Carolina Maria de Jesus nasceu em 1914, no interior de Minas Gerais. De seu pai, pouco se sabe, pois a autora apenas se referiu a ele como um boêmio desinteressado pelo trabalho. Já a mãe lutou para que Carolina de Jesus tivesse instrução escolar: conseguiu que a filha estudasse ao menos dois anos no Colégio Allan Kardec, provavelmente em 1923 e 1924, na cidade de Sacramento, Minas Gerais. O estudo até o segundo ano do Ensino Fundamental I foi toda a instrução escolar formal que a escritora teve durante a vida, o que não a impediu de se interessar pela leitura de livros e revistas que encontrava descartados, provocando-lhe o desejo de escrever. Sobre a mãe e a própria noção de maternidade, ela registra:
Eu nada tenho que dizer da minha saudosa mãe. Ela era muito boa. Queria que eu estudasse para professora. Foi as contigencias da vida que lhe impossibilitou concretizar o seu sonho. Mas ela formou o meu carater, ensinando-me a gostar dos humildes e dos fracos. É porisso que eu tenho dó dos favelados. Se bem que aqui tem pessoas dignas de despreso, pessoas de espirito perverso. Esta noite a Dona Amelia e o seu companheiro brigaram. Ela disse-lhe que ele está com ela por causa do dinheiro que ela lhe dá. Só se ouvia a voz de Dona Amelia que demonstrava prazer na polemica. Ela teve varios filhos. Distribuio todos. Tem dois filhos moços que ela não os quer em casa. Pretere os filhos e prefere os homens. (p. 48-49)
Após passar a infância em Sacramento, trabalhando como lavradora e empregada doméstica, Carolina Maria de Jesus muda-se com a mãe para Franca, interior de São Paulo, trabalhando também como auxiliar de cozinha. Após a morte da mãe, a escritora, já com 23 anos, migra para a cidade de São Paulo em busca de melhores condições de vida. Ela continua a trabalhar como empregada doméstica e habita vários cortiços na região central da grande metrópole, até ser obrigada a morar num barracão precário na favela do Canindé, às margens do Rio Tietê. Lá, Carolina de Jesus reside entre os anos de 1948 e 1961. A atividade exercida por ela, e que lhe garante o mínimo de sustento na cidade grande, é catar materiais recicláveis pelas ruas para revendê-los. É também no lixo que encontra os cadernos com folhas ainda em branco que se tornam as páginas de seus diários, nos quais, a partir de 1955, inicia a escrita do seu cotidiano, revelando um olhar sensível e contundente, de quem consegue enxergar, como ninguém, as várias facetas da exclusão social no Brasil:
As vezes eu ligo o radio e danço com as crianças, simulando uma luta de boxe. Hoje comprei marmelada para eles. Assim que dei um pedaço a cada um percebi que eles me dirigiam um olhar terno. E o meu João José disse:
– Que mamãe bôa!
Quando as mulheres feras invade o meu barraco, os meus filhos lhes joga pedras. Elas diz:
– Que crianças mal educadas!
Eu digo:
– Os meus filhos estão defendendo-me. Vocês são incultas, não pode compreender. Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudos que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me fornece os argumentos.
A Silvia pediu-me para retirar o seu nome do meu livro. Ela disse:
– Você é mesmo uma vagabunda. Dormia no Albergue Noturno. O seu fim era acabar na maloca.
Eu disse:
– Está certo. Quem dorme no Albergue Noturno são os indigentes. Não tem recurso e o fim é mesmo nas malocas,
e Você, que diz nunca ter dormido no Albergue Noturno, o que veio fazer aqui na maloca? Você era para estar residindo numa casa própria. Porque a sua vida rodou igual a minha?
Ela disse:
– A única coisa que você sabe fazer é catar papel.
Eu disse:
– Cato papel. Estou provando como vivo!
... Estou residindo na favela. Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui. Espero que os políticos estingue as favelas.
Há os que prevalecem do meio em que vive, demonstram valentia para intimidar os fracos. Há casa que tem cinco filhos e a velha é quem anda o dia inteiro pedindo esmola. Há as mulheres que os esposos adoece e elas no penado da enfermidade mantem o lar. Os esposos quando vê as esposas manter o lar, não saram nunca mais.
... Hoje não saí para catar papel. Vou deitar. Não estou cançada e não tenho sono. Hontem eu bebi uma cerveja. Hoje estou com vontade de beber outra vez. Mas não vou beber. Não quero viciar. Tenho responsabilidade. Os meus filhos! E o dinheiro gasto em cerveja faz falta para o escencial. O que eu reprovo nas favelas são os pais que mandam os filhos comprar pinga e dá as crianças para beber.
E diz:
– Ele tem lumbriga.
Os meus filhos reprova o álcool. O meu filho João José diz:
– Mamãe, quando eu crescer, eu não vou bebe. O homem que bebe não compra roupas. Não tem radio, não faz uma casa de tijolo. (p. 20)
Moradora de favela, mulher negra, mãe solteira, pobre e marginalizada: é dessas múltiplas facetas que Carolina Maria de Jesus constrói seus relatos biográficos em seu diário. As agruras do dia a dia vêm acompanhadas de reflexões sobre o sofrimento; a fome que acomete a escritora e os três filhos; a denúncia contra a demagogia e a falta de escrúpulos dos políticos; a falta de perspectivas e a vida mesquinha no ambiente da favela; a obsessão em escrever para transformar sua vida; e, sobretudo, o desejo de obter reconhecimento como escritora. Esses elementos são expostos nos trechos a seguir:
Há de existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá... isto é mentira! Mas, as miserias são reais.
... O que eu revolto é contra a ganancia dos homens que espremem uns aos outros como se espremesse uma laranja. (p. 46)
O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade.
E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal. (p. 49)
Em 1958, já com 44 anos, Carolina Maria de Jesus encontra-se casualmente com um jornalista chamado Audálio Dantas, que estava fazendo uma reportagem sobre a expansão das favelas nas margens do Rio Tietê. Chama a atenção dele aquela mulher que dizia aos demais que os colocaria em seu livro. Ele se interessa pelos cadernos de Carolina de Jesus e, impressionado com a originalidade, estilo e valor literário dos diários da catadora de papel, publica uma reportagem sobre a escritora, no jornal Folha da Noite: “O drama da favela escrito por uma favelada”.
Pouco tempo depois, em 1960, trabalhando na revista O Cruzeiro, de grande sucesso e circulação na época, o jornalista edita fragmentos do diário de Carolina de Jesus, empenhando-se posteriormente na organização dos escritos, os quais recebem o título Quarto de despejo: diário de uma favelada. A edição mantém o registro de acordo com a realidade de Carolina Maria de Jesus, com os mesmos desvios gramaticais e ortográficos praticados por ela em seus registros, respeitando, assim, a veracidade linguística de seu contexto.
Em prefácio à obra, na edição de 1993, Audálio Dantas escreve sobre o alcance das tiragens de Quarto de despejo, acentuando como os cerca de vinte cadernos encardidos que Carolina de Jesus guardava em seu barraco acabaram rompendo paradigmas:
O sucesso do livro – uma tosca, acabrunhada e até lírica narrativa do sofrimento do homem relegado à condição mais desesperada e humilhante de vida – foi também o sucesso pessoal de sua autora, transformada de um dia para o outro numa patética Cinderela, saída do borralho do lixo para brilhar intensamente sob as luzes da cidade.
Carolina, querendo ou não, transformou-se em artigo de consumo e, em certo sentido, num bicho estranho que se exibia, “como uma excitante curiosidade”’, conforme registrou o escritor Luiz Martins.
Dantas faz uma reflexão que retoma a metáfora usada por Carolina ao longo de seus diários:
O cenário em que foi escrito o diário já não é o mesmo. Parte dele deu lugar ao asfalto de uma nova avenida, por coincidência chamada Marginal. A Marginal do Tietê, que passa por ali onde até meados dos anos 1960 se erguia o caos semiurbano e sub--humano da favela do Canindé, em São Paulo. O resto foi ocupado por construções sólidas, ordenadas, limpas, aprumadas no lugar dos barracos cujos ocupantes foram para outros cantos da cidade, para outros quartos de despejo.
Nas próprias páginas do diário, Carolina de Jesus registra os encontros com Audálio Dantas e a ansiedade pela possibilidade de edição de seus escritos:
Quando cheguei e abri a porta, vi um bilhete. Conheci a letra do reporter. Perguntei a Dona Nena se ele esteve aqui. Disse que sim. (...) O bilhete dizia que a reportagem vai sair no dia 10, no Cruzeiro. Que o livro vai ser editado. Fiquei emocionada.
O senhor Manoel chegou. Disse-lhe que a reportagem vai sair 4ª feira e que o reporter quer levar o livro para imprimir.
– Eles ganham dinheiro nas tuas costas e não te pagam. Eles estão te embrulhando. Você não deve entregar-lhe o livro.
Eu não imprecionei com as ironias do senhor Manoel. (p. 170)
A notoriedade conquistada por Carolina Maria de Jesus promove o livro; dez mil exemplares são vendidos na primeira semana e a obra ganha diversas tiragens pela Editora Livraria Francisco Alves, chegando a cem mil exemplares em seis meses. A escritora até ganha algum dinheiro com as edições de Quarto de despejo, o que lhe possibilita comprar uma casa de alvenaria num bairro de classe média em São Paulo.
Quarto de despejo é traduzido em treze línguas e comercializado em mais de quarenta países, ampliando a popularidade da escritora. Porém, esse sucesso editorial é abalado por causa do golpe militar de 1964, que institucionaliza a censura a obras consideradas subversivas, e também dos sucessivos desentendimentos de Carolina de Jesus com as editoras, pois ela garante que não havia ganhado dinheiro suficiente com as publicações de seus escritos, ao passo que os editores enriqueciam. A seguinte passagem do diário destaca uma dessas contradições que marcariam toda a trajetória de Carolina:
As 9 e meia o reporter surgiu. Bradei:
– O senhor disse que estaria aqui as 9 e meia e não atrasou-se!
Disse-lhe que varias pessoas queriam vê-lo, porque apreciam as suas reportagens. (...) Entramos num taxi. A Vera estava contente porque estava de carro. Descemos no Largo do Arouche e o repórter começou a fotografar-me. Levou-me no prédio da Academia Paulista de Letras. Eu sentei na porta e puis o saco de papel a esquerda. O porteiro apareceu e disse para eu sair da porta. (...) O porteiro pegou o meu saco de catar papel, o saco que para mim tem um valor inestimavel, porque é por seu intermedio que eu ganho o pão de cada dia. O repórter apareceu e disse que foi ele quem mandou eu sentar no degrau. O porteiro deisse que não tinha permisso para deixar que quem quer que fosse sentar-se na porta do predio. (p. 165)
Após gastar o dinheiro que havia conquistado, Carolina de Jesus é fotografada novamente desempenhando a tarefa de catadora, para garantir o sustento da família. Ela não chega a obter o mesmo destaque com o novo livro, Casa de alvenaria (Diário de uma ex-favelada), no qual descreve as mudanças sociais que enfrentou e expõe o sentimento de amargura pelo ostracismo e pelas discrepâncias entre o anonimato de ex-moradora de favela e a fama que havia conquistado como escritora.
Carolina decide vender a casa na cidade e comprar um sítio em Parelheiros, nos arredores de São Paulo, atualmente região de periferia da capital paulista. Em seu terreno, passa a viver como na sua infância, numa pequena roça. Depois de Quarto de despejo (1961) e Casa de alvenaria (1963), ela publica Pedaços da Fome, seu único romance, obra que não alcança repercussão.
Aos 62 anos, Carolina Maria de Jesus falece. Diário de Bitita, obra escrita em forma de recordações de sua infância em Minas Gerais, é lançado postumamente. Ao longo das décadas, os escritos biográficos e a visão de mundo de Carolina de Jesus inspiraram a parcela intelectual que enxergava a autenticidade da autora, além do poder emocional e social dos escritos de quem possuía a experiência da pobreza, da fome e do preconceito racial inscritos no cotidiano. Para além de diários e romances, a autora também escreveu peças de radionovela, poesias, provérbios e até gravou um disco de sambas pela RCA Victor, em 1961, também intitulado Quarto de despejo, com suas próprias composições. Todavia, é nas palavras registradas ao longo dos pesados dias entre 1955 e 1960 que a autora consegue arrebatar leitores e denunciar a realidade miserável de um país injusto e corrompido como o Brasil:
Eu percebo que se este Diário for publicado vai maguar muita gente. Tem pessoas que quando me vê passar saem da janela ou fecham as portas. Estes gestos não me ofendem. Eu até gosto porque não preciso parar para conversar. (...) Quando passei perto da fabrica vi varios tomates. Ia pegar quando vi o gerente. Não aproximei porque ele não gosta que pega. Quando descarregam os caminhões os tomates caem no solo e quando os caminhões saem esmaga-os.
Mas a humanidade é assim. Prefere vê estragar do que deixar seus semelhantes aproveitar. Quando ele afastou-se eu fui pegar uns tomates. Depois fui catar mais papeis. Encontrei o Sansão. O carteiro. Ele ainda não cortou os cabelos.
Ele estava com os olhos vermelhos. Pensei: será que ele chorou? Ou está com vontade de fumar ou está com fome! Coisas tão comum aqui no Brasil. Fitei o seu uniforme descorado. O senhor Kubstchek que aprecia pompas devia dar outros uniformes para os carteiros. Ele olha-me com o meu saco de papel. Percebi que ele confia em mim. As pessoas sem apoio igual ao carteiro quando encontra alguem que condoi-se deles, reanimam o espirito. (p. 78)
Os relatos de Carolina de Jesus adquirem feitio de crônicas sobre a vida nas favelas brasileiras, denunciando a miséria com base nas peculiaridades do cotidiano dos marginalizados. A autora percebe que pode ser influente justamente por meio do lhe foi negado: a distinção intelectual. Impossibilitada de estudar, sem recursos para adquirir educação formal, vivendo de esmolas, doações e da venda de materiais recicláveis para depósitos, ela nunca perde o foco literário e a perspicácia, entrevendo no detalhe o que há de substancial nas desigualdades sociais:
Eu estava escrevendo. Ela perguntou-me:
– Dona Carolina, eu estou neste livro? Deixa eu ver!
– Não. Quem vai ler isto é o senhor Audálio Dantas, que vai publicá-lo.
– E porque é que eu estou nisto?
– Você está aqui por que naquele dia que o Armim brigou com você e começou a bater-te, você saiu correndo nua para a rua.
Ela não gostou e disse-me:
– O que é que a senhora ganha com isto?
... Resolvi entrar para dentro de casa. Olhei o céu com suas nuvens negras que estavam prestes a transformar-se em chuva. (p. 143)
Vale a pena ler o registro integral de um domingo de 1955, no qual se percebe a rotina da favela, as estratégias de sobrevivência da narradora, a distinta perspectiva que ela tem sobre política ao opinar sobre o episódio do atentado a Carlos Lacerda, conhecido opositor de Getúlio Vargas. No trecho, ela explicita o preconceito diário que enfrenta por ser mulher, negra e catadora, sem perder o viés lírico sobre sua existência, pela contemplação do mundo, possivelmente influenciada pelas leituras românticas que formaram seu arsenal literário:
17 de julho de 1955 Domingo. Um dia maravilhoso. O céu azul sem nuvem. O sol está tepido. Deixei o leito as 6,30. Fui buscar agua. Fiz café. Tendo só um pedaço de pão e 3 cruzeiros. Dei um pedaço a cada um, puis feijão no fogo que ganhei ontem do Centro Espirita da Rua Vergueiro 103. Fui lavar minhas roupas. Quando retornei do rio o feijão estava cosido. Os filhos pediram pão. Dei os 3 cruzeiros ao João José para ir comprar pão. Hoje é a Nair Mathias quem começou impricar com os meus filhos. A Silvia e o espôso já iniciaram o espetaculo ao ar livre. Êle está lhe espancando. E eu estou revoltada com o que as crianças presenciam. Ouvem palavras de baixo calão. Oh! se eu pudesse mudar daqui para um nucleo mais decente.
Fui na D. Florela pedir um dente de alho. E fui na D. Analia. E recebi o que esperava:
– Não tenho!
Fui torcer as minhas roupas. A D. Aparecida perguntou-me:
– A senhora está gravida?
– Não senhora – respondi gentilmente.
E lhe chinguei interiormente. Se estou gravida não é de sua conta. Tenho pavor destas mulheres da favela. Tudo quer saber! A lingua delas é como os pés de galinha. Tudo espalha. Está circulando rumor que eu estou gravida! E eu, não sabia!
Saí a noite, e fui catar papel. Quando eu passava perto do campo do São Paulo, varias pessoas saiam do campo. Todas branca, só um preto. E o preto começou insultar-me:
– Vai catar papel, minha tia? Olha o buraco, minha tia.
Eu estava indisposta. Com vontade de deitar. Mas, prossegui. Encontrei varias pessoas amigas e parava para falar. Quando eu subia a Avenida Tiradentes encontrei umas senhoras. Uma perguntou-me:
– Sarou as pernas?
Depois que operei, fiquei bôa, graças a Deus. E até pude dançar no Carnaval, com minha fantasia de penas. Quem operou-me foi o Dr. José Torres Netto. Bom médico. E falamos de politicos. Quando uma senhora perguntou-me o que acho do Carlos Lacerda, respondi concientemente:
– Muito inteligente. Mas não tem iducação. É um politico de cortiço. Que gosta de intriga. Um agitador.
Uma senhora disse que foi pena! A bala que pegou o major podia acertar no Carlos Lacerda.
– Mas o seu dia... chegará – comentou outra.
Varias pessoas afluiram-se. Eu, era o alvo da atenções. Fiquei apreensiva, porque eu estava catando papel, andrajosa (...) Depois, não mais quiz falar com ninguem, porque precisava catar papel. Precisava de dinheiro. Eu não tinha dinheiro em casa para comprar pão. Trabalhei até as 11:30. Quando cheguei em casa era 24 horas. Esquentei a comida, dei para a Vera Eunice, jantei e deite-me. Quando despertei, os raios solares penetrava pelas frestas do barracão. (p. 14-15)
O método de escrita de Carolina é pungente. Dados os fatores precários de produção de seus diários, além da pouca instrução a que teve acesso, preconceituosamente, se esperaria de uma catadora de papel um vocabulário limitado e uma exígua visão de mundo, restrita ao relato mesquinho sobre a vida na miséria. Carolina de Jesus, porém, supera tal preconceito e as expectativas negativas que sobre ela se abatem, revelando de modo intencional um estilo próprio, peculiarmente irônico em seu contexto,
sem deixar de lado uma vivacidade perspicaz na análise de seu cotidiano e das condições materiais dos pobres:
Hoje tem muito papel no lixo. Tem tantos catadores de papeis nas ruas. Tem os que catam e deitam-se embriagados. Conversei com um catador de papel.
– Porque é que não guarda o dinheiro que ganha?
Ele olhou-me com seu olhar de tristeza:
– A senhora me faz rir! Já foi o tempo que a gente podia guardar dinheiro. Eu sou um infeliz. Com a vida que levo não posso ter aspiração. Não posso ter um lar, porque um lar inicia com dois, depois vai multiplicando.
Ele olhou-me e disse-me:
– Porque falamos disso? O nosso mundo é a margem. Sabe onde estou dormindo? Debaixo das pontes. Eu estou doido. Eu quero morrer.
– Quantos anos tem?
– 24. Mas já enjoei da vida. (p. 183-184)
A favela é descrita por Carolina de Jesus com base no desânimo causado pelas adversidades financeiras e pela alegria de poder escrever para criar um refúgio intelectual, no qual a autora tenta se entender e se autoafirmar. Ao falar de si, ela tem consciência de que seus estados emocionais refletem todo um conjunto social e familiar condicionado à miséria e à precariedade extrema, porém sabe reconhecer que a escrita é seu refúgio poderoso, como comprovam os seguintes excertos de alta intensidade reflexiva:
... Eu fiz uma reforma em mim. Quero tratar as pessoas que eu conheço com mais atenção. Quero enviar um sorriso amavel as crianças e aos operarios.
... Recebi intimação para comparecer as 8 horas da noite na Delegacia do 12. Passei o dia catando papel. A noite os meus pés doiam tanto que eu não podia andar. Começou chover. Eu ia na Delegacia, ia levar o José Carlos. A intimação era para ele. O José Carlos está com 9 anos. (p. 28)
... O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.
Quem passa fome aprende a pensar no proximo, e nas crianças. (p. 29)
– “Dona Ida peço-te se pode me arranjar um pouco de gordura, para eu fazer uma sopa para os meninos. Hoje choveu e eu não pude ir catar papel. Agradeço. Carolina.”
... Choveu, esfriou. E o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A Vera começou pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetaculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos.
E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome! (p. 32)
... Quando eu estou com pouco dinheiro procuro não pensar nos filhos que vão pedir pão, pão, café. Desvio meu pensamento para o céu. Penso: será que lá em cima tem habitantes? Será que eles são melhores do que nós? Será que o predominio de lá suplanta o nosso? Será que as nações de lá é variada igual aqui na terra? Ou é uma nação unica? Será que lá existe favela? E se lá existe favela será que quando eu morrer eu vou morar na favela? (p. 50)
Deixei o leito furiosa. Com vontade de quebrar e destruir tudo. Porque eu tinha só feijão e sal. E amanhã é domingo.
... Fui na sapataria retirar os papeis. Um sapateiro perguntou-me se o meu livro é comunista. Respondi que é realista. Ele disse-me que não é aconselhável escrever a realidade. (p. 108)
A carência de condições materiais, no entanto, não é desculpa para Carolina de Jesus não tentar manter seus filhos dignamente. Ao contrário, ela ressalta seu amor e desvelo pelos três filhos, tentando protegê-los do ambiente hostil da favela, das constantes agressões das vizinhas (sobre o filho menor), das maledicências de que sempre é alvo. Os moradores da favela chegam a ser documentados com um tom de denúncia ou mesmo de moralismo, quando, por exemplo, ela aborda a perda da dignidade e a violência doméstica sofrida pelas mulheres; o alcoolismo que suga o dinheiro e a perseverança dos pobres trabalhadores;
a promiscuidade sexual; e o machismo da sociedade, devido ao fato de ela própria não ter um marido e ser criticada por isso. Pode-se perceber como essas reflexões são bastante elaboradas na mente de Carolina de Jesus nos trechos a seguir:
Veio a D. Silvia reclamar contra os meus filhos. Que os meus filhos são mal iducados. Mas eu não encontro defeito nas crianças. Nem nos meus nem nos dela. Sei que criança não nasce com senso. Quando falo com uma criança lhe dirijo palavras agradaveis. O que aborrece-me é elas vir na minha porta perturbar a minha escassa tranquilidade interior (...) Mesmo elas aborrecendo-me, eu escrevo. Sei dominar meus impulsos. Tenho apenas dois anos de grupo escolar, mas procurei formar o meu caráter. A única coisa que não existe na favela é solidariedade.
Veio o peixeiro Senhor Antonio Lira e deu-me uns peixes. Vou fazer o almoço. As mulheres saíram, deixou-me em paz por hoje. Elas já deram o espetáculo. A minha porta atualmente é theatro. Todas crianças jogam pedras, mas os meus filhos são os bodes expiatorios. Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas. Elas tem marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de caridade.
Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer especie de trabalho para mantê-los.
E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos sossegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas.
Não casei e não estou descontente. Os que preferiu me eram soezes e as condições que eles me impunham eram horriveis. (p. 16-17)
Tenho que levar a minha filha Vera Eunice. Ela está com dois anos, e não gosta de ficar em casa. Eu ponho o saco na cabeça e levo-a nos braços. Suporto o peso do saco na cabeça e suporto o peso de Vera Eunice nos braços. Tem hora que revolto-me. Depois domino-me. Ela não tem culpa de estar no mundo.
Refleti: preciso ser tolerante com os meus filhos. Eles não tem ninguém no mundo a não ser eu. Como é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar.
Aqui, todas impricam comigo. Dizem que falo muito bem. Que sei atrair os homens. (...) Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo. (p. 22)
As décadas de 1950-1960 representam anos de modernização para o país, sobretudo para uma cidade como São Paulo, mas o que se lê em Quarto de despejo é o avesso: o sistema político e social engendra uma profunda desigualdade que impossibilita uma catadora de materiais recicláveis, uma mãe solteira negra, uma moradora de favela de ascender financeiramente.
À lustrosa faceta moderna desse Brasil, sobrepõe-se a sujeira dos becos, os barracos da favela, as doenças que já deveriam ter sido controladas, mas que vitimizam os pobres, a preocupação imediata com o dinheiro para comprar o mínimo de comida que alimentará o máximo de pessoas:
Deixei o leito as 6 e meia e fui buscar agua. Estava na fila enorme. E o pior de tudo é a meledicencia que é o assunto principal. Tinha uma preta que parece que foi vacinada com agulha de vitrola. Falava do genro que brigava com sua filha. E a Dona Clara ouvia porque era a única que lhe dava atenção.
Atualmente é difícil para pegar agua, porque o povo da favela duplica-se. E a torneira é só uma. (p. 109)
Carolina de Jesus é, portanto, singular em vários aspectos. Seus depoimentos alcançam dimensão estética, antropológica e política, na medida em que uma catadora de material reciclável utiliza os papéis dos quais tira sua subsistência – o próprio “lixo”, no caso, os cadernos descartados que ela vai encontrando – para fazer denúncias por meio da escrita, revelando as infinitas contradições existentes no país. Nada poderia ser mais contraditório e revelador:
De manhã o padre veio dizer missa. Ontem ele veio com o carro capela e disse aos favelados que eles precisam ter filhos. Penso: porque há de ser o pobre quem há de ter filhos – se filhos de pobre tem que ser operario?
Na minha fraca opinião quem deve ter filhos são os ricos, que podem dar alvenaria para os filhos. E eles podem comer o que desejam.
Quando o carro capela vem na favela surge vários debates sobre religião. As mulheres dizia que o padre disse-lhes que podem ter filhos e quando precisar de pão podem ir buscar na igreja.
Para o senhor vigario, os filhos de pobres criam só com pão. Não vestem e não calçam. (p. 142)
A potência discursiva dos cadernos de Carolina de Jesus não reside somente na reprodução de falas ou acontecimentos da favela, mas na vazão dada a uma realidade interior que evoca desejos e sonhos, recriando o universo social dos marginalizados por meio de sua subjetividade:
O senhor Dario ficou horrorizado com a primitividade em que eu vivo. Ele olhava tudo com assombro. Mas ele deve aprender que a favela é o quarto de despejo de São Paulo. E que eu sou uma despejada.
Seu Gino veio dizer-me para eu ir no quarto dele. Que eu estou lhe despresando. Disse-lhe: Não!
É que eu estou escrevendo um livro, para vende-lo. Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela. Não tenho tempo para ir na casa de ninguém. Seu Gino insistia. Ele disse:
– Bate que eu abro a porta.
Mas o meu coração não pede para eu ir no quarto dele.
Quando [o senhor Manoel] passa uns dias sem vir aqui, eu fico lhe chingando. Falo: quando ele chegar eu quero expancar-lhe e lhe jogar agua. Quando êle chega eu fico sem ação.
Ele disse-me que quer casar-se comigo. Olho e penso: este homem não serve para mim. Parece um ator que vai entrar em cena. Eu gosto dos homens que pregam pregos, concertam algo em casa.
Mas quando eu estou deitada com ele, acho que ele me serve.
... Fiz arroz e puis agua esquentar para eu tomar banho. Pensei nas palavras da mulher do Policarpo que disse que quando passa perto de mim eu estou fedendo bacalhau. Disse-lhe que eu trabalho muito, que havia carregado mais de 100 quilos de papel. E estava fazendo calor. E o corpo humano não presta.
Quem trabalha como eu tem que feder! (p. 136)
Em meio ao seu discurso social, a autora consegue fazer brotar de sua escrita lirismo e independência de ideias. As condições precárias de vida promovidas pelo crescimento desordenado de grandes cidades como São Paulo contrastavam com a euforia desenvolvimentista dos “anos dourados” de Juscelino Kubitschek. As favelas se destacavam pela miséria explícita. A realidade urbana brasileira, sendo narrada por alguém que padece diariamente de fome e luta para conseguir a subsistência do dia para si e pros filhos, sem a mínima ideia de como será o dia seguinte, é retratada não somente com base na problemática da miséria, mas também no descaso governamental com a população marginalizada. As injustiças solidificadas após séculos de dominação colonialista descambam num registro das injustiças contemporâneas:
... Hoje eu estou alegre. Eu estou procurando aprender viver com o espirito calmo. Acho que é porque estes dias eu tenho tido o que comer.
... Quando eu vi os empregados da Fabrica (...) olhei os letreiros que eles trazem nas costas e escrevi estes versos:
Alguns homens em São Paulo
Andam todos carimbados
Traz um letreiro nas costas
Dizendo onde é empregado.
(p. 121)
Ao exercer a atividade da escrita, Carolina de Jesus tenta transformar a própria vida em depoimento literário, e o narrado se transmuta em páginas biográficas e sociais. A apreensão do sofrimento, da indigência causada pela fome, só é possível porque a autora a manifesta por escrito, distanciando-se para se olhar e, assim, revoltar-se. Seu drama, ela percebe, é maior que os dramas que escuta na rádio – as radionovelas, no caso –, por isso recusa a humilhação e sonha com uma vida mais plena, longe da favela:
... As vezes mudam algumas famílias para a favela, com crianças. No inicio são iducadas, amaveis. Dias depois usam o calão, são soezes e repugnantes. São diamantes que transformam em chumbo. Transformam-se em objetos que estavam na sala de visita e foram para o quarto de despejo.
... Para mim o mundo em vez de evoluir está retornando a primitividade. Quem não conhece a fome há de dizer: “Quem escreve isto é louco”. Mas quem passa fome há de dizer:
– Muito bem, Carolina. Os gêneros alimenticios deve ser ao alcance de todos.
Como é horrível ver um filho comer e perguntar: “Tem mais?”. Esta palavra “tem mais” fica oscilando dentro do cerebro de uma mãe que olha as panelas e não tem mais. (p. 38)
O exercício diário da escrita, para Carolina de Jesus, assinala uma luta para se opor às condições sociais de existência na favela, pois ela não se identifica com os que lá estão, seja pelo seu nível intelectual, que causa antipatia nos moradores, seja pela não aceitação da pobreza e da fome. Ao inscrever a favela Canindé, o “quarto de despejo” da sociedade, no ambiente erudito das letras, acaba por “atrapalhar” as configurações artísticas, geográficas e culturais existentes no imaginário brasileiro, afinal é uma mulher negra, moradora de favela, quem reafirma sua potência, vivacidade e resistência. Carolina está plenamente consciente de que o lugar do negro, do pobre, da mulher não é necessariamente na favela:
27 de novembro ... Eu estou contente com os meus filhos alfabetizados. Compreendem tudo. O José Carlos disse-me que vai ser um homem distinto e que eu vou tratá-lo de Seu José.
Já tem pretensões: quer residir em alvenaria.
... Eu fui retirar os papelões. Ganhei 55 cruzeiros. Quando eu retornava para a favela encontrei com uma senhora que se queixava porque foi despejada pela Prefeitura.
Como é horrivel ouvir um pobre lamentando-se. A voz do pobre não tem poesia.
Para reanimá-la eu disse-lhe que havia lido na Biblia que Deus disse que vai concertar o mundo. Ela ficou alegre e perguntou-me.
– Quando vai ser isto, Dona Carolina? Que bom! E eu que já queria me suicidar!
Disse-lhe para ela ter paciencia e esperar que Jesus Cristo vem ao mundo para julgar os bons e os maus.
– Ah! então eu vou esperar.
Ela sorriu.
... Despedi-me da mulher, que já estava mais animada. Parei para concertar o saco que deslisava da minha cabeça. Contemplei a paisagem. Vi as flores roxas. A cor da agrura que está nos corações dos brasileiros famintos.
(p. 140-141)
A fome percorre todo esse itinerário urbano conhecido de perto por Carolina de Jesus, cujos escritos repletos de desvios gramaticais, erros de concordância, pontuação inadequada, mescla de termos coloquiais com outros mais solenes explicitam não só a crueza da ausência de educação escolar formal, a qual é um direito básico do cidadão, mas, principalmente,
a autenticidade de uma mulher que queria sobrepor-se à condição miserável por meio do intelecto:
Passei no empório, vendi um litro para o senhor Eduardo por 3 cruzeiros para pagar o onibus. Quando cheguei no ponto de onibus encontrei com o Toninho da Dona Adelaide. Ele trabalha na Livraria Saraiva. Disse-lhe:
– Pois é, Toninho, os editores do Brasil não imprime o que escrevo porque sou pobre e não tenho dinheiro para pagar. Por isso eu vou enviar o meu livro para os Estados Unidos. Ele deu-me vários endereços de editoras que eu devia procurar.
... Vinha pela rua catando os pedaços de ferro que encontrava. Passei na Dona Julita e pedi comida. Ela esquentou comida para mim. A Dona Julita deu-me sopa, café e pão. Eu comi lá na Dona Julita. Era treis horas. Fiquei indisposta. Os moveis girando ao meu redor, é que o meu organismo não está habituado com as reconfortantes. (p. 133)
Se o realismo das descrições feitas por Carolina pode chocar os desavisados que se detiverem sobre seus escritos, os relatos da fome tornam-se ainda mais poderosos. A revolta da autora, junto a sua força e resistência diante das adversidades, impressiona:
O João entrou dizendo que estava com dor de barriga. Percebi que foi por ele ter comido melancia deturpada. Hoje jogaram um caminhão de melancia perto do rio.
Não sei porque é que estes comerciantes inconscientes vem jogar seus produtos deteriorados aqui perto da favela para as crianças ver e comer.
... Na minha opinião os atacadistas de São Paulo estão se divertindo com o povo igual os Cesar quando torturava os cristãos. Só que o Cesar da atualidade supera o Cesar do passado. Os outros era perseguido pela fé. E nós, pela fome!
Naquela época, os que não queriam morrer deixavam de amar a Cristo.
Mas nós não podemos deixar de comer. (p. 146)
Não é de se admirar que Carolina de Jesus tenha dado uma cor para a fome: o amarelo. Mesmo tocada pela maior das desgraças sociais, a escritora, ainda assim, consegue criar diários que esteticamente expõem a crueldade de um sistema social injusto que se abate sobre os miseráveis, com a complacência calada dos ricos:
Percebi que no Frigorifico jogam creolina no lixo, para o favelado não catar a carne para comer. Não tomei café,
ia andando meio tonta. A tontura da fome é pior do que a do alcool. A tontura do alcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrivel ter só ar dentro do estomago.
Comecei sentir a boca amarga. Pensei: já não basta as amarguras da vida? Parece que quando eu nasci o destino, marcou-me para passar fome. Catei um saco de papel. Quando eu penetrei na rua Paulino Guimarães, uma senhora me deu uns jornais. Eram limpos, eu deixei e fui para o deposito. Ia catando tudo que encontrava. Ferro, lata, carvão, tudo serve para o favelado. O Leon pegou o papel, recibi seis cruzeiros. Pensei guardar o dinheiro para comprar feijão. Mas, vi que não podia porque o meu estomago reclamava e torturava-me.
... Resolvi tomar uma media e comprar um pão. Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos.
... A comida no estomago é como o combustivel nas maquinas. Passei a trabalhar mais depressa. O meu corpo deixou de pesar. Comecei andar mais depressa. Eu tinha impressão que eu deslisava no espaço. Comecei sorrir como se estivesse presenciando um lindo espetaculo. E haverá espetaculo mais lindo do que ter o que comer? Parece que eu estava comendo pela primeira vez na minha vida. (p. 44)
Carolina de Jesus relata sem autopiedade o que lhe dizem, porque sabe que nas falas e pensamentos dos moradores das favelas se encontra a verdade social. Não há pudor por parte da autora. Ela assume sua condição degradante abertamente, até por ter noção de que, mesmo não sendo a única, é uma das poucas capazes de denunciar a desigualdade social com tamanha veemência:
Passei na sapataria. O senhor Jacó estava nervoso. Dizia que se viesse o comunismo ele havia de viver melhor, porque o que a fabrica produz não dá para as despesas.
Antigamente era os operarios que queria o comunismo. Agora, sao os patroes. O custo de vida faz o operario perder a simpatia pela democracia.
O saco de papeis estava muito pesado e um operario ajudou-me erguê-lo. Estes dias eu carreguei tanto papel que o meu ombro esquerdo está ferido.
Quando eu passava na Avenida Tiradentes, uns operarios que saíam da fabrica disse-me:
– Carolina, já que você gosta de escrever, instiga o povo para adotar outro regime.
Um operario perguntou-me:
– É verdade que você come o que encontra no lixo?
– O custo de vida nos obriga a não ter nojo de nada. Temos que imitar os animais. (p. 112)
Os diários de Carolina Maria possuem, portanto, uma dimensão estética e etnográfica, dado o realismo existente na descrição pormenorizada do cotidiano da favela e da exclusão a que os indigentes são submetidos na cidade. Esse caráter realista, associado à pesquisa feita a partir do olhar da autora, descreve não só o modo de viver dos chamados favelados, mas também todo um universo social próprio. E isso pode ser entendido pelos escritos da própria autora:
Ontem eu comprei açucar e bananas. Os meus filhos comeram banana com açucar, porque não tinha gordura para fazer comida. Pensei no senhor Tomás que suicidou-se. Mas se os pobres do Brasil resolver suicidar-se porque estão passando fome, não ficaria nenhum vivo. (p. 162)
Despejada do centro urbano, à Carolina de Jesus coube a favela – o quarto de despejo dos indigentes recusados pela sociedade, segundo ela. Sua escrita se torna, então, uma forma de elaborar e redefinir a apreensão do mundo e das relações políticas, pois a autora se encontra num momento histórico fundamental: a eleição de Juscelino Kubitschek para a Presidência da República (tendo em vista que ela começa a escrever seus diários em 1955). A Era JK, como ficou conhecido esse momento da história do Brasil, apoiava-se num discurso desenvolvimentista devido ao processo de industrialização, com a promessa de solução para todas as injustiças sociais:
Eu não gosto do Kubstchek. O homem que tem um nome esquisito que o povo sabe falar mas não sabe escrever. (p. 78)
Em seu diário, Carolina contrasta a ideologia desenvolvimentista de JK com sua condição de vida na favela, o que a impede de nutrir simpatias pelo presidente:
O que o senhor Juscelino tem de aproveitavel é a voz. Parece um sabiá e a sua voz é agradavel aos ouvidos. E agora,
o sabiá está residindo na gaiola de ouro que o Catete. Cuidado sabiá, para não perder esta gaiola, porque os gatos quando estão com fome contempla as aves nas gaiolas. E os favelados são os gatos. Tem fome. (p. 35)
Carolina de Jesus jamais perde a oportunidade de rechaçar o populismo político dos candidatos que visitam a favela buscando votos em troca de pequenos presentes ou falsos abraços. O oportunismo daqueles que se valem da vulnerabilidade dos miseráveis é notório e fica ainda mais evidente pelo olhar de quem sofre as consequências da negligência política,
ou seja, os desfavorecidos, a quem se reservam o lixo e o “quarto de despejo”. A sequência de excertos comprova a argúcia da análise política e social de Carolina de Jesus:
Tem noite que eles improvisam uma batucada e não deixa ninguem dormir. Os visinhos de alvenaria já tentaram com abaixo assinado retirar os favelados. Mas não conseguiram. Os visinhos das casas de tijolos diz:
– Os politicos protegem os favelados.
Quem nos protege é o povo e os Vicentinos. Os politicos só aparecem aqui nas epocas eleitoraes. O senhor Cantidio Sampaio quando era vereador em 1953 passava os domingos aqui na favela. Ele era tão agradavel. Tomava nosso café, bebia nas nossas xícaras. Ele nos dirigia as suas frases de viludo. Brincava com nossas crianças. Deixou boas impressões por aqui e quando candidatou-se a deputado venceu. Mas na Camara dos Deputados não criou um progeto para beneficiar o favelado. Não nos visitou mais.
... Eu classifico São Paulo assim: O Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos. (p. 32)
Eu não ia comer porque o pão era pouco. Será que é só eu que levo esta vida? O que posso esperar do futuro? Um leito em Campos do Jordão. Eu quando estou com fome quero matar o Janio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos politicos. (p. 33)
Abri a janela e vi as mulheres que passam rapidas com seus agasalhos descorados e gastos pelo tempo. Daqui a uns tempos estes palitol que elas ganharam de outras e que de há muito devia estar num museu, vão ser substituidos por outros. É os politicos que há de nos dar. Devo incluir-me, porque eu também sou favelada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo. (p. 37)
De quatro em quatro anos muda-se os politicos e não soluciona a fome, que tem a sua matriz nas favelas e as sucursaes nos lares dos operarios.
... Quando eu fui buscar agua vi uma infeliz caida perto da torneira porque ontem dormiu sem jantar. É que ela está desnutrida. Os medicos que nós temos na politica sabem disto. (p. 40)
Enquanto os políticos se reelegem, alcançando poder, fama e dinheiro, os favelados, sobretudo as crianças, continuam à mercê da violência cotidiana. Carolina sempre registra o afeto pelos três filhos em seus diários. Apreensiva por deixá-los a sós porque precisa sair para catar papel e metais para vender, sabe que eles estão expostos ao que a rua tem a oferecer: a marginalidade. Neste episódio em que vai buscar um dos filhos no Juizado de Menores, na rua Asdrúbal Nascimento,
a reflexão de Carolina é tocante, metaforizando a proposta que a obra da autora pretende alcançar, demonstrando como os moradores das favelas são os enjeitados pela sociedade:
Eu não sei andar a noite. A fusão das luzes desviam-me do roteiro. Preciso ir perguntando. Eu gosto da noite só para contemplar as estrelas sintilantes, ler e escrever. Durante a noite há mais silencio.
Cheguei na rua Asdrúbal Nascimento, o guarda mandou-me esperar. Eu contemplava as crianças; Umas choravam, outras estavam revoltadas com a interferência da Lei que não lhes permite agir a sua vontade. O José Carlos estava chorando. Quando ouviu a minha voz ficou alegre. Percebi o seu contentamento. Olhou-me. E foi o olhar mais terno que eu já recebi até hoje.
... As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. (p. 37)
Em outro trecho do diário, Carolina registra o olhar ingênuo sobre as instituições governamentais que deveriam amparar os menores, mas que se tornam verdadeiras escolas de criminalidade, por força da convivência entre vários jovens que precisam de suporte, mas são expostos a todo tipo de violência. Aparecem na favela dois desses menores infratores fugitivos do Juizado de Menores, os quais são levados até o barracão pelo filho de Carolina. Para ela, internar os filhos no Juizado os ajudaria a sobreviver mais dignamente, pensando em como o Estado seria capaz de cuidar das crianças. O relato dos fugitivos comprova justamente o oposto:
Contaram-me os horrores do Juizado. Que passam fome, frio e que apanham initerruptamente. Perguntaram se eu podia arranjar-lhes umas camisas. Dei-lhes as camisas e as calças. Perguntei-lhes os nomes. O mulato é Antonio e o branco é Nelson. Perguntei-lhes se sabiam ler. Responderam que sim. Dei-lhes café. Falaram que residem na Vila Maria e que tem mãe. Aconselharam meus filhos para ser bons para mim. Que os filhos estão melhor com as mães. Que a coisa melhor do mundo é a mãe. Eles pegaram as roupas que eu dei-lhes. A calça do Nelson tinha tantos remendos que podia pesar 3 quilos. Quando eles sairam olharam o numero do meu barracão e pediu-me para não internar o João que a comida é deficiente. Que eles era obrigado a lavar louça. Que se uma criança jogar fora o resto da comida do lixo, que eles obriga a criança catar e comer.
Os meus filhos ficaram horrorisados com a narração dos fugitivos. Decidi não internar o João porque ele tem apetite.
O que eu observei é que eles queriam livrar-se das roupas amarelas.
Os meninos perguntaram o meu nome e saíram sorrindo para mim. Penso: porque será que os meninos que fogem do Juizado vem difamando a organisação? Percebi que no Juizado as crianças degrada a moral. Os Juizes não tem capacidade para formar o carater das crianças. O que é que lhes faltas? Interesse pelos infelizes ou verba do Estado?
Em 1952 eu procurava ingressar na Vera Cruz e fui no Juizado falar com o Dr. Nascimento se havia possibilidade de internar os meus filhos. Ele disse-me que se os meus filhos fossem para o Abrigo que ia sair ladrões.
Fiquei horrorisada ouvindo um Juiz dizer isto. (p. 88)
A voz da mulher, o sofrimento dos negros por causa do racismo, a fome dos pobres, a exclusão social dos brasileiros sem emprego formal, a carência de educação de qualidade, o desespero de quem nasceu miserável e não consegue enxergar saídas para ascender e a rotina de uma mãe que luta pela subsistência dos filhos sem a presença ou ajuda de qualquer companhia ainda não haviam aparecido na literatura brasileira de maneira tão verossímil e poderosa:
... Encontrei a Rosalina que estava discutindo com o Hélio. Ele não quer que fala que ele e a Olga pede esmola. A Rosalina dizia que ela é sosinha e sustenta 3 filhos. É que ela não sabe que o seu filho Celso anda dizendo que quer fugir de casa porque tem nojo dela. Acha a mãe muito barbara e avarenta. Ele diz que queria ser meu filho. Então eu lhe digo:
– Se voce fosse meu filho, voce era preto. E sendo filho da Rosalina voce é branco.
Ele respondeu-me:
– Mas se eu fosse teu filho eu não passava fome. A mamãe ganha pão duro e nos obriga a comer os pães duro até acabar.
Segui pensando na desventura das crianças que desde pequeno lamenta sua condição no mundo. Dizem que a Princesa Margareth da Inglaterra tem desgosto de ser princesa. São os dilemas da vida. (p. 104)
Carolina Maria de Jesus aparece na literatura brasileira, por assim dizer, como uma espécie de contraponto e, ao mesmo tempo, de continuidade ao que já se havia iniciado no Pré-Modernismo, no começo do século XX, e, principalmente,
na Segunda Fase do Modernismo, entre 1930-1945, através do olhar de escritores burgueses – os quais, quando muito, com um passado de pobreza, foram remediados. Como exemplo, cabe chamar atenção à obra de Lima Barreto, escritor negro e morador da periferia carioca, cujas narrativas só obtiveram reconhecimento anos depois das décadas de
1910-1920, quando a voz combativa do autor apontava as mazelas sociais e o racismo do brasileiro. No caso de Carolina, o preconceito multiplica-se, pois se trata de uma favelada que pretende alcançar o universo das letras para denunciar sua realidade desgraçada pela pobreza:
Quando eu vou na cidade tenho a impressão que estou no paraizo. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da America do Sul está enferma. Com as suas ulceras. As favelas. (p. 85)
Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a Historia do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor da patria. Então eu dizia para a minha mãe:
– Porque a senhora não faz eu virar homem?
Ela dizia:
– Se você passar por debaixo do arco-iris você vira homem.
Quando o arco-iris surgia eu ia correndo na sua direção. Mas o arco-iris estava sempre distanciando. Igual os politicos distante do povo. Eu cançava e sentava. Depois começava a chorar. Mas o povo não deve cançar. Não deve chorar. Deve lutar para melhorar o Brasil para os nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo. Eu voltava e dizia para a mamãe:
– O arco-iris foge de mim.
... Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são os lugares do lixo e dos marginais. Gente da favela é considerado marginais. Não mais se vê os corvos voando as margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituíram os corvos. (p. 53-54)
A própria publicação de Quarto de despejo foi acompanhada de polêmicas que até hoje são levantadas acerca do valor literário da obra. Primeiramente, trata-se das anotações de um diário, ou seja, uma obra legitimamente autobiográfica, isto é, autor, narrador e personagem são coincidentes. Em segundo lugar, cabe ressaltar que a voz de mulher negra favelada da autora representa uma grande parcela de excluídos da sociedade. Em terceiro lugar, os escritos representam as confissões narrativas de uma pessoa que reflete sobre uma dinâmica social urbana sob a ótica dos pobres, ou seja, não são meros registros sobre a marginalização dos miseráveis, mas textos escritos pelo punho dos próprios marginalizados. Sendo assim, Quarto de despejo não se encaixava nos cânones existentes na literatura brasileira até então. Encara-se a obra de Carolina de Jesus, portanto, como precursora da literatura de alteridade no Brasil – isso significa que seu texto, embora pessoal (diário), abre espaço para a voz e o lugar do outro que ele representa – ou de uma literatura marginal, isto é, feita às margens da produção canônica, tanto geográfica quanto socialmente:
Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me:
– É pena você ser preta.
Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta. (...) O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém. (p. 64)
Ao seguir a ortografia original dos cadernos de Carolina Maria de Jesus, a publicação de Quarto de despejo amplifica a violência da exclusão social, pois o leitor se pergunta como alguém naquelas condições miseráveis, com tão pouco acesso à educação, impossibilitada de voltar à escola, poderia produzir conteúdo tão verdadeiro e profundamente lírico em alguns momentos, por meio justamente da escrita, essa habilidade cujo domínio pertenceria à elite intelectual do país. Trata-se, obviamente, de um preconceito arraigado nessa parcela da sociedade: o de que indivíduos com pouca instrução não seriam capazes de elaborações mais profundas de pensamento ou reflexão, sobretudo pela escrita. O depoimento de Carolina, a seguir, é tocante e ajuda a pensar sobre tais noções preconcebidas:
Eu deixei o leito as 3 da manhã porque quando a gente perde o sono começa pensar nas misérias que nos rodeia. (...) Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata a as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas qualidades. (...) É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela.
Fiz o café e fui carregar agua. Olhei o céu, a estrela Dalva já estava no céu. Como é horrivel pisar na lama.
As horas que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginarios. (p. 58)
Os diários de Carolina de Jesus explicitam como a escritora tinha plena consciência de sua condição marginal, o que a leva a revoltar-se contra as mazelas sociais e hipocrisias que presencia, tornando o exercício da escrita também uma maneira de pedir ajuda:
A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro. (p. 167)
Para ela, escrever é uma forma de se dar conta de seu próprio cotidiano de exclusão, não se acostumando a ele, mas, sim, revendo-o por outro ângulo, porque se conformar significaria ser derrotada pelas adversidades, atitude avessa ao modo de vida da autora:
A D. Mariana lamentava que seu esposo estava demorando a regressar. Puis as roupas para quarar e vim fazer o almoço. Quando cheguei em casa encontrei a D. Francisca brigando com meu filho João José. Uma mulher de quarenta anos discutindo com uma criança de seis anos. Puis o menino para dentro e fechei o portão. Ela continuou falando. Para fazer ela calar é preciso lhe dizer:
– Cala a boca tuberculosa!
Não gosto de aludir os males físicos porque ninguém tem culpa de adquirir moléstias contagiosas. Mas quando a gente percebe que não pode tolerar a impricancia do analfabeto, apela para as enfermidades.
O Seu João veio buscar as folhas de batatas. Eu disse-lhe:
– Se eu pudesse mudar desta favela! Tenho a impressão que estou no inferno.
... Sentei ao sol para escrever. A filha da Silvia, uma menina de seis anos, passava e dizia:
– Está escrevendo, negra fidida!
A mãe ouvia e não repreendia. São as mães que instigam. (p. 26)
Os acontecimentos do passado, os infortúnios de sua vida, os descontentamentos e as frustrações universalizam-se, e sua felicidade materializa-se nas letras marcadas nos cadernos encontrados no lixo. Há, simultaneamente, poesia e desespero nessa situação, provocando no leitor mais sensível um mal-estar, pois sabe-se que ali se encontra o que há de mais cruel na sociedade brasileira: a falta de oportunidades que massacra os cidadãos, a pobreza extrema que tenta anular a vida dos afro-brasileiros, o preconceito que oprime diariamente as mulheres, conforme se observa no excerto:
A tarde na favela foi de amargar. E assim as crianças ficaram sabendo que os homens fazem... com as mulheres.
Estas coisas ele não olvidam. Tenho dó destas crianças que vivem no Quarto de Despejo mais imundo que há no mundo. (p. 138)
A escrita de Carolina de Jesus possui um caráter reformista, pois a todo momento ela avalia os novos padrões comportamentais urbanos com base em suas convicções culturais, que estão ancoradas num universo mais tradicional, e até rural, oriundas de suas origens mineiras. A crítica que faz aos aspectos morais da vida social na favela, abordando o alcoolismo, as brigas de casais, as infidelidades conjugais e as intrigas recai bastante sobre as próprias mulheres.
As constantes desavenças entre maridos e esposas e os escândalos protagonizados pelos traídos, além da prostituição de menores, horrorizam a escritora. Entretanto, essas cenas de violência são tão cotidianas para ela que são narradas de maneira crua e, por isso mesmo, causam incômodo:
Quando cheguei na favela os meninos estavam brincando. Perguntei-lhes se alguém havia brigado com eles. Responderam-me que só a baiana. Uma vizinha que tem 3 filhos. E que a Leila brigou com o Arnaldo e queria jogar a sua filha recem-nascida dentro do rio Tietê. E foram brigando até rua do Porto. E a Leila jogou a criança no chão. A criança tem dois meses. (. . .) As mulheres queriam ir chamar a polícia para levar a menina no Juizado. Eu estava cançada, deitei. Não tive coragem nem de trocar roupa. (p. 70)
Os diários de Carolina de Jesus sensibilizam o leitor, uma vez que lá estão as rasuras da sociedade, as falhas que todos procuram ignorar, porque ferem a consciência. Para Carolina, a intenção do exercício da escrita é pensar o seu próprio ato de escrever como uma elaboração ininterrupta de sua condição social e de sua existência sofrida. Ao narrar-se, ela modela sua própria imagem, a de alguém que se constrói e se percebe através do entendimento de seu sofrimento social e, principalmente, de seu lugar de exclusão:
Quando eu desperto custo adormecer. Fico pensando na vida atribulada e pensando nas palavras do Frei Luiz que nos diz para sermos humildes. Penso: se o Frei Luiz fosse casado e tivesse filhos e ganhasse salario minimo, ai eu queria ver se o Frei Luiz era humilde. Diz que Deus dá valor só aos que sofrem com resignação. Se o Frei visse os seus filhos comendo generos deteriorados, comidos pelos côrvos e ratos, havia de revoltar-se, porque a revolta surge das agruras. (p. 85-86)
Tratando-se de uma escrita autobiográfica, nela nasce uma aguda consciência de sua marginalização. Carolina de Jesus está fisicamente na favela, representando mesmo o reflexo corpóreo daquele espaço, por causa da fome contra a qual luta diariamente, das agressões que sofre, das dores de cabeça que a acometem quando perambula pela cidade em busca de papelões, garrafas, latas velhas ou qualquer material que lhe renda trocados para comprar comida. Na narrativa do próprio cotidiano, a voz dela recria a si mesma como sujeito marginalizado, engolido pelo abismo social de uma metrópole cruel, que a ignora enquanto mãe que luta pela subsistência dos filhos, violentada também pelos seus pares, que agridem seus filhos e debocham da dedicação pretensamente intelectual de uma reles catadora:
O José Carlos ouviu a Florenciana dizer que eu pareço louca. Que escrevo e não ganho nada. (...)
Hoje é o aniversario de minha filha Vera Eunice. Eu não posso fazer uma festinha porque isto é o mesmo que querer agarrar o sol com as mãos. Hoje não vai ter almoço. Só jantar. (p. 93)
Para Carolina Maria de Jesus, por meio da literatura, dominar a norma culta representaria uma forma de ascensão social, por isso ela faz questão de utilizar, por vezes, vocabulário rebuscado e termos mais formais, que acabam se misturando à escrita oral espontânea – os “erros” gramaticais e ortográficos da escritora são, eles mesmos, materializações da sua condição cultural e da sua pobreza. Nota-se, ao longo dos diários, a busca pelo modelo normativo da língua, tanto nas referências românticas que permeiam algumas de suas divagações, quanto no entendimento que ela tem da cultura letrada como essencial para a ascensão das camadas subalternas da cidade. Dominar os códigos literários, para Carolina, significaria se inserir na sociedade culta e, portanto, rica, distanciando-se do que presencia diariamente na favela e que lhe causa desagrado e repugnância.
Uma semiescolarizada que representa seu cotidiano de forma realista e que não se isenta de não aceitar sua posição social: essa é uma maneira de encarar a autora de depoimentos memorialísticos que carregam as marcas da exclusão social em vários níveis. Carolina de Jesus apresenta ao leitor a favela e seus personagens reais, um espaço no qual ela se insere, ambicionando deter a cultura letrada para se destacar, expressando sua revolta ao não se submeter ao que lhe foi imposto. Essa recusa é transgressora porque se materializa precisamente da forma mais intelectualizada possível: na escrita literária. Em cadernos encontrados no lixo, ela faz o que se acredita ser uma “literatura possível”, caracterizada por não ser consagrada, ter um objetivo maior que o comercial e ser produzida em situações completamente adversas:
Chegaram novas pessoas para a favela. Estão esfarrapadas, andar curvado e os olhos fitos no solo como se pensasse na sua desdita por residir num lugar sem atração. Um lugar que não se pode plantar uma flor para aspirar o seu perfume, para ouvir o zumbido das abelhas ou o colibri acariciando-a com seu frágil biquinho. O unico perfume que exala na favela é a lama podre, os excrementos e a pinga. (p. 47)
Analisando-se atentamente o contexto de produção dos escritos de Carolina de Jesus, acentuam-se o indeterminado e o inesperado como elementos constituintes daquele momento muito particular da vida da autora. O sucesso nacional e internacional de Quarto de despejo no meio intelectual predominantemente branco e rico mostra ao mundo a paradoxal realidade social brasileira. No imaginário social, seria inadmissível uma moradora de favela ascender socialmente por meio de um processo intelectual tão consagrado como o da escrita. Segundo o crivo da sociedade patriarcal brasileira, com heranças coloniais escravistas, uma negra, descendente de escravos, mãe solteira e catadora de materiais recicláveis estaria fadada a serviços que requerem pouco grau de instrução. Mesmo no contexto atual, uma pessoa nas condições de Carolina Maria de Jesus encontraria muita dificuldade de se alienar da trágica condição da favela – isolando-se, principalmente, da fome e da violência, e também dos desgastes físicos e das discussões constantes – para escrever, como a autora fez, registrando as próprias vivências, desilusões e devaneios:
Os visinhos de alvenaria olha os favelados com repugnância. Percebo seus olhares de odio porque eles não quer a favela aqui. Que a favela deturpou o bairro. Que tem nojo da pobrêsa. Esquecem eles que na morte todos ficam pobres. (p. 55)
Foi o encontro fortuito com o jornalista Audálio Dantas que promoveu a concretização da obra de Carolina Maria de Jesus. Não a composta por poemas, canções e contos. Esses a crítica considerou simplistas demais, com rimas simplórias, estrofes populares, quadrinhas consideradas ingênuas, narrativas e versos influenciados por escritores românticos como Casimiro de Abreu e Bernardo Guimarães, provavelmente os únicos que ela teve oportunidade de ler. Apesar de Carolina ter enorme apreço por seus escritos, os leitores dos anos 1950-1960 estavam interessados na veracidade documental que só ela seria capaz de registrar em seus diários. Ao encontrar Carolina, o jornalista percebeu que seria esse o caminho de inserção da obra da catadora nos meios intelectuais: não necessariamente por sua forma de escrever, mas através do olhar dela, em seus escritos, sobre os descompassos da realidade social brasileira.
Quando encontrou Carolina de Jesus, Audálio pediu que retomasse a escrita do diário, por isso há poucos registros relativos ao ano de 1955, mas muitos que cobrem os anos de 1958 a 1960, ou seja, o período do encontro entre os dois. Ao jornalista, coube o papel de seleção, edição e até pequenas correções, mesmo mantendo a originalidade dos desvios sintáticos e ortográficos de Carolina. Audálio Dantas estava a par de seu contexto cultural e sabia que os escritos de Carolina de Jesus trariam impacto aos leitores. Naquela época, já havia movimentos em prol do “desfavelamento”, do incremento e valorização de uma literatura produzida por mulheres, do incentivo a projetos de ascensão social pela educação e pela escrita, do desejo de divulgar o Brasil para o exterior (mas não aquele tropical e idealizado). Quarto de despejo colocou em xeque a visão romântica sobre a favela que ainda prevalecia nos sambas vindos do morro e comprados por músicos brancos. Com o olhar sobre o futuro de quem não quer permanecer na favela, os barracões vistos do asfalto como lar de gente humilde são retratados por Carolina como antros de violência, descaso, fome extrema e abandono:
Já que não posso dar aos meus filhos uma casa decente para residir, procuro lhe dar uma refeição condigna.
Terminaram a refeição. Lavei os utensílios. Depois fui lavar roupas. Eu não tenho homem em casa. É só eu e meus filhos. Mas eu não pretendo relaxar. O meu sonho era andar bem limpinha, usar roupas de alto preço, residir numa casa confortável, mas não é possível. Eu não estou descontente com a profissão que exerço. Já habituei-me andar suja. Já faz oito anos que cato papel. O desgosto que tenho é residir em favela. (p. 22)
Foi a originalidade da perspectiva de uma brasileira negra e pouco alfabetizada sobre a favela e as consequências da desigualdade social brasileira que atraiu os leitores daquele momento. Sem dúvida, o olhar de Carolina de Jesus assombra e fascina os leitores atuais, tendo em vista a permanência dos seus escritos em debates acadêmicos, estudos antropológicos sobre as favelas, bem como em estudos afro-brasileiros e feministas. Principalmente porque os “quartos de despejo” continuam os mesmos, assolados pela mesma miséria hereditária, explorados por políticos oportunistas que abusam da vulnerabilidade dos esfomeados, além da violência crescente que é promovida pelo abismo social que existe no Brasil.
A despeito de não ter obtido todo o reconhecimento que merecia e de ela mesma não se contentar com o relativo anonimato ao qual foi relegada, após o sucesso estrondoso de sua obra em inúmeros países, é fato que ela conseguiu sair da favela e se livrar parcialmente do fatalismo da vida em condições subumanas, terminando os seus dias, ainda pobre, morando numa casa em área rural, assim como na infância. Seu maior legado é que Quarto de despejo torna-se uma obra imprescindível para a compreensão do descaso que o país ainda mantém com os marginalizados. Os trechos finais do diário, lacônicos e incisivos, revelam a prisão cotidiana miserável em que Carolina Maria de Jesus e tantos outros como ela ainda se encontram:
26 de agosto A pior coisa do mundo é a fome!
31 de dezembro ... Levantei as 3 e meia e fui carregar agua. Despertei os filhos, eles tomaram café. Saimos. O João foi catando papel porque quer dinheiro para ir ao cinema. Que suplicio carregar 3 sacos de papeis. Ganhamos 80 cruzeiros. Dei 30 ao João.
... Eu fui fazer compras, porque amanhã é dia de ano. Comprei arroz, sabão, querosene e açucar.
O João e a Vera deitaram-se. Eu fiquei escrevendo. O sono surgiu, eu adormeci. Despertei com o apito da Gazeta anunciando o Ano Novo. Pensei nas corridas e no Manoel de Faria. Pedia a Deus para ele ganhar a corrida. Pedi para abençoar o Brasil.
Espero que 1960 seja melhor do que 1959. Sofremos tanto no 1959, que dá para a gente dizer:
Vai, vai mesmo!
Eu não quero você mais.
Nunca mais!
1 de janeiro de 1960 Levantei as 5 horas e fui carregar agua.