negra, descendente de escravos, mãe solteira e catadora de materiais recicláveis estaria fadada a serviços que requerem pouco grau de instrução. Mesmo no contexto atual, uma pessoa nas condições de Carolina Maria de Jesus encontraria muita dificuldade de se alienar da trágica condição da favela – isolando-se, principalmente, da fome e da violência, e também dos desgastes físicos e das discussões constantes – para escrever, como a autora fez, registrando as próprias vivências, desilusões e devaneios:

Foi o encontro fortuito com o jornalista Audálio Dantas que promoveu a concretização da obra de Carolina Maria de Jesus. Não a composta por poemas, canções e contos. Esses a crítica considerou simplistas demais, com rimas simplórias, estrofes populares, quadrinhas consideradas ingênuas, narrativas e versos influenciados por escritores românticos como Casimiro de Abreu e Bernardo Guimarães, provavelmente os únicos que ela teve oportunidade de ler. Apesar de Carolina ter enorme apreço por seus escritos, os leitores dos anos 1950-1960 estavam interessados na veracidade documental que só ela seria capaz de registrar em seus diários. Ao encontrar Carolina, o jornalista percebeu que seria esse o caminho de inserção da obra da catadora nos meios intelectuais: não necessariamente por sua forma de escrever, mas através do olhar dela, em seus escritos, sobre os descompassos da realidade social brasileira.

Quando encontrou Carolina de Jesus, Audálio pediu que retomasse a escrita do diário, por isso há poucos registros relativos ao ano de 1955, mas muitos que cobrem os anos de 1958 a 1960, ou seja, o período do encontro entre os dois. Ao jornalista, coube o papel de seleção, edição e até pequenas correções, mesmo mantendo a originalidade dos desvios sintáticos e ortográficos de Carolina. Audálio Dantas estava a par de seu contexto cultural e sabia que os escritos de Carolina de Jesus trariam impacto aos leitores. Naquela época, já havia movimentos em prol do “desfavelamento”, do incremento e valorização de uma literatura produzida por mulheres, do incentivo a projetos de ascensão social pela educação e pela escrita, do desejo de divulgar o Brasil para o exterior (mas não aquele tropical e idealizado). Quarto de despejo colocou em xeque a visão romântica sobre a favela que ainda prevalecia nos sambas vindos do morro e comprados por músicos brancos. Com o olhar sobre o futuro de quem não quer permanecer na favela, os barracões vistos do asfalto como lar de gente humilde são retratados por Carolina como antros de violência, descaso, fome extrema e abandono:

Foi a originalidade da perspectiva de uma brasileira negra e pouco alfabetizada sobre a favela e as consequências da desigualdade social brasileira que atraiu os leitores daquele momento. Sem dúvida, o olhar de Carolina de Jesus assombra e fascina os leitores atuais, tendo em vista a permanência dos seus escritos em debates acadêmicos, estudos antropológicos sobre as favelas, bem como em estudos afro-brasileiros e feministas. Principalmente porque os “quartos de despejo” continuam os mesmos, assolados pela mesma miséria hereditária, explorados por políticos oportunistas que abusam da vulnerabilidade dos esfomeados, além da violência crescente que é promovida pelo abismo social que existe no Brasil.

A despeito de não ter obtido todo o reconhecimento que merecia e de ela mesma não se contentar com o relativo anonimato ao qual foi relegada, após o sucesso estrondoso de sua obra em inúmeros países, é fato que ela conseguiu sair da favela e se livrar parcialmente do fatalismo da vida em condições subumanas, terminando os seus dias, ainda pobre, morando numa casa em área rural, assim como na infância. Seu maior legado é que Quarto de despejo torna-se uma obra imprescindível para a compreensão do descaso que o país ainda mantém com os marginalizados. Os trechos finais do diário, lacônicos e incisivos, revelam a prisão cotidiana miserável em que Carolina Maria de Jesus e tantos outros como ela ainda se encontram: